Mineração no Brasil: enfrentamentos e conjuntura política, econômica e social

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Resplendor (MG) - Imagem aérea mostra a a lama no Rio Doce, na cidade Resplendor ( Fred Loureiro/ Secom ES)

[RESUMO] Em análise desenvolvida na V Reunião Nacional dos Professores e Pesquisadores na mineração, em julho de 2019, autores discutem o problema da mineração no Brasil a partir do princípio Potosí. O conceito vem do princípio fundado pelo Império Espanhol na Bolívia e consiste no uso intensivo de recursos naturais e da superexploração da força de trabalho. 

Como preâmbulo, elencamos algumas situações relacionadas à mineração no Brasil, que integra as cadeias globais de comércio de minérios, um dos principais produtos exportados, organizador da reprimarização da economia nacional e objeto direto do problema a ser enfrentado:

• Disputa interimperialista pelo controle dos bens naturais finitos. Os Estados Unidos têm enfrentando crises de hegemonia em relação à China, que controla os destinos de economias nacionais e reproduz seus capitais em parte considerável do globo, por meio da política das commodities.

• Efeitos dessa disputa no mundo e no Brasil: mudanças das características do Estado, das democracias liberais, nas ideologias e no interior do capital por sua fase altamente destrutiva, que provoca fissuras irreparáveis no metabolismo do planeta.

• Desgaste da Constituição de 1988 pela disputa entre setores das elites e os que reivindicam o Estado democrático de Direito. Interagem em todos os níveis da vida social, conflagrando novos conflitos. A agudização do problema mineral brasileiro é um deles.

• Aspectos da revolução tecnológica – de tecnologias expansivas à natureza e nos indivíduos – acobertados pela ideologia da globalização, que transforma a vida social e das economias transnacionais numa incessante disputa por novos bens fundantes de poder, dentre eles os bens minerais, sem controle algum.

• Aspecto ecológico: antropoceno (quando o planeta já não se regula pelas forças naturais) sendo ultrapassado pelo capitaloceno, que explicamos abaixo. Nessa sociedade, as relações sociais que organizamos com a natureza provocaram o colapso climático. Generalizamos os problemas socioambientais como problemática de todos, mas na realidade são ações e consequências do capital.

“A compreensão do capitaloceno permite situar o desenvolvimento geográfico do capitalismo e a fragmentação sistemática da natureza e da cultura. O capitaloceno explicita a dinâmica de pilhagem dos recursos territoriais, processos de desterritorialização-reterritorialização de populações originárias, agudização das desigualdades sociais, econômicas e políticas, espoliação do trabalho e dizimação da diversidade faunística, dos rios e das florestas.

Patenteia-se, assim, a conexão entre capitaloceno e necroceno, entre dinâmicas capitalistas e processos de extermínio […]. Da mesma maneira, o capitaloceno implica processos econômicos, ambientais, políticos e sociais que dependem da transformação radical dos bens comuns naturais em commodities que movimentam as cadeias globais controladas por grandes corporações”.

Diante dos elementos que julgamos estruturais, localizamos o problema mineral no Brasil. Realizamos a análise por meio da interlocução do conceito “princípio Potosí” com a política, economia e história da exploração mineral brasileira, assim como o enfrentamento do problema pelos movimentos populares nas últimas décadas.

Na primeira parte, desenvolvemos análise de conjuntura política, econômica e social no Brasil em diálogo com a história e evolução das empresas e corporações minerais, enfatizando o processo da Vale S.A., relacionado às etapas do princípio Potosí.
Na segunda, descrevemos os enfrentamentos e as resistências necessárias à mineração, protagonizados por comunidades afetadas, movimentos populares, trabalhadores e instituições.

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“O princípio Potosí, na experiência da teoria da dependência, é o uso intensivo dos bens naturais, superexploração da força de trabalho e uma rede ideológica que estimula a dialética de periferia-centro permanente”. / Foto: J R Ripper via Getty Images, em 07/03/2016.

