Emílio Domingos: A semente que Patrícia Monte-Mor plantou no audiovisual brasileiro

O cineasta Emílio Domingos, pupilo de Patrícia Monte-Mor, olha para a câmera com os braços cruzados sobre o peito. Ele é um homem de meia idade, com barba e cabelos pretos. Ele usa uma camisa de manga comprida azul clara.
Osmose Filmes/ Reprodução
Cineasta e antropólogo com mais de 20 anos de carreira, Emílio relembra os ensinamentos da pioneira da antropologia audiovisual no Brasil

O interesse de Emílio Domingos pela questão da antropologia visual e do cinema etnográfico começou ainda na graduação, quando fazia ciências sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Durante a primeira edição do Festival do Cinema Etnográfico do Rio de Janeiro, o então estudante se fascinou pelo universo.

Em meio a risos, o cineasta conta que na primeira participação do festival, apenas como espectador, não conseguia sair do cinema: “Acabava uma sessão, eu pegava mais um ingresso e entrava na próxima. Foram uns três dias assim, à tarde e à noite vendo filmes”.

Hoje professor da Pós-graduação em Cinema Documentário da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ), seus documentários abordam uma cidade de afetos e artes, e trazem um tom crítico sobre a situação da cultura periférica brasileira – sempre mostrando seus personagens e estudos de caso com muito respeito.

Reconhecido internacionalmente, Emílio Domingos é um dos cinco brasileiros que são membros e têm direito a voto nas premiações do Oscar, da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos. Neste ano, ele também integra a equipe do IV Festival Internacional do Cinema Etnográfico do Pará (FIFEP) como presidente do júri da Prêmio Jean Rouch de Filme Etnográfico e do Prêmio Patrícia Monte-Mor de Cultura Popular.

Domingos foi orientando e colega de Patrícia Monte-Mor, considerada uma das pioneiras da antropologia audiovisual no Brasil, pois foi responsável pela organização da Primeira Mostra de Filme Etnográfico, realizada no Rio de Janeiro, em 1993, inspirando outros festivais em diferentes estados brasileiros. Após sua morte no início deste ano, por conta da Covid-19, o FIFEP decidiu homenageá-la com um prêmio especial nesta quarta edição, para marcar a relevância de seu trabalho.

Como sua participação no Oscar impacta e se relaciona à sua trajetória?
Eu recebi com muita surpresa o convite para integrar a Academia do Oscar, porque meus filmes estão longe do que as pessoas geralmente imaginam como cinema hollywoodiano. Isso me deixa muito feliz, porque, no fim das contas, é um reconhecimento do meu trabalho ao longo dos últimos vinte anos. Mesmo assim, tenho muito mais a agradecer à etnografia e à antropologia visual, bem como à minha formação como cientista social, do que a Hollywood. Essa relação profunda com o filme etnográfico é bem mais antiga do que o convite. Começou quando eu era um estagiário do Festival do Cinema Etnográfico do Rio de Janeiro. Foi a mostra que abriu as portas para esse universo.

Sempre achei interessante a forma como o audiovisual consegue ampliar o diálogo entre as pessoas de uma forma muito mais acessível. Durante a minha carreira, sempre foi muito importante manter essa conversa com o outro, e acho que estar na Academia me possibilita expandir esses horizontes, além de dar voz a um tipo de produção que, novamente, não é o que as pessoas esperam de um filme hollywoodiano.

Qual a importância de cineastas que trabalham com etnografia, de maneira menos comercial, ocuparem esses espaços?
A antropologia é muito importante para a sociedade de maneira geral. A alteridade, essa tentativa de descrever e entender o lado do outro, é muito importante para pensarmos sobre como o mundo realmente funciona e sairmos de nossas bolhas. A intolerância é uma afirmação da indiferença, e um dos papeis da antropologia é desafiar isso e buscar pelos pontos em comum entre as pessoas. Em meus filmes, tento fazer com que a etnografia dialogue com boa parte da população. Fazer um filme etnográfico com uma linguagem acessível, para além do aspecto acadêmico, não só é possível como muito importante. Aliar uma pesquisa densa com uma boa narrativa é muito atrativo, portanto, mais eficaz.

A alfabetização da plateia na linguagem do cinema etnográfico é um assunto em comum entre você e Patrícia Monte-Mor. Como os festivais etnográficos do país contribuem para esse letramento?
A Patrícia pensava a Universidade como um espaço extremamente democrático. Acessibilidade era uma de suas lutas pessoais, e ela ficou conhecida por promover sessões de cinema em jardins e museus abertos, para toda e qualquer pessoas ver. Essas sessões juntavam moradores da vizinhança, velhinhas, antropólogos, fãs de cinema, estudantes – todo o tipo de gente no mesmo lugar.

Filmes etnográficos têm capacidade de traçar um grande perfil do Brasil e do Mundo, porque colocam na tela o que está sendo pesquisado e quais questões estão sendo discutidas em um determinado período. Os festivais são formas popularizar a antropologia e, ao mesmo tempo, fazer com que as pessoas tenham acesso a informação e conhecimento qualificados. Eu mesmo conheci o Círio de Nazaré no Rio de Janeiro, vendo filmes etnográficos sobre a festa.

Depois de todos os anos de trabalho e convivência com a Patrícia Monte-Mor, como é participar de um festival que vai homenageá-la?
A Patrícia era uma pessoa muito especial, foi minha grande amiga e mestra. Depois da vinda dela ao Festival do Pará, pouco antes de sua morte, uma das últimas coisas que conversamos foi sobre a experiência dela – ela estava muito feliz por estar voltando a frequentar esses espaços depois dos momentos mais tensos da pandemia. Então fico muito feliz pelo trabalho dela estar sendo merecidamente reconhecido no meio da antropologia audiovisual, além de, claro, ter sido uma semente do movimento com seu trabalho brilhante. Tenho uma relação afetiva com o festival, pela valorização da memória do que ela construiu. É muito bonito que o FIFEP tenha criado um prêmio para que ela seja sempre lembrada e celebrada.

Quais são suas impressões sobre as obras selecionadas para o IV FIFEP?
É muito bom ver que a produção audiovisual etnográfica está retomando o trabalho e não parou com a pandemia. Cineastas conseguiram continuar produzindo com altíssima qualidade, mesmo depois desse período tão difícil que passamos. Tanto em quantidade e quanto em qualidade, estamos vendo uma retomada simbólica da produção audiovisual etnográfica. O festival desse ano representa isso, uma renovação depois desse período tão tenso. Minhas expectativas são as melhores possíveis. Já conhecia alguns nomes estrelados, como o Takumã Kuikuro, mas a seleção inteira de filmes está especial.

Ana Vitória Monteiro Gouvêa é graduanda em jornalismo da Universidade Federal do Pará (UFPA). Foi bolsista de iniciação científica, além de colaboradora da Revista Brasileira de História da Mídia e do projeto DivulgAí. Estagia na TV Liberal e está produzindo um documentário sobre Barcarena, vencedor do Prêmio Jovem Jornalista 2022 do Instituto Vladimir Herzog.
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