Pisar Suavemente na Terra: A primeira cacica dos Akrãtikatêjê
Filha do Cacique Payaré, Tônkyre carrega um grande legado. Lutou para recuperar seu nome indígena, sua identidade e resistir contra a Eletronorte
Aos 53 anos, Tônkyre Akrãtikatêjê (na língua Jê-Timbira) é a primeira cacique mulher da comunidade indígena Akrãtikatêjê e primeira líder feminina da etnia Gavião Akrãtikatêjê. Seu povo está localizado na Terra Indígena Mãe Maria, sudeste do Pará, na cidade de Marabá, onde vivem quase 300.000 pessoas.
Nem todos os habitantes de Marabá são tratados da mesma forma. A vida de Tônkyre – até mesmo seu nome – é exemplo disso. Em 1975, quando seu pai foi registrar os filhos no cartório, os nomes indígenas foram dispensados como “nomes de animais”. Depois disso, a cacique passou a ser chamada pelos cupen (não indígenas, brancos) de Kátia da Costa Valdenilson.
Tônkyre ‘Kátia’ carrega um grande legado. É filha de Hõpryre Ronre Jopikiti Payré, o Cacique Payaré, conhecido por estudiosos e pessoas da região paraense como um lutador incansável para que os jovens indígenas aprendessem as histórias e tradições de seu povo. Ele liderava o povo Gaviões da Montanha nos anos 1970, quando profundas transformações sociais na região foram gestadas pelo desvio e barramento do rio Tocantins para construção da hidrelétrica de Tucuruí, durante a ditadura militar. Na fase inicial, a obra deslocou cerca de 70 mil pessoas de povos indígenas, “colonos”, extrativistas, pescadores, trabalhadores rurais e moradores de ilhas, vilas e cidades à jusante. Na segunda etapa, mais de 11 mil pessoas foram deslocadas.
O povo Gaviões da Montanha tinha sua aldeia precisamente no lugar decidido para construção da hidrelétrica. A Aldeia e “Praia dos índios” Gaviões da Montanha virou UHE-Tucuruí.
Os indígenas Akrãtikatêjê foram deslocados pela Eletronorte, responsável pela usina, para a Terra Indígena Mãe Maria. O então jovem Cacique Payaré, porém, retornou com sua família para a antiga aldeia à revelia da decisão da empresa. Em um confronto com as autoridades, Payaré sofreu um atentado e seus filhos, inclusive Kátia, permaneceram sozinhos na aldeia. Sua mãe foi à procura de Payaré e, com o auxílio de vizinhos, as crianças conseguiram suportar a ausência dos pais. Recuperado, Payaré e sua família foram obrigados a retornar para a Terra Indígena Mãe Maria, acolhidos por outros povos indígenas.
Desde 1984, Payaré passou a organizar ações contra a Eletronorte pela recuperação de suas terras. Em 2009, os Akrãtikatêjê fundaram uma aldeia nova, com o nome da própria etnia, dentro da reserva (onde estão até hoje). E apenas em março de 2011, venceram um processo que determinou que a Eletronorte adquirisse uma nova terra como compensação à expropriação de Tucuruí.
Naquele mesmo ano, o líder disse à Tônkyre que não queria mais ser cacique e passaria o cargo para ela. O cacique é o responsável por toda terra indígena – faz as regras, resolve os conflitos, organiza a caça, vai a reuniões com pessoas de fora e desenvolve projetos. Assim como todos na aldeia, ela ficou surpresa com a convocação. Nunca havia existido um cacique que fosse mulher e Kátia tinha quatro irmãos homens.
“Mulheres estão sempre na frente. Por que não tentar?”, seu pai perguntou. Desde que assumiu a responsabilidade, mesmo que ande na rua “como homem branco”, sem pinturas ou adereços, na comunidade está sempre pintada para se fortalecer e lembrar que está em constante resistência.
“Meu pai sempre me preparou, desde Tucuruí”, relatou Kátia em 2013, entrevistada para o artigo “Cacique do Povo Akrãtikatêjê: narrativas sobre vida, trabalho e conflitos no território etnicamente configurado”.
Segundo ela, seu pai dizia: “Tu vai ter que aprender a atirar, aprender a jogar flecha porque se um dia os cupen me matarem, tu vai embora. Porque tu tá vendo a minha luta com a Eletronorte! Vocês estão vendo que a Eletronorte destruiu a nossa casa”.
A Eletronorte ofertou aos Payaré um pagamento de R$ 50 milhões em imóveis, um caminhão e uma caminhonete. “O meu pai não aceitou porque ele pensou no povo: ‘Eu não quero pra mim, eu quero pra todo mundo’. Esse era o meu pai”, contou.
Mãe de oito filhos (perdeu uma no parto), com 17 netos e uma bisneta, Kátia acredita que o maior desafio dos povos indígenas é engajar a juventude na causa. Afinal, são os jovens que carregarão a luta para o futuro.
Em sua aldeia, ela dá aulas de português para que a comunidade indígena consiga se comunicar – e enfrentar – o homem branco. “Minha vontade é defender o meu povo do impacto social, que é grande”.
“Cada vez que [a Eletronorte] passa, tira um pedacinho, um pedacinho, e esse pedacinho vai indo. Nós queremos aprender para defendermos esse pedacinho que nos resta porque esse é muito importante. É a nossa segurança, é o que nos alimenta, é o que nos criou, é que criou nossos filhos e nossos pais”.
Para Tônkyre, os Akrãtikatêjê não são um povo de ficar de braços cruzados. Não vão deixar de buscar uma boa vida. E a boa vida passa, essencialmente, pelo cultivo e resistência da sua cultura e origem.
Pisar Suavemente na Terra
No documentário Pisar Suavemente na Terra, que estreia na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 29 de outubro, Tônkyre conta a história de luta de seu povo contra os grandes empreendimentos na Amazônia. Ao lado de Manoel Munduruku, cacique do povo Munduruku, de José Manuyama, indígena do povo Kukama no Peru, e do líder indígena Ailton Krenak, Kátia mostra que continuará resistindo pelos direitos de seu povo.
Um filme de Marcos Colón
Com as participações de:
Kátia Akrãtikatêjê, Manoel Munduruku, José Manuyama & Ailton Krenak
Roteiro: Marcos Colón & Bruno Malheiros
Fotografia: Bruno Erlan & Marcos Colón
Edição & trilha original: Diego Orix
Produção executiva: Erik Jennings & Marcos Colón
Direção e produção: Marcos Colón
Produção: Amazônia Latitude Films
Filmado no Brasil, Peru e Colômbia
Duração: 73 min | País: EUA/BRASIL | Ano: 2022 Estreia: 29 de outubro de 2022