Reflexões a partir do princípio Potosí

Pensamos que não há uma questão mineral em curso, mas um problema mineral decorrente da cumulação originária. O que instaura esse problema? Podemos situá-lo na teoria da dependência e do sistema-mundo e na financeirização da natureza. Horacio Machado Aráoz questiona isso em “Potosí, el origen” (2018) e em “Mineração, genealogia do desastre” (2019). Trata-se de um princípio fundado pelo Império Espanhol em Potosí, Bolívia.

A mineração é um sistema moderno desde a origem; sistema de esgotamento completo da terra e dos indivíduos que a fazem e a consomem. O princípio Potosí, na experiência da teoria da dependência, é o uso intensivo dos bens naturais, superexploração da força de trabalho e uma rede ideológica que estimula a dialética de periferia-centro permanente.

É no centro capitalista que se cumpre a acumulação pela dependência das economias coloniais. Portanto, há uma dialética entre economia industrial, centro do capitalismo, e periferia fornecedora de matérias primas. Essa acumulação se estrutura pela reorganização do capital e do trabalho e pela superioridade econômica e de artefatos, onde se fixa o império do princípio Potosí. Toda a modernidade do capital advém da sua beligerância/guerra.

O Estado colonial e moderno, em suas leis, organiza essa submissão pela transformação da natureza em mercadoria, pela cientificação da mesma e pela criação da empresa da natureza. São formas de atuar e de exercer o poder em que essa acumulação é recepcionada no centro capitalista e sua expansão é permanente. Essa acumulação se dá na forma de produtos, atualmente supérfluos às necessidades humanas, é levada pelo processo da globalização e é atrelada à obsolescência programada.

Este é um primeiro elemento para pensarmos que não temos uma questão mineral, mas um problema fundante, estrutural, das relações atuais que o sistema de acumulação estabeleceu desde o seu incremento ultramar. Dito dessa forma, qual é o nosso princípio Potosí?

Poderíamos averiguar esse momento Potosí no período colonial, no período republicano com a fundação da Companhia Vale do Rio Doce e, sobretudo, dos últimos 30 anos, com a reprimarização da economia, existência da Lei Kandir e um sistema de tributação oneroso às regiões mineradas. É o círculo vicioso das regiões ricas e empobrecidas e das regiões administrativas na esfera do Estado e do poder.

O princípio Potosí desata a contradição da fratura territorial, com regiões mais ricas em bens minerais tornando-se as regiões mais pobres, ou seja, estabelecendo uma desigualdade regional pelo usufruto da riqueza e do consumo. De um lado, há desperdícios de natureza na instalação do problema mineral, de outro, exclusão das benesses por uma elite predatória que impede os setores populares de acessar as riquezas possíveis. Para não falar na ruína territorial e na exclusão absoluta do uso e consumo dos bens minerais, que serão transformados pela natureza exaurida.

A entrada brasileira

A inserção do Brasil no sistema-mundo de produção de mercadoria pelas suas jazidas geológicas e pela existência desse modelo de mineração vai se fundamentar no princípio Potosí. Tendo como elemento fundante a ideia de que, a partir de 1994, utilizamos os nossos bens naturais – floresta, água e minerais – apenas como uma forma de aumentar e, principalmente, manter a capacidade de exportação para o equilíbrio da balança comercial. Portanto, é uma medida que interessa da fronteira do Brasil para fora.

Wanderley, Gonçalves e Milanez (2020) analisam o modelo de desenvolvimento neoextrativismo ultraliberal marginal, considerando a intensificação da exploração dos recursos naturais para exportação, o que constitui uma ameaça de expansão da fronteira mineral, incentivadas pelo governo Bolsonaro no Brasil.

Mantemos o equilíbrio da balança comercial, mas organizamos dentro um sistema tributário que penaliza todas as dinâmicas da nossa economia. Em essência, sofremos uma ação imperialista sobre os nossos recursos sem poder ou sem saber para quem reclamar. Essa é a máxima do nosso modelo de mineração.

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“Utilizamos os nossos bens naturais – floresta, água e minerais – apenas como forma de aumentar e, principalmente, manter a capacidade de exportação para o equilíbrio da balança comercial. Portanto, é uma medida que interessa da fronteira do Brasil para fora” / Foto: Erik Jennings, Amazônia Latitude

Segundo Ricardo Gonçalves, em “Capitaloceno e a fratura da natureza: mineração em grande escala e as barragens de rejeitos em Goiás, Brasil”: “É um modelo de mineração atado ao capitalismo neoliberal e ao neoextrativismo, radicado em estratégias corporativas das empresas para maximização dos lucros com a venda de commodities minerais”.

