Resenha: “O Território”

Garoto e garota indígenas brincando em um riacho.
Crianças Uru-eu-wau-wau brincando em um riacho próximo de sua aldeia. Alex Pritz/O Território

Documentário premiado da National Geographic acompanha a luta do povo Uru-eu-wau-wau por sua terra, complexificando a discussão com perspectivas dos invasores

Árvores sendo cortadas. Tratores passando por cima da floresta. Um rebanho de gado de corte. Imagens de satélite que mostram uma desenfreada expansão urbana. O começo do documentário “O Território” (2022), do diretor Alex Pritz, ilustra os dados sobre a destruição e ameaça à Amazônia no governo anti-ambientalista do presidente Jair Bolsonaro, durante o qual 31.000 km² foram desmatados, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e houve alta de 137% nas invasões a terras indígenas, de acordo com dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Apesar da aparente simplicidade na tradução de dados para imagens, Pritz traz discussões muito mais complexas e cheias de nuances, como os problemas da desigualdade social para os próprios invasores, no resto dos 80 minutos de filme.

“O Território”, que ganhou tanto o Prêmio do Público quanto o Prêmio Especial do Júri no festival de cinema Sundance de 2022, oferece uma visão imersiva da luta incansável do povo indígena Uru-eu-wau-wau contra o desmatamento provocado por colonos ilegais e uma associação de agricultores não nativos.

Por falta de confiança nas autoridades, os Uru-eu-wau-wau montaram uma equipe própria de fiscalização para queimar assentamentos e expulsar invasores de suas terras.

A produção tem imagens fortes da Amazônia brasileira . Ao invés do foco apenas na tradicional mata exuberante, elas mostram que o povo Uru-eu habita uma ilha de floresta cercada por um mar de cidades — capturadas ao longo de três anos —, e um design de som ricamente texturizado.

Com esses recursos, ao mesmo tempo que o filme leva o público para dentro da comunidade indígena, fornece acesso sem precedentes àqueles contra quem o povo luta. E sem precedentes não só porque é difícil conversar com colonos que queimam e “limpam” terras ilegitimamente, mas porque o filme consegue livrar-se da dicotomia do bem versus o mal.

Embora o documentário claramente não seja isento ou imparcial – tomou claramente a causa indígena como questão primordial da narrativa –, as entrevistas com colonos e agricultores que invadem territórios protegidos para obter terras revelam problemas sociais complexos e profundos.

Enquanto o precoce cacique do povo Uru-eu, Bitaté, abre o filme dizendo que “a floresta, os rios, é nossa casa, onde a gente se mantém”, o colono Martins afirma que “só quer uma casa, uma terra para plantar milho. A gente só quer o que a gente merece. Como qualquer ser humano”. O pequeno agricultor Sérgio Antônio ecoa: “Acompanho todo o sofrimento e a realidade [dos fazendeiros ao meu redor]. Todo mundo sonha em ter um pedacinho de terra. Eu quero ter o meu”.

De novo, não significa que o filme defende as invasões de terras indígenas. O dramático assassinato de Ari, um guardião da floresta e fiscalizador Uru-eu-wau-wau, que foi encontrado morto em uma estrada durante a produção, denuncia a violência gerada em nome do agronegócio e da economia.

Mas os depoimentos dos colonos Martins e Sérgio mostram que o buraco é mais embaixo. A violência contra a floresta e povos da floresta não se resolve apenas com políticas públicas voltadas para essas questões. Também é preciso abordar os problemas sociais que produzem figuras como colonos e agricultores que dependem da ilegalidade da apropriação de terras (ou acham que dependem) para sobreviver.

De onde vem essa realidade? Quem a produziu?

Em uma das cenas mais íntimas do documentário, os anciãos Uru-eu-wau-wau compartilham histórias com os membros mais jovens do povo ao redor de uma fogueira. O momento materializa, junto à escassez de histórias que marca a cultura branca, as perguntas: que histórias estamos contando? E quais não estamos?

“O Território” ilumina as histórias não contadas da construção de uma realidade cheia de Martins e Sérgios, ao mesmo tempo que amplifica as vozes de indígenas, que lutam há 500 anos para serem ouvidas. Tanto é que o jovem cacique Bitaté diz que a melhor arma de luta é a câmera – seja na mão, seja no drone –, para se fazer ouvir com evidências.

Talvez o sucesso do filme nesta empreitada de histórias se deva ao fato de que ele foi construído por alianças. Ao lado do diretor estadunidense Pritz e seu produtor, também dos Estados Unidos, Darren Aronofsky, a National Geographic convocou nomes como o de Txai Suruí, ativista indígena que é líder nas discussões sobre mudanças climáticas, ao posto de produtora executiva, e Tangãi Uru-eu-wau-wau, como diretor de fotografia (a produção inteira foi parcialmente filmada pelo povo Uru-eu-wau-wau).

O formato segue os passos de produções como “A Última Floresta” (2021), de Luiz Bolognesi, em que o diretor brasileiro se alia ao xamã Davi Kopenawa para contar o drama da chegada de garimpeiros na comunidade isolada de um território Yanomami – que trazem consigo morte e doenças.

Esse modelo de construir em conjunto, ao invés de “falar sobre”, é melhor exemplificado pela obra “A queda do céu” (2010), de Bruce Albert, história que traz as meditações do xamã Davi Kopenawa a respeito do contato predador com o homem branco, ameaça constante para seu povo desde os anos 1960. O livro foi escrito a partir de histórias contadas por Kopenawa ao etnólogo Bruce Albert, com quem nutre uma longa amizade. Foram mais de trinta anos de convivência entre os dois para resultar no tratado ético e filosófico que é “A queda do céu”.

O livro de Albert, o filme de Bolognesi e agora “O Território” são evidências de que, para mudar as histórias que contamos e contar outras histórias, é preciso transformar o processo de contação de histórias. A aliança entre quem veicula e quem narra as palavras faz-se essencial para explorar as complexidades das relações humanas e, em última instância, resolver os problemas que assolam a sociedade.

A personagem de Ivaneide Bandeira, a ambientalista Neidinha, incorpora essa aliança. Para contar a história do povo Uru-eu-wau-wau, ela luta ao lado dos indígenas. “A gente não pode desistir. Se desistirmos, quem ganha são eles [os invasores]”, afirma, se colocando ao lado dos indígenas no “nós contra eles”. Neidinha materializa a síntese do documentário: não estamos todos no mesmo barco, mas todos precisam participar da batalha por um mundo melhor. Um futuro possível.

O documentário “O Território” estreia nos cinemas no Brasil em 8 de setembro. Assista ao trailer aqui.

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