Alessandro Campos: A janela do Pará para o filme etnográfico

Alessandro Campos, coordenador do Festival Internacional do Filme Etnográfico do Pará, sentado ao lado de um homem indígena.
Foto: Alessandro Campos/Arquivo pessoal.
Coordenador do Festival Internacional de Cinema Etnográfico do Pará, o antropólogo Alessandro Campos diz que filmes etnográficos devem ser feitos em conjunto com povos indígenas

Foi no prédio atrás do bloco central do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal do Pará (UFPA), que me encontrei com Alessandro Campos, sociólogo e antropólogo da instituição. Era manhã, mas os termômetros já subiam – um clima típico dessa época do ano em Belém, onde de 20 a 26 de outubro ocorrerá o IV Festival Internacional do Filme Etnográfico do Pará (FIFEP).

Conversamos, talvez simbolicamente, no Laboratório de Antropologia, onde foi desenhado o primeiro rascunho de um festival paraense que celebrasse o cinema etnográfico e indígena surgiram. Junto com alguns amigos, coordenados pela (também amiga) Denise Cardoso, Alessandro formou, em 2012, um grupo de estudos, o Visagem, para discutir Antropologia Visual, que utilizada o filme como recurso metodológico para produção científica antropológica.

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Do grupo, nasceu o I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica (EVAAM), em 2014. Com a intermediação da Associação Brasileira de Antropologia a Mostra Itinerante de Filme Etnográfico abriu um espaço para receber alguns filmes. “Com esse espacinho para enviarem filmes etnográficos, chegaram muitas produções! E no segundo EVAAM também. Foi aí que eu pensei em organizar um festival”, explicou Alessandro.

O antropólogo acrescentou que a inspiração para o festival também veio de outros lugares, como a Mostra Internacional do Filme Etnográfico no Rio de Janeiro e o Festival de Filme Etnográfico do Recife, ambos organizados por queridos amigos.

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A primeira edição do FIFEP aconteceu em 2017, na Casa das Artes. Ainda era pequeno, com poucas inscrições, mas chamou tanta atenção que recebeu o prêmio de Menção Honrosa pela Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). A partir de 2019, o festival “pegou mais corpo”, nas palavras do coordenador, porque começou a ter mais contato com festivais e cineastas da América do Sul e da Europa.

Na última edição, em 2021, a configuração já estava bem mais próxima a da edição desse ano, com destaque para a criação do prêmio Divino Tserewahú, para filmes indígenas, além do já existente prêmio Jean Rouch, para filmes etnográficos.

A linha entre o que é um filme indígena e um filme etnográfico é bem tênue. Pode explicar essa diferença? Como vocês analisam os filmes?
Existe uma confusão conceitual do que é cinema indígena e etnográfico. No festival, fazemos editais totalmente diferentes. No edital para o Jean Rouch, descrevemos o que se entende por filme etnográfico, que tem proximidade com documentários. Há pessoas mais radicais, que dizem que o filme só etnográfico se for feito por um antropólogo e a partir de uma pesquisa, mas não somos tão rigorosos. Para o FIFEP, o filme etnográfico conta uma história sobre um povo, sobre uma cultura. Agora cinema indígena é um conceito mais restrito. O FIFEP entende a categoria como filmes feitos por indígenas, abordem eles a temática indígena ou não. Nessa categoria, entra muita coisa, desde filmes sobre rituais, festas, luta pela terra e conflitos até ficção e clipes de música.

Estamos em um contexto bem diferente da última edição do festival, que aconteceu ano passado, ainda com certa incerteza em relação a vacinas contra a Covid-19 e o estado da pandemia. Com a volta das programações presenciais, mudou alguma coisa na participação? Aumentaram as inscrições?
Muito, para veres só como a pandemia mudou tudo. Recebemos cerca de 180 inscrições em 2021, semelhante a 2019. Neste ano, com o apoio da Fundação Cultural do Pará, da Secretaria de Estado de Cultura, esse número subiu. Isso é muito importante e mostra que o setor cultural precisa de recursos, sendo a Lei Aldair Blanc um dos maiores exemplos de fomento. A quantidade de filmes lindos que recebemos por meio dela é absurda. Foram mais de 250 filmes etnográficos e 65 filmes indígenas. É o recorde de inscrições no FIFEP.

Neste ano, foi criada ainda mais uma premiação – o prêmio Patrícia Monte-Mor. Como surgiu essa homenagem?
Esse prêmio não tem uma inscrição especial. Todos os inscritos para as categorias Jean Rouch e Divino Tserewahú estão automaticamente concorrendo ao prêmio Patrícia Monte Mor, que homenageia a queridíssima Patrícia, falecida neste ano por Covid-19. Ela participou do festival em 2021, e adorou. Passou seis dias aqui conosco, sempre com todas as precauções, e acabou se infectando lá no Rio de Janeiro. É uma alegria triste, sabe? Sua morte foi uma tragédia, mas é um privilégio ter conhecido uma pessoa tão simpática, humilde e maravilhosa, por tudo o que ela significou para nós e para o cinema etnográfico. Patrícia Monte-Mor é considerada uma das pioneiras da Antropologia Audiovisual no Brasil, pois foi responsável pela organização da Primeira Mostra de Filme Etnográfico, realizada no Rio de Janeiro, em 1993.