Se formos verificar, o nosso problema mineral tem nome e etapas. Por três séculos de mineração, o Estado controla a ideia do princípio Potosí pela violência, convocando formas de exploração e obtenção de lucro e tributação até a República. O final da exploração do período colonial do século XVIII, que culminou na Inconfidência Mineira, revolta contra a opressão colonial, foi assim descrito por Maria Cecilia Minayo, em “De ferro e flexíveis: marcas do Estado empresário e da privatização na subjetividade operária”:

“Viram, impunemente, esgotar-se o produto de suas minas, exportando-o para enriquecer os colonizadores europeus, deixando a região exposta a decadência econômica e a sua população trabalhadora no mais completo abandono e desolação”.

A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) foi criada como uma empresa estatal de um país periférico e, portanto, pertencente a um estado autoritário e dependente. O próprio elemento de fundação da CVRD se relaciona com a interdependência do capitalismo global. Naquele momento, houve a estruturação de empresas como fornecedoras de artefatos para guerra com características eletro intensivas e poluentes. Elas se espalham mundo afora, e o Brasil, pela sua grandeza geográfica, torna-se receptor de muitas delas, incluindo a CVRD.

A CVRD, como empresa mineradora, nasce em pleno contexto da Segunda Guerra Mundial, por meio do acordo chamado “Acordo de Washington”, celebrado entre os Estados Unidos, a Inglaterra e o Brasil, a 3 de março de 1942. Esse acordo é fruto dos interesses bélicos dos países “aliados” que, prevendo a continuação do conflito mundial, temiam a escassez de matérias primas para a indústria de armamento. Nele, cada um dos parceiros se compromete administrativa e politicamente.

À Inglaterra cabe devolver ao Brasil, sem qualquer ônus, o grupo de jazidas de minério de ferro do Estado de Minas Gerais, comprado anteriormente pela British Itabira Company. Ao governo brasileiro compete criar uma empresa para assumir a exploração das jazidas, encampar a Estrada de Ferro Vitória-Minas, cuja maior acionista então era a mesma British Itabira Company, prolongar esta ferrovia até Itabira e restaurá-la para que comportasse a exportação, com exclusividade, durante três anos, de 1.500.000 toneladas por ano, de minério de ferro para a Inglaterra e para os Estados Unidos.

Por sua vez, o governo norte-americano se compromete a fornecer equipamentos e técnicos para dirigir as obras de restauração da estrada de ferro e mecanização da mina e conceder empréstimos através do Eximbank para cobrir os gastos com os novos equipamentos e para o financiamento dos técnicos norte-americanos especializados que para cá deveriam ser enviados.

A CVRD, então, herda o nosso modelo mineral colonial, instaura um princípio Potosí da empresa mineral republicana e, desde então, a ruína territorial tem sido a sua marca. A classe de trabalhadores na mineração brasileira, mas não só nela, é em parte escravocrata e camponesa, com lutas que foram impedidas de se deslocarem para dentro da República em todos os setores da sociedade.

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“A política econômica privilegia a isenção da carga tributária da mineração, permite a sonegação, os distúrbios do valor das commodities e a arrecadação estatal”. / Foto: Erik Jennings/Amazônia Latitude

As marcas do estado empresarial brasileiro na subjetividade da classe trabalhadora, proposta por Minayo, retrata essa geração de trabalhadores, percebida como impedida, seja na época da empresa estatal, seja como empresa privatizada. A ideia era constituir a maior empresa do Brasil, participando do sistema-mundo de produção de mercadorias, mas sem deixar que os trabalhadores a percebessem como uma empresa que os explorava em todos os níveis.

