Cenas de uma avenida
Na Presidente Vargas, em Belém, convivo com um naipe de personagens de fazer inveja a qualquer escritor
Moro desde que nasci na Presidente Vargas, em Belém. Trabalho a pouco mais de cem metros de meu apartamento. Convivo com um naipe de personagens de fazer inveja a qualquer escritor. A cidade cresceu, eles invadiram a avenida que hoje está quebrada, suja e malfalada. Diariamente vou passando e cumprimentando todos.
Há Baldo, que toma conta de carros na praça. Magrinho, bigodinho, engraçado, cheio de mesuras, é um bom homem a se queixar de “Navalha”, um moreno com passagem na polícia que o está ameaçando. Conversamos sobre o nosso Flamengo, mas sobre Paysandu, seu clube de paixão, nenhuma palavra. Ele sabe que sou do Remo.
Há Zafá, que sempre me mostra no jornal as “gostosas do dia”, com comentário malicioso. Falo com o “Macho”, um cearense arretado que trabalha com frete em uma camionete velha. Acabou de trocá-la por um carro novo, na qual passa o dia passando o pano.
Os motoristas de táxi do ponto em frente ao INSS. Seu Wilson me pergunta pelo “bonitão”, que é meu Golden “Antonio”. Os engraxates e outros que tomam conta dos carros. MC do Senhor Jesus, um rapper que vende cartões de memória para celular e vive anunciando um grande show que nunca acontece.
Na esquina com a Aristides Lobo, há uma favela no espaço que, ao que parece, é dividido entre Prefeitura e Basa. Barracos fazem de conta que vendem bugigangas. Homens jogam cartas. Atrás do paredão, um sem-número de cadeiras e um restaurante popular com zero de higiene, além de um banheiro improvisado, imundo.
Do outro lado da rua, na calçada dos Correios, vagabundos, hippies e camelôs afrontam quem passa. E na esquina da Manoel Barata? Um “corredor polonês” é formado por vendedores de comida ao ar livre de um lado e do outro, com clientes comendo de maniçoba a caruru. Higiene? Passam os pratos em uma bacia suja e vamos que vamos.
Devem ser, todos eles, muito importantes, perigosos. Sai governo, entra governo e eles ficam.
Um homem caminha pela parada de ônibus entre as pessoas que ocupam o asfalto, não se restringindo ao passeio, lotado por ambulantes. Aos berros, ele faz a leitura da Bíblia. Não há como não ouvir a voz do Senhor naqueles decibéis, mas entra por um ouvido e sai pelo outro.
Atrás da “Presidente Vargas”, a “Primeiro de Março”. Nela, ficam os crackeiros, que expulsaram as prostitutas e agora passam o dia lagarteando ao sol, arengando uns com os outros, aguardando a chegada de uma mulher franzina, sem seios, que se veste e procede como um menino, e traz as petecas de crack. Lá no Cuíra, nós os chamamos de “nossos imãs de geladeira”, pois ficam colados à parede do teatro.
Pessoas se juntam para olhar alguém que está caído. É Blake, originalmente “Break”, por conta de uma deficiência física, provavelmente poliomielite, que o deixou com uma das pernas mais finas e lhe causa andar manco. Foi esfaqueado. Chamam o Samu que chega para socorrê-lo. Querem levá-lo ao PSM. Blake não aceita. Está rebarbado. Cabelos como daquele colombiano que jogou uma Copa. Voz de barítono. É largado com alguns curativos.
A noite chega e aquela multidão que circula por trabalho vai voltando para suas casas. O silêncio toma conta do nosso centro. Carros de Polícia passam e inspecionam os crackeiros que ficam contra a parede. Nunca acham nada. Impressionante.
Vou até a janela ver a lua e ouço o canto choroso de um lúmpen sentado sobre um colchão velho e imundo. Ele encerra a canção e olha para mim. Bato palmas. Ele responde dizendo que a próxima canção, do Evangelho, seria para mim. E torna a cantar.