Entenda o impacto de falsas controvérsias científicas nas políticas ambientais brasileiras

Perguntamos aos pesquisadores Letícia Lima e Raoni Rajão, da UFMG, sobre como a distorção de dados científicos feita por um grupo da Embrapa Territorial afetou a tomada de decisão do governo
Amazônia Latitude: O que são controvérsias científicas?
Letícia Lima: São normais na ciência, parte de um processo saudável e necessário para o avanço científico a partir do diálogo acadêmico dentro da literatura especializada. Até mesmo consensos podem ser contestados na ciência, desde que isso seja feito com o devido rigor científico.
Raoni Rajão: As controvérsias importantes são resolvidas em publicações em periódicos internacionais relevantes, lidos por cientistas do mundo inteiro. Eventualmente, existe a construção de um consenso por meio desse intercâmbio. O ponto principal de um artigo científico é mostrar os dados e permitir que qualquer cientista reproduza aqueles conteúdos.
O que são falsas controvérsias?
LL: É um discurso que apresenta como duvidoso e controvertido o que já está bem estabelecido na ciência ou o que já é questão resolvida para a grande maioria dos cientistas. É uma estratégia usada por negacionistas das mudanças climáticas.
RR: São falsas no conteúdo e na forma. Falseiam temas significativos, como o impacto para a saúde da queima da cana-de-açúcar ou a relação entre desmatamento e fogo, assuntos cientificamente estabelecidos. São apresentados ao público como se ainda existisse debate.
Como falsas controvérsias são produzidas?
LL: Por meio de afirmações e conclusões tiradas de metodologias questionáveis e de dados cuja origem é desconhecida e não verificável. As controversas são alimentadas por textos publicados em revistas não-científicas, que não contam com revisão por pares.
RR: Por diferentes estratégias. Fuga do debate científico, com resultados que ignoram o que já foi publicado sobre o assunto. Apresentação de credenciais científicas, somadas a um volume de publicações em periódicos pouco relevantes. E influência do poder político, que distancia os dados do debate científico.
QUEM É EVARISTO MIRANDA?
Evaristo Eduardo de Miranda é mestre e doutor em Ecologia pela Universidade de Montpellier, na França. Foi contratado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária em 1980, onde atua como pesquisador até hoje. É mencionado por nome no artigo “O risco das falsas controvérsias para as políticas ambientais brasileiras”, publicado na revista Biological Conservation, como um dos responsáveis por criar falsas controvérsias.

Chefe-Geral da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Territorial), Evaristo Eduardo de Miranda, em pronunciamento na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA). Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
Como Evaristo de Miranda tem relação com as falsas controvérsias?
LL: Muitas declarações do pesquisador foram dadas em artigos de opinião, sem apresentar evidências para respaldar as afirmações, sem mencionar a literatura existente, sem utilizar uma metodologia consistente e verificável. São artigos em periódicos não científicos onde ele publica há décadas, em um nicho com público receptivo que confia no que ele diz.
RR: As informações dele não estão na literatura publicada. Um exemplo: é fato que o Brasil tem mais de 60% de vegetação nativa ainda conservada e que metade disso está em áreas privadas de produtores agrícolas. Miranda apresenta os números como evidência de que esses produtores não estão desmatando, o que não é verdade. Sabe-se que o Brasil concentra um terço do desmatamento mundial, com 20% dos produtores da Amazônia e do Cerrado desmatando, com 10% deles sem respeitar os limites do Código Florestal.
Quais foram as principais controvérsias criadas por Evaristo de Miranda?
LL: São temas ambientais diversos, como os impactos ambientais e na saúde pública advindos da queima de cana-de-açúcar; a origem dos grandes eventos de incêndios florestais de 2021; as multas para controle do desmatamento e as contas para a revisão do Código Florestal em 2012.
RR: O debate da revisão do Código Florestal. Na perspectiva dele à época, a lei exigiria proteções tão amplas que inviabilizariam a produção agrícola em um dos cenários da Amazônia e do Pantanal. Outra é a questão das multas, estratégia típica para a proteção ambiental; Miranda as trata como feitas de maneira aleatória e injusta.
Como as controvérsias impactaram as políticas ambientais brasileiras?
LL: Legitimaram uma narrativa falsa sobre a realidade ambiental do país, favorecendo alguns grupos de poder. Miranda liderou uma pequena equipe que definiu as linhas gerais da política ambiental a ser seguida por Bolsonaro. No entanto, a influência dele foi observada até nos governos anteriores, como no caso dos debates sobre o Código Florestal. As alterações do Código em 2012 mostram o poder Legislativo alterando a lei sem nenhuma consideração aos alertas dados por outros cientistas.
RR: No caso da cana-de-açúcar, a proibição da queima foi proposta pelo Ministério Público e o trabalho de Miranda corroborou a perspectiva do lobby do agronegócio, refratário à regulação ambiental. Houve um atraso de 15 anos na proibição. O juiz que paralisou a ação MP citou o trabalho de Miranda na decisão. No Código Florestal, os deputados que votaram para enfraquecer as regras mencionaram os dados de Miranda como prova de que a posição que estava sendo tomada era cientificamente embasada.
Negacionistas veem ambientalistas com um olhar negativo por estarem ligados a organizações estrangeiras. Por quê?
LL: Existem inúmeras empresas multinacionais envolvidas em vários setores da economia brasileira com origem e sede no exterior. Como parte de uma economia global, dependemos do dinheiro estrangeiro em vários setores e isso é considerado normal. Se o estrangeiro que investe na economia nacional é bem visto pela mídia ou pelo governo, por que o estrangeiro que investe no meio ambiente teria que ser mal visto?
RR: Existe um reducionismo do que é o ambientalismo no Brasil. A preocupação com o “ambientalismo” existe há muito tempo e é ampla na sociedade. Aqueles que têm mais voz na mídia são ONGs ambientalistas, algumas delas internacionais, o que distorce a perspectiva do que é o ambientalismo. É mais um efeito da comunicação do que algo concreto. Por causa dessa perspectiva, tem-se essa relação com o capital estrangeiro.
Como combater as falsas controvérsias na ciência?
LL: É preciso esforço para sair da apatia e reconhecer que, por mais que não tenhamos um panorama completo sobre os vários assuntos de importância na sociedade, é necessário se informar mais e melhor. Enquanto estamos distraídos, há grandes grupos de poder tomando decisões.
RR: É importante aumentar o conhecimento do público em geral, inclusive dos jornalistas, sobre com que funciona a ciência. E uma das formas de fazer isso é esclarecer nos artigos publicados pela mídia a fonte da informação. Além de, informar o público que existem qualificadores: não é todo resultado dito por pessoas de instituições de pesquisa é automaticamente um dado robusto.
Artigo “The risk of fake controversies for Brazilian environmental policies” foi publicado na revista Biological Conservation, em fevereiro de 2022.
Confira o episódio do Amazônia Latitude Cast aqui