Dessa forma, se impedia que os trabalhadores da mineração pudessem ver as fraturas territoriais que os empreendimentos causam, porque estavam imbuídos da ideia de um nacionalismo liberal conservador e, ao mesmo tempo, consideravam a mineração como desenvolvimento e progresso. Isso é um traço republicano da mineração, é o princípio Potosí acobertando, acanhando, a própria classe trabalhadora de se perceber como explorada no interior dos empreendimentos minerários, mas também impedindo que tivesse olhares diferentes sobre as fraturas territoriais que esses empreendimentos causavam.

Qual o sentimento que um trabalhador da CVRD teria, mesmo nos anos 1980, época de uma politização crescente, sobre o problema mineral na Amazônia, a partir do Programa Grande Carajás? Com minas a céu aberto dentro da floresta, linha férrea de 900 km de extensão, hidrelétrica e um porto, qual a consciência que a classe trabalhadora tinha sobre a quantidade de desperdício de natureza provocado?

A Vale é, porque criada como empresa estatal, a mineração do período republicano. Estatal, mas de economia dependente, portanto, exercia aquilo que o Estado é em todas as suas dimensões, violentando outras possíveis economias desse território e provocando enclave e minério-dependência.

Destacamos que a Companhia Vale do Rio Doce, que, em 2007, passa a se chamar Vale S.A., encerra esse período com a sua privatização e inaugura uma outra fase do princípio Potosí, baseada no equilíbrio da balança comercial, ou seja, a economia interessada da fronteira para fora, marcando o fim do Estado desenvolvimentista. A política econômica privilegia a isenção da carga tributária da mineração, permite a sonegação, os distúrbios do valor das commodities e a arrecadação estatal.

O estudo do IJF concluiu que o subfaturamento das exportações do minério de ferro causou prejuízos à sociedade brasileira da ordem de US$ 40 bilhões em evasão de divisas e US$ 12,4 bilhões em imposto de renda, no período de 2009 a 2015. Além disso, houve uma perda de R$ 3 bilhões de CFEM – Contribuição Financeira pela Exploração de Recursos Minerais, que é uma contraprestação paga à União pelo aproveitamento econômico dos recursos minerais não renováveis, explorados sob regime de concessão pública.

O prejuízo tributário refere-se apenas aos tributos sobre o lucro – imposto de renda e contribuição social, uma vez que as mineradoras não pagam imposto de exportação, ICMS, PIS e COFINS sobre as vendas para o exterior. A extração da maior parte do minério de ferro é destinada à exportação. O artifício utilizado para pagar menos imposto no Brasil é o subfaturamento das exportações, que reduz o lucro tributável.

A manobra fiscal é feita por intermédio de uma subsidiária do mesmo grupo econômico, aberta em algum paraíso fiscal, que faz o papel fictício de adquirente dos produtos exportados pela matriz brasileira. Mas o minério de ferro embarca do Brasil diretamente para a Ásia, que é a maior consumidora do produto brasileiro.

Esse é um dos distúrbios do nosso problema mineral, que mantém o equilíbrio da balança comercial empobrecendo as regiões mineradas em função dos rentistas e das finanças dos capitalistas do centro-sul do Brasil. A existência da Lei Kandir é um exemplo disso, pois apesar de a economia ter perdido mais de 500 bilhões de reais desde 1996, provocando fissuras no pacto federativo, mesmo com as decisões no Supremo Tribunal Federal, onera as regiões mineradas em benefícios dos rentistas.

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“A Vale possui acionistas associados a estes fundos de investimento, (…) Neste processo de financeirização e rentização, outra questão é a dificuldade de responsabilizar os investidores pelos danos causados aos territórios minerados”. / Foto: Mauro Pimentel / AFP via Getty Images

Nosso princípio

Por fim, a privatização da Vale é o tripé que completa, digamos assim, o nosso princípio Potosí. Desde 1997, percebemos o esgarçamento em todos os níveis com a chegada do livre-arbítrio da mineração e, portanto, o aval do Estado para consumir territórios e comunidades.

“A expansão de grandes empreendimentos extrativistas como a mineração representa a fratura dos territórios e dos corpos dos sujeitos que neles vivem e trabalham. A mineração é uma atividade extrativa que depende da intervenção ambiental em grande escala, pois é estruturada por uma rede de produção que integra mina, barragens de rejeitos, pilhas de estéril, estradas, consumo de energia, minerodutos, ferrovias e portos. Caracteriza-se como uma produção em rede que, por consequência, também representa efeitos e conflitos socioambientais em rede”, afirma Gonçalves.

