Mercúrio: o monstro silencioso que habita as águas da bacia do Tapajós

Foto aérea mostra área enlameada onde ocorre garimpo na Amazônia.
Vista aérea de área de garimpo. (Foto: Still de 'Amazônia: A Nova Minamata?'/ Divulgação)
Novo documentário de Jorge Bodanzky estreia em outubro e aborda os impactos da contaminação por mercúrio em rios amazônicos

As imagens que abrem o documentário “Amazônia, a nova Minamata?” explicitam um argumento que subjaz a toda estrutura do filme: para os povos indígenas, engajar-se na luta é condição de sobrevivência. O ano é 2021, e apesar dos riscos representados pela pandemia de Covid-19, os povos originários fazem uma mobilização em Brasília para protestar contra a tese do marco temporal – em julgamento no Supremo Tribunal Federal – e contra a agenda anti-indígena adotada pelo governo de Jair Bolsonaro.

A questão central abordada pelo documentário de Jorge Bodanzky é apresentada por Alessandra Korap, liderança Munduruku do Médio Tapajós, no Pará. Em frente ao Congresso Nacional, ela discursa contra a invasão garimpeira ao seu território, e os rastros de violência e de contaminação por mercúrio deixados pela atividade ilegal.

Vista aérea das cicatrizes do garimpo são vistas em neon contra fundo preto.

As cicatrizes do garimpo. (Foto: Still de ‘Amazônia: A Nova Minamata?’/ Divulgação)

Se, do interior da Terra Indígena Munduruku, o cacique Jairo Saw explica que os Munduruku são feitos do barro dali, do alto, imagens aéreas mostram as cavas de lama abertas pelo garimpo no território – imensas cicatrizes visíveis na floresta, e que começam a gerar danos também nos corpos de muitos integrantes daquele povo.

“Essa lama contém chumbo, magnésio, mercúrio, metais pesados que causam doenças”, explica o neurologista Erik Jennings, que percorre aldeias do Alto Tapajós para examinar os indígenas e coletar amostras de sangue e cabelos. Bodanzky acompanha as expedições feitas em 2019 pela equipe do neurologista a aldeias cujo acesso se dá por um avião monomotor, e longos percursos pelos rios.

Mais ou menos na mesma época, pesquisadores da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) avaliam o impacto do garimpo nas aldeias do Médio Tapajós. Eles alertam para o fato de que os sintomas de intoxicação por mercúrio podem se confundir com os de outras doenças. E o mais grave: a substância atinge facilmente o sistema nervoso central e, no caso de mulheres grávidas, o dano é ainda maior, com possibilidades de comprometimento do desenvolvimento neurológico dos bebês.

A Bacia do Tapajós, imemorialmente ocupada pelo povo Munduruku, é a região que mais extrai ouro de garimpo no Brasil. Segundo a Agência Nacional de Mineração, só em 2021, o garimpo movimentou oficialmente mais de 4 bilhões de reais no município paraense de Itaituba, onde se localiza a aldeia de Alessandra Korap. No documentário, uma sequência de imagens da cidade revela como a vida ali gira em torno do garimpo: placas e fachadas de lojas anunciam a compra ou venda ouro, escavadeiras enfileiradas num pátio sugerem que o garimpo se industrializou com caras e pesadas máquinas que arrancam o ouro a dezenas de metros de profundidade, ou que escavam o leito dos rios.

Na foto, Alessandra Korap, liderança Munduruku do Médio Tapajós, no Pará, recebe pintura facial. Ela fixa o olhar em algo distante, virando os olhos para a direita, enquanto uma mão com pincel faz traços com tinta preta em seu queixo

Alessandra Korap, liderança Munduruku do Médio Tapajós, no Pará, apresenta a questão da invasão garimpeira ao seu território no documentário de Bodanzky. (Foto: Still de ‘Amazônia: A Nova Minamata?’/ Divulgação)

Se o maquinário muda a escala do negócio e, consequentemente, de seu impacto socioambiental, um dos acertos do filme é mostrar a figura do dono de garimpo, aquele que lucra com a destruição da floresta e com a exploração do trabalho do garimpeiro. Geralmente, quando se fala em garimpo ilegal e nos impactos causados aos territórios e às vidas indígenas, a vilania recai apenas sobre os garimpeiros. Espécie de escudo social para o empresário, esses trabalhadores precarizados são retratados com as roupas e mãos sujas, como se a lama do ofício lhes manchasse de forma definitiva também a reputação. Nesse jogo de visibilidades e invisibilidades, Bodanzky opta por deixar ao dono do garimpo a tarefa de expressar a defesa do mercúrio como o que há de “mais eficiente para a ‘pega’ do ouro”.

Sem cair no maniqueísmo que ronda a questão, o documentário também mostra os indígenas que defendem a atividade. Mas, ao contrário do discurso governista, aborda a teia de vulnerabilidades que torna alguns grupos reféns do garimpo. Um agente da polícia federal explica que o dano ambiental pode acarretar a perda dos meios de subsistência numa comunidade até então autônoma e abrir as portas para a mineração ilegal. A partir daí, multiplicam-se os conflitos internos e ocorre uma escalada da violência.

Por meio de imagens feitas com telefones móveis pelos Munduruku, é possível ver o incêndio na casa da liderança Maria Leusa Kaba, provocado por pessoas ligadas ao garimpo em maio de 2021.

Vídeos amadores e trechos de matérias de TV, sobrepostos a áudios de garimpeiros – provavelmente circulados em grupos de WhatsApp – revelam a reação a uma operação da PF contra a extração ilegal de ouro realizada nas terras indígenas Sai Cinza e Munduruku também em 2021.

