O que sonham os Yanomami
Em 'O Desejo dos Outros', a antropóloga Hanna Limulja oferece um mergulho na cultura dos Yanomami a partir do que eles sonham: 'quando um mundo como esse acaba, a gente perde duplamente a nossa humanidade'
Hanna Limulja e o livro 'O Desejo dos Outros' | Montagem: Fabrício Vinhas
Quando comecei a ler “A Queda do Céu”, o assunto que mais me impressionou foi a descrição dos espíritos xapiri descendo à terra. Segundo a cosmologia Yanomami, ali narrada por sua principal liderança, Davi Kopenawa, e seu amigo, o antropólogo Bruce Albert, esses espíritos descem das montanhas, sua morada, para brincar na floresta e seus espelhos, com cheiro suave de urucum. Minha imaginação nunca foi capaz de traduzir tal cena, ainda que eu me lembre de imaginar que um dia poderia ter um sonho colorido, no qual veria os xapiri, a floresta e os espelhos resplandecentes.
O sonho não veio, mas ao ler “O Desejo dos Outros – Uma etnografia dos sonhos Yanomami” (2022), da antropóloga Hana Limulja, pude, acordada, me aproximar de uma das faces mais bonitas sobre o estudo desse povo: os Yanomami sonham e, ao sonhar, percorrem mundos, vão a lugares desconhecidos, encontram-se com parentes distantes e reencontram seus mortos. Ao mostrar a vida e a perspectiva deles pelo onírico, Limulja oferece uma imersão na cultura – e aí empresto a descrição de “A Queda do Céu” – de um dos maiores grupos ameríndios da Amazônia que conservam em larga medida seu modo de vida tradicional.
É um prêmio aos leitores que têm a oportunidade de conhecê-los muito mais de perto. A obra traz à mão mais uma porção de argumentos para se colocar em defesa desse povo ameaçado pelo garimpo e pelas doenças levadas (e agravadas) pela presença de invasores em seu território tradicional – uma porção de 9,6 milhões de hectares entre os estados do Amazonas e Roraima, no Brasil, e a fronteira com a Venezuela, onde vivem 27.152 pessoas.
Para entender um pouco mais do livro, do cenário da pesquisa e da perspectiva da própria autora, a Amazônia Latitude traz agora uma entrevista com Hanna Limulja.
Amazônia Latitude: Pode contar um pouco da sua história de trabalho com os Yanomami e como surgiu a ideia de escrever o livro?
Hanna Limulja: Eu comecei a trabalhar com os Yanomami em 2008 e o tema sobre os sonhos aparecia nas conversas. Eles falavam muito dos sonhos, ou sempre tinham uma explicação para o que eu sonhava. Então foi algo que eu achei que seria interessante pesquisar. Em 2014, quando voltei para a academia, decidi pesquisar os sonhos, porque também não tinha muita referência sobre esse assunto, apesar de existirem muitos estudos etnográficos sobre os Yanomami feitos por antropólogos que trabalham há décadas com eles, como Bruce Albert. Também, quando li “A Queda do Céu”, vi que Davi Kopenawa falava dos sonhos, da importância e do lugar central que eles têm na vida dos Yanomami. Foi assim que, em 2015, fui a campo pesquisar esse tema.
O que sonham os Yanomami? E qual o impacto e importância do sonho na vida deles?
Para os Yanomami, o sonho tem um papel central. O sonho tem a ver com o dia a dia, com o que eles estão vivendo, com a vida na comunidade, mas também com outros mundos possíveis, que é quando você tem esse encontro com a alteridade, com outros seres, outros mundos.
O mundo Yanomami é dividido em cinco patamares. Em alguns lugares, falam que são quatro. Então os xamãs, sobretudo, podem passar de um patamar para outro, podem ir para lugares que nunca foram. Eu falo no livro de um xamã que nunca tinha saído da comunidade, mas dizia ter ido em sonho a São Paulo. Para eles, o sonho tem esse lugar de conhecimento.
O sonho é um lugar em que você tem uma experiência e por meio da qual você aprende e apreende outros mundos, outras formas de ver. Por isso, várias vezes em “A Queda do Céu” Davi Kopenawa coloca que os brancos (napë pë) só sonham consigo mesmos. É por isso que eles não conseguem ver a floresta.