O autor aponta que essa discussão sobre as implicações territoriais da mineração “requer a compreensão e a crítica do modelo estrutural de extrativismo mineral territorializado na América Latina e especialmente no Brasil”.

É fundamental entender que a Vale é uma empresa funcional no sistema-mundo de produção de mercadorias nos quatro maiores Produtos Internos Brutos (PIBs) da mineração no Brasil: Pará, Minas Gerais, Bahia e Goiás. Ela está em um país com piso geológico com mais de 85 minérios, traduzidos como base da nossa economia. É, portanto, uma empresa de bloco de poder, sendo não só o modelo mineral, como também organizando esse modelo, independentemente das conjunturas políticas.

Há outras empresas de diversos tamanhos e diversas faixas etárias que não dependem fundamentalmente da conjuntura política, mas encontram guarida e salvaguarda na grande empresa que é a Vale, que organiza um sistema de conflitos de uso dos territórios, políticos e imaginários e estimula outras empresas a repetir o mesmo sistema, como explicamos:

A flexibilização de licenciamentos ambientais e os sucateamentos de órgãos públicos, como a Agência Nacional de Mineração (ANM), antigo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), mostram que a fragilização da fiscalização e o monitoramento são parte da influência das corporações no Estado (Gonçalves, 2018).

Muitas destas flexibilizações, sejam elas ambientais, trabalhistas ou tributárias, são conseguidas por meio do apoio dos parlamentares eleitos e financiados eleitoralmente pelo capital mineral, o que podemos comprovar na atual composição do parlamento e no cruzamento com os financiamentos de campanha. Sobre o tema, sugerimos a leitura de Mello (2015), Mateus (2019), Ragazzi e Rocha (2019).

Quando mencionamos uma empresa funcional ao sistema de produção de mercadoria, referimo-nos ao processo em que ela deixa de ser uma empresa, tornando-se uma corporação financeirizada que busca o aumento da taxa de lucro e o enriquecimento permanente dos acionistas.

No artigo “Quem são os donos da Vale S.A.?”, Trocate indica a relação entre os acionistas dos fundos de investimentos. Alguns destes gestores admitem “El nuevo colonialismo corporativo” como modo de expandir seus negócios por meio de uma rede de amigos com inúmeros conflitos de interesse e indícios de corrupção.

Neste processo de financeirização e rentização, outra questão é a dificuldade de responsabilizar os investidores pelos danos causados aos territórios minerados

A Vale possui acionistas associados a estes fundos de investimento, sendo a sua atual composição composta pela “Litel (21%), o BNDESPar (6,3%), o Bradespar (5,7%) e a japonesa Mitsui & Co (5,6%). Além destas empresas, outros grandes acionistas incluem a BlackRock (5,98%) e o Capital Group (5%). As demais ações estão nas mãos dos mais de 100 mil acionistas da Vale, sendo que 14,7% é detido por brasileiros e 46,6% por estrangeiros”.

Neste processo de financeirização e rentização, outra questão é a dificuldade de responsabilizar os investidores pelos danos causados aos territórios minerados. A diluição da composição dos fundos dificulta a responsabilização. Trocate e Van Der Mark realizaram uma análise das respostas dadas por alguns dos principais acionistas e credores da Vale após o desastre/crime de Brumadinho, mostrando o baixo senso de responsabilidade por parte das instituições financeiras pelos impactos causados no crime/desastre.

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“Se o colonialismo termina, a colonialidade se propaga de diferentes formas ao longo do tempo”. / Foto: Sergio Lima/AFP via Getty Images

Segundo os autores, a preocupação está mais voltada à estabilidade do fundo do que aos impactos causados pelo rompimento da barragem, sendo que poucos parecem assumir que são acionistas e que têm responsabilidades. Existe um conjunto de estratégias que ajudam a blindar as instituições dos riscos reputacionais e financeiros de investir na empresa.

