Isabella Thiago de Mello

Pesquisadora, escritora, roteirista, produtora e atriz. É formada em Interpretação e Teoria das Artes Cênicas pela Unirio e preside o “Instituto Thiago de Mello”

A Lenda do Boto

A jovem que ele escolher ficará enfeitiçada, não tem como fugir. Ele possui seu corpo e sua alma. O namoro se dá no rio

Ilustração de Fabricio Vinhas a partir de foto de Marcos Colón/Amazônia Latitude

Para José Ribamar Bessa Freire

O Boto chega em dia de festa e vem de fora. Ele nunca é do lugar. Bonito, bem vestido, geralmente de branco, usa chapéu de palha para cobrir o buraco que tem na cabeça. Ele se destaca, tem o dom da palavra, é músico, poeta, repentista, canta e toca violão. Ganha a admiração de toda gente. Muito educado, pedirá permissão aos pais para dançar com a moça a noite toda. A jovem que ele escolher ficará enfeitiçada, não tem como fugir. Ele possui seu corpo e sua alma. O namoro se dá no rio, quando, depois de um último beijo, ele mergulha e desaparece na água. Dias se passam, a menina apaixonada quererá ficar a maior parte do tempo na beirada; vai lavar roupa no rio de manhã, vai lavar louça no rio à tarde, e no início da noite, mesmo chovendo, ela terá muito calor e vai querer tomar banho de rio. Ela sabe que é o Boto e que ele a espera na água.

***

Interior da Amazônia, todas as cidades vizinhas estavam esperando a Festa do Caju em Barreirinha. Tia Francisca conta − nessa época seu marido Trindade ainda estava vivo − que aquele ano a colheita tinha sido farta, todo o arraial estava na expectativa de boas vendas, o padre aproveitou para fazer quermesse, tinha barraca em volta da praça, na rua do porto e na rua principal. A prefeitura contratou uma banda de música, o Chapéu de Palha tocou forró até o dia clarear. Veio gente de todo lugar, de Parintins, de Nhamundá, de Manicoré, de Itaquatiara, de Boa Vista, de Manacapuru, do Paraná do Limão, de Bom Socorro, até de Manaus, barco que não acabava mais. As luzes da freguesia se misturavam com as estrelas do céu. “Isso é desde os tempos dos antigos: toda fartura a gente tem que comemorar,” dizia a sábia curandeira, com sua eterna beleza indígena, de cabelos longos, olhos rasgados. Todos respeitavam a Tia Francisca nos arredores do Paraná do Ramos como se ela fosse − e era − um oráculo.

Passada uma semana, começou a chover de forma torrencial. O volume de água era tanto que não se via a outra margem do rio. Nenhum barco saiu do porto naqueles dias. Até que foi diminuindo a chuva; as bicicletas, pato, galinha, cachorro pela rua. Quando então, Gracinha, a filha mais nova de dona Joanice, caiu com um febrão daqueles. Enjoada para comer, suava muito, e ainda por cima, estava tendo delírios, falando alto enquanto dormia, coisa muito esquisita. Chamaram o médico, Dr. Fabrício, que passou um antitérmico, pediu para fazer uma canja bem forte:“Essa menina precisa comer.” Mas que nada, os suores continuaram, parecia coisa de “encarnação”. A mãe da moça mandou chamar Tia Francisca, descendente dos pajés sateré-maués. Chega dona Francisca, como sempre, tranquila, pediu uma bacia com água e uma toalha limpa e quis ficar sozinha com a Gracinha no quarto. Enquanto lhe dava um banho de gato, em voz baixa entoava rezas xamânicas da religião sateré, intercalando com “Ave Maria” e “Pai Nosso”. Depois de meia hora, Tia Francisca disse à Gracinha: “Não se preocupe que vai dar tudo certo, mas eu preciso que você se alimente”. Gracinha foi se apaziguando, tomou um prato da sopa e se recostou com um semblante aliviado. A rezadeira chegou na sala e mandou chamar o pai que estava ajudando no plantio da roça do cunhado. Uma hora depois, na frente do compadre e da comadre, Tia Francisca tentou dar o diagnóstico da melhor maneira possível:

— Comadre, compadre, é preciso ter muito discernimento e fé em Deus. A vida dessa menina está nas mãos de vocês.
— É grave, Francisca?
— É grave sim, comadre.
— Pois, então, diga logo. Já estou ficando nervosa.
— Calma, calma. Vou lhes dizer: É paixão de Boto, e não tem jeito. Por favor não briguem com a Gracinha, porque a culpa não é dela. E o único remédio é deixar ela namorar o Boto.

O pai se desespera: “O quê? Eu mato esse boto safado que fez mal pra minha filha!”

— E fez, mesmo. Ela está grávida.
— Grávida?
— Calma, seu Genésio. Por favor, me escute por tudo que há de mais sagrado. Boto é um ser encantado. Se o compadre não permitir o namoro, ou pegar uma espingarda pra matar ele bicho ou ele gente, o compadre vai estar comprando uma briga com os espíritos. Aceite o destino. A Gracinha e esse curumim que está dentro da barriga dela − e que é seu neto − eles precisam de tranquilidade para viver os dois mundos, o daqui da terra e o mundo encantado. Pode não ser um homem normal, não vai estar no dia do aniversário, mas vai fazer sua filha feliz, muito mais do que muito homem por aí. É ao contrario, o compadre precisa proteger o Boto se quiser que a Gracinha se levante dessa cama, ou então ela pode até ficar doida, entrar em surto.