Além da Patrícia, quem são os outros dois homenageados?
Representando a Patrícia vem o Emílio Domingos, um dos grandes pupilos dela. Ele é uma das cinco pessoas aqui do Brasil que têm o direito de voto no Oscar, e também é presidente do júri do Jean Rouch. Além do Emílio, também vamos ter a antropóloga Selda Costa, nossa grande parceira de Manaus, e Etienne Samain, teólogo e antropólogo belga que está no Brasil desde 1973. Quem recebe a homenagem de cinema indígena é o Takumã Kuikuro, grande cineasta da aldeia indígena Kuikuro que está na Europa, lançando seu novo filme, “A Febre da Mata” (“Jungle Fever”). Os prêmios homenageiam Jean Rouch, etnólogo francês que criou o subgênero etnoficção, e Divino Tserewahú, cineasta Xavante da aldeia de Sangradouro, no Mato Grosso. Mas teremos também muita gente incrível participando das mesas, como o o filósofo e pensador indígena Ailton Krenak.

O cinema etnográfico é, muitas vezes, criticado por ser “academicista”. Como o FIFEP aborda essa questão?
Eu e a Denise Cardoso, a outra coordenadora do festival e antropóloga da UFPA, sempre nos preocupamos em trazer uma imagem que mescle o acadêmico com o “real”, vamos assim dizer. O FIFEP nasceu na universidade, nosso grupo de pesquisas está atrelado à UFPA, mas não fazemos questão de nos prendermos a esse ambiente. Muita gente pensa de que academia é um lugar habitado por pessoas que são cheias de si, e é isso que temos de mudar. Queremos criar uma plateia para esse tipo de produção, o que a Patrícia de Monte-Mor chamava de alfabetização audiovisual. Filmes e documentários são uma potência, o audiovisual uma capacidade de mostrar a realidade através das lentes, das histórias, e diminuir a distância entre o espectador e o tema abordado. Povos indígenas sempre estiveram do outro lado da câmera, como personagens. Agora são eles que fazem os filmes, mostrando o que acham que deve ser mostrado. Essa quebra de paradigma é importante para quebrar, também, preconceitos.

Como a Amazônia – e o Pará, mais especificamente – se configuram no campo da Antropologia Visual e da criação de filmes etnográficos e indígenas? O interesse em produzir e consumir esse cinema é alto?
Extremamente. Vou dar dois exemplos. O primeiro é o coletivo Katu, onde fiz minha pesquisa de doutorado sobre o povo Ka’apor, do Maranhão. Em 2018, me pediram para fazer um filme com eles, e coletivo assinou o roteiro. Dessa colaboração, nasceu “Katu”, que ganhou o prêmio de melhor filme etnográfico no Festival do Recife. Eles participaram de todo o processo, sobre o que queriam mostrar. O outro exemplo é que, espalhados na nossa região, há muitos coletivos de produção audiovisual: do Xingu, no Mato Grosso, até no Guamá, aqui no Pará. Os Guaranis, em particular, têm uma produção muito grande. O Festival do Pará é só uma janela para mostrar as ótimas produções que esses cineastas estão fazendo.

Qual a importância de iniciativas como a do FIFEP?
Iniciativas assim são muito importantes se pensarmos a produção audiovisual como uma produção compartilhada. Precisamos pensar não só naquilo que queremos mostrar, mas também no que podemos mostrar. Todos os grandes cineastas, grandes pesquisadores da Antropologia Visual e da etnografia têm isso como base. O cinema é compartilhado. Precisa muito dessa dissolução da autoridade do diretor – coisa muito presente na academia, a autoridade. Na Antropologia Visual, nos vemos em constante questionamento dessas autoridades, desses símbolos de poder. Podemos nos propor a produzir um filme sobre alguém, sobre uma cultura, mas seus membros devem saber tudo o que vai ser exibido. Tudo passa por eles. O filme não é só meu, é nosso.

Ana Vitória Monteiro Gouvêa é graduanda em jornalismo da Universidade Federal do Pará (UFPA). Foi bolsista de iniciação científica, além de colaboradora da Revista Brasileira de História da Mídia e do projeto DivulgAí. Estagia na TV Liberal e está produzindo um documentário sobre Barcarena, vencedor do Prêmio Jovem Jornalista 2022 do Instituto Vladimir Herzog.
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