Apontam ainda a falta de transparência sobre quem são os acionistas e os financiadores da Vale, a dificuldade do contato com grande parte das instituições financeiras, as cláusulas de confidencialidade que protegem o cliente e o livram quase completamente de ser responsabilizado juridicamente e financeiramente pelos impactos causados.

De modo igual, no sistema-mundo de produção de mercadorias, não são responsabilizados pela organização dos sistemas intermediários internacionais, que aumentam e diminuem os preços das commodities, criando um série de perdas das economias quando desejam, assim como todas as formas de exploração na vigência da commodity, derivadas da minério-dependência e a dependência da técnica dos sistemas financeirizados.

Estes processos permitem novas formas de execução de colonialismo e colonialidade. Distintos, o colonialismo significa a chegada dos colonizadores a um território de outro povo, que são subjugados, pela força (política e/ou militar), para garantir a exploração das riquezas e do trabalho da colônia em benefício dos colonizadores, ficando a soberania do povo colonizado sob os interesses de quem coloniza.

Já a colonialidade, segundo Felipe Tonial, Kátia Maheirie e Carlos Alberto Garcia Júnior, em “A resistência à colonialidade”, “é entendida como uma dimensão simbólica do colonialismo que mantém as relações de poder que se desprenderam da prática e dos discursos sustentados pelos colonizadores para manter a exploração dos povos colonizados”.

Mesmo com o “fim” do colonialismo, a lógica colonial permanece entre os diferentes modos de vida, os Estados-Nação, os diferentes grupos humanos e assim por diante. Tonial, Maheirie e Garcia Júnior consideram que “se o colonialismo termina, a colonialidade se propaga de diferentes formas ao longo do tempo”. Nas questões envolvendo o capital mineral, o colonialismo e a colonialidade ainda são concomitantes na conjuntura política, econômica e social brasileira sendo reconfiguradas.

Generalizamos os problemas socioambientais como problemática de todos, mas na realidade são ações e consequências do capital.

O neocolonialismo apresenta características de soberania internacional e sistema econômico e político dirigidas para fora, sendo a pior forma do imperialismo, pois se trata de um poder sem responsabilidade para quem o pratica e uma exploração sem reparação para quem sofre. O capital estrangeiro continua sendo o sistema de exploração, fantasiado de desenvolvimento para as partes menos desenvolvidas.

Dentro destes processos do neocolonialismo, é importante averiguar os macroimpactos que a mineração provoca. Tádzio Peters Coelho em “Projeto Grande Carajás: Trinta anos de desenvolvimento frustrado”, identifica os impactos econômicos, sociais e ambientais locais, mas vai além e descreve os macroimpactos que afetam além do município ou região produtor da exploração mineral, mas estados e ou país. São mais abrangentes e podem ser classificados em impactos ambientais, sociais e econômicos, como consequência da mineração.

Destacamos que os macroimpactos econômicos positivos são dois: equilíbrio na balança comercial e aumento da arrecadação federal e estadual. Sendo os macroimpactos econômicos negativos onze: depleção de recursos não-renováveis; isenção fiscal no PIS/CONFINS e ICMS; instabilidade nos preços dos minerais no mercado internacional; rápida transmissão de crises internacionais; dependência econômica e social pela atividade mineradora; enclave mineiro; elasticidade-preço da oferta desfavorável; baixo dinamismo do mercado interno; baixa elasticidade-renda da demanda; pequena absorção dos benefícios técnicos; e baixo valor agregado.

O autor ainda identifica três macroimpactos sociais negativos: desenvolvimento de curto prazo; centros decisórios externos levando a dependência política; e a instalação de ferrovias e minerodutos que impactam diretamente comunidades que estão no trajeto.

O capital mineral se adequa, adapta-se e reconfigura-se rapidamente. Diante do novo quadro do mundo em relação à pandemia de Covid-19, empresas, como a Vale, lançam mão do seu poder financeiro e logístico para autopromoção de equipamentos e insumos voltados a doações de controle da pandemia, mas, em contrapartida, os trabalhadores continuam expostos.