Um grupo de manifestantes vai ao aeroporto do município de Jacareacanga e ameaça destruir helicópteros dos agentes de segurança responsáveis pela operação. Situação semelhante é vivenciada pelo médico Erik Jennings, ao pousar nesse mesmo aeroporto, a caminho das aldeias do Alto Tapajós. Ele pretendia entregar os resultados dos exames feitos em 2019 ao povo Munduruku, mas é intimidado por indígenas pró-garimpo, e impedido de seguir viagem.

Uma série de depoimentos – de policiais, procuradores, pesquisadores e lideranças indígenas – traça um panorama do garimpo ilegal, dos danos por ele causados e da facilidade com que se imprime verniz de legalidade ao ouro extraído de áreas protegidas. Mas o grande impacto do documentário fica por conta daquilo que o título enuncia: a aproximação da tragédia em curso no Tapajós com o que ocorreu em Minamata, no Japão.

A partir de 1930, uma fábrica de produtos químicos, a Chisso Corporation, começou a despejar seus efluentes nas águas que banhavam o município de Minamata. Duas décadas depois, os habitantes da pequena cidade costeira do sul do Japão notaram a morte de peixes e aves e, e o aparecimento de cães e gatos com deformidades.

O mercúrio, utilizado para a fabricação de plástico, havia entrado para a cadeia alimentar e se espalhava, principalmente, pelo consumo de peixe. Em 1956, surgiram os primeiros casos da doença que ficou conhecida como “Mal de Minamata”. Perda de visão, sérios comprometimentos na coordenação motora e muscular acometeram a população local. As ocorrências mais graves da doença levavam à morte no prazo de um mês após o surgimento dos primeiros sintomas. E muitas crianças começaram a nascer com danos neurológicos.

“Uma vez que a pessoa esteja intoxicada com mercúrio, não existe reversão dos sintomas”, alerta Erik Jennings logo antes de a primeira imagem do Mal de Minamata aparecer em tela. A essa altura, o espectador já havia escutado que a atividade garimpeira ocorre há mais de 30 anos na bacia do Tapajós e que os estudos têm mostrado altos níveis de mercúrio nos cabelos e no sangue dos indígenas. Montadas após essas informações, as fotos das mãos deformadas pelo Mal de Minamata geram um efeito de assombro. E ele ocorre porque a contaminação mercurial age tal qual um monstro nas histórias de horror: sem aparecer, faz com que sua presença seja sentida pela devastação que causa, ou seja, tarde demais para conter o avanço da epidemia.

Na impossibilidade de levar os Munduruku ao Museu Histórico do Mal de Minamata, Bodanzky vai ao Japão, registra parte do acervo, e grava o depoimento de uma sobrevivente de Minamata, que carrega no corpo os estragos feitos pelo mercúrio. De volta ao Tapajós, o diretor persegue um propósito semelhante ao da funcionária do museu, que afirma trabalhar ali para “contar a história e evitar que a doença se repita”. As lideranças Alessandra Korap e Jairo Saw assistem às imagens na tela do celular. Numa das aldeias, uma sessão de cinema é improvisada para mostrar Minamata à comunidade.

O cacique Jairo Saw, do povo Munduruku, olha diretamente para a câmera. O close mostra seu rosto, o peito nu e os colares coloridos em seu pescoço.

O cacique Jairo Saw, do povo Munduruku. (Foto: Still de ‘Amazônia: A Nova Minamata?’/ Divulgação)

Vistas pelos indígenas, as imagens dos filhos de Minamata nos colocam diante de uma montagem de tempos, em que passado, presente e futuro não obedecem a uma linearidade. No perturbador espaço criado entre os olhares e as imagens, cabe o arrepio da anunciação de uma tragédia. A sensação de que o monstro está ali, é invisível e já está agindo se intensifica no corte para a imagem seguinte: o pezinho deformado de uma criança Munduruku com problemas neurológicos. Examinada pela primeira vez na aldeia, agora ela é levada pelos pais ao consultório do neurologista.

O tom de denúncia não é uma novidade na filmografia de Bodanzky. Em 1974, “Iracema – uma Transa Amazônica” levou para o mundo as primeiras imagens de queimadas na Amazônia e fez um duro questionamento aos projetos ufanistas da ditadura militar para a região. Em “Amazônia, a nova Minamata?”, o cinema de intervenção de Bodanzky parece empreender um esforço para criar um sistema de visibilidades em torno da contaminação por mercúrio.

Apesar de fartamente documentado no Tapajós, o problema esbarra na incredulidade das pessoas, devido ao fato de a substância não ter cheiro ou gosto, e por não alterar a aparência ou o sabor do peixe. Num dos momentos finais do filme, o cacique Jairo Saw faz um alerta: é possível que os peixes consumidos nas cidades (de Santarém a Itaituba) também estejam contaminados. Nas entrelinhas dessa fala, nota-se uma estratégia para angariar aliados na luta contra o garimpo, já que os danos são se circunscrevem apenas aos indígenas. As palavras de Jairo revelam também algo que acompanha o espectador após a subida dos créditos: a consciência de que algumas vidas são mais matáveis e importam menos do que outras.

O documentário estreia na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, no dia 27 de outubro. E é ainda mais urgente no Brasil de 2022, que deu aos lobistas da mineração e do garimpo grandes vitórias nas urnas.

“Amazônia, a Nova Minamata?” na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Confira mais detalhes no Instagram do filme

Thaís Borges é mestranda em Sociologia e Antropologia na universidade Federal do Pará (UFPA). Formada em Jornalismo pela Universidade de Brasília (UnB), estudou cinema na Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, em Cuba. “O Tempo que Resta” (2019), seu primeiro longa-metragem, venceu o Prêmio Candango de Melhor Longa Metragem, pelo público e pela crítica, no 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

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