Seu Genésio ficou calado como quem leva uma bronca de um sacerdote.

— Então, quer dizer que eu não posso matar o desgraçado?
— Não, seu Genésio, se quiser ver a sua filha curada das febres e dos delírios, não. Porque eu lhe aviso: se o senhor matar o animal, ela não vai conseguir dormir direito, a alma dela não terá sossego pro resto da vida.
— Esta menina foi enfeitiçada?
— Foi sim. Igual com a finada dona Isaura. Carlinhos, filho mais novo, todo mundo sabe que é filho do Boto, e que nem teve dia de festa, parece que a Isaura tomou banho de rio quando estava com as regras. E tem o filho da neta da dona Coló, na Freguesia, ela conta que foi depois da Marujada; também é filho do Boto. É raro de acontecer, mas acontece. Aceite, compadre, é o melhor que se tem a fazer.
— Será que foi agora, na Festa do Caju?

E a mãe responde: “Deve de ter sido aquele músico que veio falar contigo a modo de pedir licença para dançar com a Graça. Eles dançaram bonito que só vendo.” E o pai com a mão na cabeça: “Valha-me Deus, como é que eu não percebi?”

— Seu Genésio, pense bem, reflita, vá na Igreja, tome um bom banho, porque lhe peço para o amigo não guardar raiva nem ressentimento nem de sua filha, nem do Boto. Peço que o compadre entenda o acontecido como se fosse uma provação de Deus.

Seu Genésio fechou os olhos, respirou fundo e disse: “Pois então eu quero ser o primeiro a contar. Barreirinha inteira vai saber e vai ser por mim que sou o pai”. Saiu decidido e foi para o bar do seu Geraldo. Chegando lá estavam tomando uma dose de cachaça com mel e limão, a Daguimar que trabalhava na prefeitura, sua mãe Cleonice e o dono do bar.

— Boa tarde!
— Boa!
— Por favor, seu Geraldo, bote só uma pra mim, porque eu ainda tenho que ter uma conversa séria com minha filha, hoje.
— E é? Me diga? Aconteceu alguma coisa com a menina?
— Aconteceu que eu vou permitir que minha filha namore o boto!

Na mesma hora a Daguimar arregalou o olho e se levantou:

— Aquele homem que dançou com a Gracinha na festa, era o boto?
— Era sim, senhora. Todo mundo viu!
— (Vaidosa) Eita! Ele me tirou pra dançar também!
— A senhora está com febre?
— (Decepcionada) Não…
— A senhora está tendo visagem quando vai se deitar? Não? Então não se preocupe. O feitiço dá uma quentura danada na pessoa.

Voltando ao balcão:

— Vou falar com seu Ignácio, com seu Mazinho, com todos os pescadores que pescam de rede, porque vira e mexe tem boto agarrado nas redes, para tomarem muito cuidado pra não machucar o bicho. Eu mesmo, agora, se o boto quiser, eu vou dividir meus peixes com ele. Pode acreditar, seu Geraldo, confesso que de início tive raiva. Já passou. Dona Francisca esteve lá em casa e me ensinou a ter amizade pelo animal.

Responde o dono do estabelecimento:

— Pois eu vou lhe dizer uma coisa: minha mãe sempre conta que quando éramos pequenos, a embarcação virou e ela e meu pai só se salvaram porque os botos carregaram eles até a beirada.

E foi assim que, no dia seguinte, desde o Solimões até a Ilha de Marajó, toda a floresta sabia que a Gracinha ia ter um filho do Boto.

Pois acredite, leitor, eu conheci o menino João, filho da Gracinha com Boto. É desses curumins que não nos sai da memória. Levado da breca, astuto, curioso, tudo ele quer saber o porquê. Protege os animais, destrói as armadilhas na mata, acorda no meio da noite para tirar o leite da vaca com o avô. Gosta de ir para a escola, de fazer caligrafia, de subir em árvores, de soltar papagaio e de ajudar a Joanice na cozinha, de fazer tapioca, iogurte, catar feijão e bater bolo. Tia Francisca? Fez o parto e virou sua madrinha, ele ficava horas no seu colo alisando aqueles cabelos negros de índia. Mas a cena que eu guardo comigo, como quem guarda uma prece: na casa de meu pai, o dia amanhecendo, o céu azul clarinho, a água dourada, quando fui caminhar na Ponta da Gaivota, eu vi a Gracinha encantada como se fosse uma Iara, ela e seu filhote rodeados de botos mergulhando no rio sagrado dos nossos antepassados, o rio Andirá. “A Lenda porque lenda é verdadeira.”*

* Verso do poema e título do livro “A Lenda da Rosa”, de Thiago de Mello.Coleção Rubaiyat, Editora José Olympio, 1955.
Isabella Thiago de Mello é pesquisadora, escritora, roteirista, produtora e atriz, com trabalhos em Teatro, Cinema e TV. Formada em Interpretação e Teoria das Artes Cênicas pela Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e Faculdade da Cidade do Rio de Janeiro. É presidente do “Instituto Thiago de Mello” e diretora da Editora “Projetos Especiais”. Faz parte do corpo discente da Olip (Oficina de Literatura do Professor Ivan Cavalcanti Proença). Seus contos estão publicados na Revista de Literatura Brasileira da USP (Universidade de São Paulo) e na Antologia dos 50 Anos da Olip.
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