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“O paradoxo é a autopromoção utilizada em momentos de crise e caos, por problemas causados ou ampliados pela mineração, e os milhões gastos com a preservação da imagem da empresa, enquanto indenizações, moradias e auxílios emergenciais são judicialmente questionados pela Vale”. / Foto: Douglas Magno / AFP via Getty Images

Segundo o Decreto nº 10.329 de 28 de abril 2020, a atividade de mineração e toda sua cadeia produtiva foram consideradas como atividades essenciais e não devem sofrer paralisações, interrupções para além das adequações sanitárias mínimas, demonstrando a “força das grandes corporações da indústria extrativa mineral, a articulação dos interesses privados frente à apropriação dos recursos e da sustentação pública dos entes estatais e a subserviência do poder público em relação à primazia do interesse do setor mineral”, conforme Haroldo Souza e Charles Trocate em “Apontamentos Iniciais: Mineração, Tributação e Evasão Fiscal em Tempos de Pandemia”.

A essencialidade da mineração em tempos pandêmicos mostra como sua renda não chega aos realmente afetados, mas apenas a intermediários ligados à mineração. Souza e Trocate, afirmam que a minério-dependência “subordina financeiramente o município à lógica mineral, mas também agrega um conjunto de agentes e atores sociais na perspectiva de fortalecer uma hegemonia da mineração nos municípios articuladas por elites predatórias, que via de regra se beneficiam dos transbordamentos da economia mineral nos municípios minerados”.

O paradoxo é a autopromoção utilizada em momentos de crise e caos, por problemas causados ou ampliados pela mineração, como os rompimentos de barragens em Mariana e Brumadinho e os milhões gastos com a preservação da imagem da empresa, enquanto indenizações, moradias e auxílios emergenciais são judicialmente questionados pela Vale. E a cadeia de transmissão da Covid-19 que as atividades de mineração ajudam a espalhar pelo interior do Brasil, sendo responsável pelo aumento de casos, ampliando o risco a toda a população das cidades.

Souza e Trocate abordam pontos apresentados pelo Movimento pela Soberania Nacional na Mineração que, se fossem apreciados pela classe política, poderiam livrar o Estado do sequestro e da dependência do capital mineral:

(1) a necessidade de controle social sobre o uso da CFEM;

(2) a injustiça fiscal e as desigualdades causadas pelo setor mineral à União, aos estados e aos municípios (revogação da Lei Kandir); e

(3) as denúncias e barreiras sobre os mecanismos ilícitos de fluxos e operações financeiras utilizados pela indústria extrativa mineral no país e exterior. Estes recursos derivados destes três pontos supririam e poderiam ser utilizados para estruturar o Sistema Único de Saúde (SUS), educação, acesso à água e saneamento, moradia, alimentos sem agrotóxicos, programas sociais, que não precisariam da “caridade” das empresas de mineração.

Por que outros setores das indústrias fecharam e a mineração não durante a pandemia no Brasil? A resposta tem a ver com aquela transformação que tem ocorrido na economia nacional, pois deixamos de ser uma economia industrial, para sermos uma economia reprimarizada, ou seja, a base do funcionamento da economia nacional é a venda de commodities agrícolas e minerais. A mineração é considerada uma atividade essencial, porque ela é uma atividade do bloco de poder do Estado e dos rentistas, com influências políticas e econômicas que suscitam a atual fase do princípio Potosí do modelo de mineração brasileiro.

Salientamos que estas influências políticas e econômicas vão além da definição do modelo de mineração, podem influenciar e determinar a manutenção de um regime de governo democrático. A busca do controle do lítio sul-americano, apoiada por esses interesses das multinacionais, como a Tesla, foi um dos elementos da conjuntura de disputa pela saída de Evo Morales, na Bolívia. No Brasil existe uma aproximação destes interesses de mineração ao governo de Bolsonaro, visto o apoio incondicional a espoliação mineral no Brasil. Os grupos financeiros, multinacionais são os neoconquistadores, ganhando dinheiro e deixando para a carnificina social na latino-americana.