O sonho Yanomami é essa possibilidade de você não só sonhar consigo mesmo, mas sonhar com os outros, com outras florestas além daquela que os Yanomami habitam. Eles têm bastante consciência disso, de que, quando o céu cair, ele não vai cair só na cabeça dos Yanomami, mas vai cair também na cabeça de todo mundo, também dos brancos que não vivem nessa floresta.
Quais sonhos, dentre esses vários que você ouviu, te causaram mais impacto?
O meu trabalho não tem relação com a quantidade de sonhos que tive contato. Tem a ver com conteúdo, com o que eu pude capturar desses sonhos. Eu não analisei profundamente os cem sonhos que registrei. Por isso, esse número não é relevante nesse sentido. Eu peguei uma parte desses sonhos e destaco alguns temas, e alguns são justamente essa relação com os mortos. Isso está mais para o final do livro, que existe um tabu com relação à morte, sobretudo ao morto.
A morte é um processo natural, mas o morto é algo de que você precisa se separar. É por isso que tem o reahu, que é a festa intercomunitária onde se realiza o ritual funerário. Esses momentos são importantes porque é justamente quando se faz o processo de separação entre os vivos e os mortos e que as alianças perdurem entre as comunidades.
Todas as pessoas que têm relação com o morto vão estar no reahu – tanto para poder reafirmar os laços entre vivos, os laços políticos, de trocas e alianças, como também para realizar o processo de separação do morto, que vai para outro patamar.
Para os Yanomami, o sonho é o momento em que você pode encontrar o morto. Essa é uma das razões que dá o título ao livro. Para os Yanomami, quando se sonha com uma pessoa, não é um desejo seu que faz com que você sonhe com essa pessoa, mas é o outro que sente a sua falta e faz com que você sonhe com ele. Não é porque você está pensando em alguém, mas porque esse alguém está pensando em você.
Hanna Limulja, antropóloga
Em uma perspectiva freudiana simplificada, o sonho é um desejo do ego, que vem do sonhador, que tem a ver com aquilo que a gente deseja. Numa perspectiva Yanomami, o sonho tem a ver com o desejo do outro. É o outro que incide na gente essa vontade. Esse outro pode ser um morto, pode ser um parente ausente temporariamente… enfim, é alteridade e a maneira como essa alteridade influência no sonhador. É outra relação de como o sonho conecta. Além de você interagir, entrar em contato com outros seres através do sonho, você consegue entender que o mundo está povoado por outros seres que não são apenas Yanomami, são seres que habitam o mundo e se encontram nesse tempo do sonho, o mari tëhë.
No livro você conta que encontrou sobreviventes do Massacre de Haximu, que completou 30 anos em 2023. Como a vida dessas pessoas foi impactada?
Na minha pesquisa, trabalhei numa área que não tinha garimpo e fiquei quase um ano lá. Fiquei num lugar que não tinha garimpo e nem malária justamente porque queria fazer minha pesquisa em um lugar onde pudesse ficar bastante tempo e voltar bem. Quando a tese virou livro, senti a necessidade de retomar esse sonho que não estava na tese e de falar da Leda. Ela falou em algum momento que sonhava às vezes com os parentes que os brancos mataram, e eu fui descobrir que ela era uma sobrevivente de Haximu.
Falar de Haximu no livro também foi uma estratégia para chamar atenção para a tragédia humanitária que os os Yanomami enfrentam, porque não adianta só ficar falando “ah, vejam como os sonhos dos Yanomami são interessantes”. Eu quis contar que esses sonhos também estavam ameaçados, que estas pessoas estão ameaçadas.
Quando um mundo como esse acaba, uma forma de pensar o mundo, de sonhar o mundo, é colocada sob ameaça. A gente perde duplamente a nossa humanidade. Porque essa visão é única. A humanidade como um todo fica mais pobre porque a gente perde uma forma de ver o mundo. E a gente perde a nossa própria humanidade quando vê o que está acontecendo e não faz nada.
Hanna Limulja, antropóloga
O que foi o governo Bolsonaro para os Yanomami?
Foi o desmonte total da saúde indígena e o incentivo aberto do governo ao garimpo em terra indígena. O sistema de saúde já vinha sendo fragilizado ao longo dos últimos anos mas, obviamente, no governo Bolsonaro isso foi feito de maneira muito eficiente. Em paralelo, houve o incentivo ao garimpo. Em diversos momentos foi noticiada a agenda do governo Bolsonaro recebendo grupos de garimpeiros na Esplanada. Era um apoio explícito e escancarado.