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“A mineração é considerada uma atividade essencial, porque ela é uma atividade do bloco de poder do Estado e dos rentistas, com influências que suscitam a atual fase do princípio Potosí do modelo de mineração brasileiro” / Foto: João Laeta/AFP via Getty Images

Considerações, enfrentamentos e resistências necessárias

O que se acumulou e quais são os enfrentamentos possíveis e necessários? Em uma década de articulações e as derramas de rejeitos em Mariana e Brumadinho em Minas Gerais revelaram e ampliaram no imaginário social o nosso sistema de perdas permanentes com a indústria da mineração.

Da privatização da CVRD, em 1997, aos dias atuais, são inúmeras as articulações e movimentos que se originam tendo como referência o problema mineral brasileiro. Mas, sobretudo, de 2012 para cá, é que se formaram melhores entendimentos e posicionamentos políticos sobre a prática da empresa mineral, cujo marco é a duração do super ciclo da mineração e as consequências devastadoras do fim de ciclo na institucionalidade, nos territórios e na economia.

Vale ressaltar que o conflito mineral não só começa a ser pauta das organizações que compõem a Via Campesina Brasil, cada qual ao seu modo e necessidade, como também se constituem como novos espaços de reflexão, elaboração e tomada de decisão, com alguns destaques.

São eles: a organização do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração (CNDTFM) em 2014 e sua centralidade no debate do Código Mineral no congresso nacional; a Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale S.A.; o Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM); além de inúmeras articulações regionais, no mundo do território e do trabalho na mineração.

Articulações sindicais se remontam, novos grupos de interesse se formam, dentre eles o Grupo de Trabalho da Mineração do Projeto Brasil Popular, e o problema mineral brasileiro começa a ganhar uma síntese inicial.

Num balanço mais imediato, poderíamos destacar o que as forças populares acumularam em relação à dimensão do problema mineral, que se reatualiza em tempos pandêmicos, na fissura territorial, no adoecimento da classe trabalhadora, no sequestro do Estado e nos lucros dos acionistas em rolagem financeirizada.

A luta pelo território livre de mineração e suas possibilidades de rivalizar com o capital mineral e sua segurança jurídica nas regiões mineradas. Lutas cujo aspecto central é o direito a outra economia da natureza;

As lutas jurídicas e institucionais contra a minério-dependência e a economia de enclave e para que as decisões em âmbito da mineração sejam democráticas não prevalecendo o monopólio do poder da indústria mineral e nem a vontade estatal;

Lutas por um outro sistema tributário da mineração contra as injustiças fiscais e pelo controle popular. Isso diz respeito à luta pelo fim da Lei Kandir, a democratização do uso da CFEM nos municípios minerados e a tributação da água para uso industrial da mineração.

É importante destacar que as redes ideológicas do poder corporativo global reeditam nestes tempos o uso intensivo dos bens naturais e a superexploração da força de trabalho, a acumulação primitiva e o lucro extraordinário do capital. Assim como a empresa mineral é bloco de poder no poder, sua essencialidade é o princípio Potosí e tem atuação no Brasil e no mundo.

A confusão institucional que se formou na metade dessa década e a perda de sentido democrático no país aprofundaram ainda mais a economia de enclave das commodities agrícolas e minerais. O fundamental é entender que na luta por outro modelo de mineração está implícita na luta por democracia. Além de absolutizar a renda mineral, provocar desigualdades regionais e crise fiscal e tributária, o bloco de poder da mineração controla a institucionalidade e a democracia liberal de baixa intensidade pelas eleições.

Por fim, abre-se um novo período e esse sujeito coletivo de luta contra o modelo mineral precisa se movimentar. Precisa se agitar frente à barbárie e à danação do capital mineral, suas elites predatórias e o escape que procuram os entreguistas da soberania nacional, em aberta luta de poder.

Referências

Publicado originalmente em: Alves et al. Mineração: realidades e resistências. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2020

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Charles Trocate é integrante da coordenação nacional do Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM).
Murilo da Silva Alves é docente do Departamento de Ciências da Saúde da Universidade Estadual de Santa Cruz (DCS/UESC), doutorando em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (PPG-PSI/UFMG), mestre em Enfermagem e Saúde pelo PPGES/UESB e membro do Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Sociabilidade e Saúde (LETSS/UFMG)
Imagem em destaque: Lama no Rio Doce, no Espírito Santo. Secom/ES

 

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