Nessa leva vieram também os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, que passam pelo mesmo processo das terras indígenas terem virado terra sem lei, terra de ninguém, onde qualquer um poderia entrar, inclusive o crime organizado. Porque a gente não estava falando só de garimpeiro, nem de garimpo em pequena escala, mas um garimpo empresarial, financiado, com muita circulação de dinheiro, de drogas, de muitas coisas. É toda essa estrutura que foi fortalecida dentro do governo Bolsonaro.
Como é para os Yanomami o processo de adoecer e ser levado para tratamento na cidade, longe da comunidade, do xamã?
O processo de adoecimento já deixa qualquer pessoa em um estado de vulnerabilidade. Para os Yanomami, é um processo de virar outro e possivelmente morrer. Quando se está nesse processo de adoecimento e longe da comunidade, o nível de afetação é muito maior. Quando o Yanomami está num espaço em que ele se sente seguro, ele tem ali o xamã, tem ali a comunidade. Dentro dessa perspectiva da doença, é um horror para os Yanomami ir para a cidade.
Para eles, estar longe da comunidade já é um problema, tanto para quem fica na comunidade, quanto para quem vai para Casai (Casa de Saúde Indígena, em Boa Vista). Por quê? Porque a pessoa fica longe da família, só com um acompanhante. Uma mãe que tem vários filhos só pode trazer um, no máximo dois, e eles em geral tem mais do que dois. Ou seja, os outros filhos ficam na comunidade sozinhos. A pessoa que está na cidade não está fazendo roça. É como se tivesse uma paralisação da vida dela. Esse processo já causa uma ruptura, que afeta o estado de adoecimento da pessoa.
Com a permanência na cidade prolongada, esse processo é muito mais agravado. Quanto mais tempo a pessoa fica na cidade, além de ela estar comendo um alimento com o qual não está acostumada, ela fica num lugar que não é a casa dela. As pessoas que ficaram na comunidade, em geral, não têm notícia e ficam achando que o parente na cidade morreu.
É uma coisa desesperadora. Acho que é um sentimento parecido com o que se teve no momento mais dramático da pandemia, naquela época do caos em que as pessoas eram internadas, os parentes ficavam sem notícia e, quando alguém morria, demorava uns três dias para saber. Para eles, é quase isso. As pessoas na comunidade sem saber que os daqui morreram, e também o inverso. Ter um parente da comunidade que morreu e o familiar estar na cidade, e não poder chorar com a comunidade, é um sentimento devastador.
Como o garimpo impacta o modo de vida Yanomami e seus sonhos?
Tem o impacto ambiental e o sanitário. A casa, o lugar onde eles vivem é destruído, porque os leitos dos rios são revirados, afeta os peixes que são contaminados por mercúrio, as pessoas que são impactadas pelas epidemias que os garimpeiros levam para a floresta e elas adoecem. Quando adoecem, não conseguem fazer as roças.
Agora, por exemplo, estamos na estiagem. É quando eles fazem a derrubada, queimam pelo manejo controlado do fogo. Se a comunidade Yanomami perde esse período porque está adoecidas, ela não vai ter comida durante o ano. Não vai poder plantar em outra época, porque terá perdido o período de safra, plantação e colheita.
O estado de desnutrição crônica a que chegaram em dezembro do ano passado, de emergência sanitária, de crise humanitária, foi porque eles estavam diretamente afetados pelas consequências do garimpo.
É importante deixar isso claro. Os Yanomami sabem viver na floresta. E o fato de eles estarem na floresta permite que a gente viva onde vive também. Diante das mudanças climáticas, a floresta em que eles estão só está de pé porque eles estão lá. Por mais óbvia que essa ideia pareça, é importante destacá-la: os Yanomami sabem viver na floresta. A maneira que eles vivem, em condições normais, é saudável. Isso que as pessoas viram, que causou toda uma mobilização nacional e internacional, mostrou um povo afetado pelo garimpo.
Hanna Limulja, antropóloga
Algumas pessoas dizem que eles precisam de uma intervenção do Estado. Não, muito pelo contrário. Eles têm plena capacidade e domínio de viverem à sua maneira. Mas, para isso, eles precisam que seus direitos básicos, direitos previstos na Constituição e em todas a declarações que o Brasil é signatário, sejam respeitados.
Texto e produção: Emily Costa
Revisão: Filipe Andretta
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón