Dez anos sem Vicente Salles, o mais emérito dos pesquisadores da Amazônia

Montagem de Fabricio Vinhas a partir de fotos do memorial Vicente Juarimbu Salles UFPA 2.0

Montagem de Fabricio Vinhas a partir de fotos do memorial Vicente Juarimbu Salles UFPA 2.0

No dia 7 de março fez exatos dez anos que perdemos Vicente Salles, o mais emérito dos pesquisadores da Amazônia. Grande parte de sua obra foi disponibilizada gratuitamente online pelo projeto UFPA 2.01O Projeto UFPA 2.0 tem como objetivo principal montar uma rede interativa que armazene e divulgue as produções acadêmicas da Universidade, a partir das chamadas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). e reunida neste link em um site memorial.

Afeito aos livros e papéis, Vicente era filho de um casal de cearenses que migrou para a zona bragantina: o rábula2Rábula (ou provisionado) era o advogado sem formação acadêmica em Direito, que obtinha autorização para exercer a profissão em instâncias primárias do Judiciário. Clóvis de Mello Salles e da dona de casa Maria Cristina Passos Salles. Nasceu na vila de Caripi, em Igarapé Açu, no nordeste do Pará. Ganhou o nome de Juarimbu, por conta do povo Tembé que vivia nas proximidades.

Cresceu entre os livros, entre as histórias de Cervantes e o cordel e o repente dos amigos de seus pais. Ai nascia sua paixão pela música, as modinhas cantadas pela mãe e pelo “conversório” dos adultos.

A paixão pela literatura e a influência de Bruno Menezes

Atinou de fato pela literatura e pelo folclore do Pará quando topou com o poeta Bruno de Menezes, que o introduziu nos grupos populares de Belém, batuques, pássaros e bumbás, e o levou também para o Suplemento Literário da Província do Pará. Chegou a conviver com aquele pessoal da pesada, como Nunes Pereira, Jacques Flores e De Campos Ribeiro.

Apaixonado pelo universo das tipografias e da redação, chegou a editar um jornal datilografado chamado “Ibirapitanga”, com o pseudônimo Juarimbu Tabajara. Publicou muitos poemas, cheios de arroubos de juventude, desde 1951, com os pseudônimos Leonardo Lessa e Juarimbu Tabajara.

Estudos sobre a escravidão negra na Amazônia

Em 1954, em companhia de Bruno (sempre!) conheceu Édison Carneiro, que na época fazia uma pesquisa sobre os pássaros juninos e os bois bumbás de Belém. Aí recebeu aquele pedido que mudaria sua vida e a escrita dos estudos sobre a escravidão negra na Amazônia. Carneiro pediu ao Vicente um levantamento dos terreiros de Belém.

Pouca gente, quase nenhuma, tinha se aventurado na empreitada. Gastão Vieira nos anos 1930, Levy Hall de Moura nos anos 1940, tudo muito de passagem. Com esses dados enviados por Vicente, Carneiro ampliou sua pesquisa sobre a religiosidade do negro no Brasil, estudos que, na época, não passavam do Maranhão, dado o fardo historiográfico que então se acreditava da irrelevância da presença negra na Amazônia.

Naquele mesmo ano de 1954, Salles mudou para o Rio de Janeiro para trabalhar e cursar a faculdade de Ciências Sociais na Universidade do Brasil (atual UFRJ). Foi daí que nasceu sua obra mais conhecida, “O negro no Pará sob o regime da escravidão”, escrita em 1964 e publicada sete anos depois, em edição conjunta da UFPA (Universidade Federal do Pará) com a FGV (Fundação Getúlio Vargas).

Teve, nesse período, o apoio do historiador Arthur Cezar Ferreira Reis e tornou-se amigo da escritora Eneida de Moraes, que lhe abriu as portas da imprensa carioca –como fez com tanta gente, inclusive com Dalcídio Jurandir. Em 1965, casou-se com Marena, violinista de responsa, companheira de vida de estudos, especialmente na área da música.

A obra enciclopédica de Vicente Salles

Há que se dizer que Vicente Salles possui uma obra de caráter enciclopédico, pois é raro um tema na história da cultura na Amazônia que não tenha tocado com maestria: do erudito ao popular, da imprensa ao teatro, do folclore ao artesanato, da cachaça à pajelança. Sua obra é muito conhecida, estudada, e muitas vezes copiada.

Um misto de pesquisador, professor e militante da cultura, Vicente esteve à frente das campanhas de defesa do folclore brasileiro, onde trabalhou com Edison Carneiro, Renato Almeida e Bráulio Nascimento. Atuou em muitos conselhos, sociedades culturais e artísticas, museus e bibliotecas. A partir dos anos 1970, participou de vários projetos culturais que resultaram na publicação do Atlas Cultural do Brasil, além de iniciar a produção de discos da coleção Documentário Sonoro do Folclore Brasileiro. O conheci por aí, acho que em 1988, quando cursava história, e ele participava de inúmeros eventos que ocorreram aqui sobre o centenário da abolição. Um evento no Centur, organizado por Napoleão Figueiredo, e outro no Convento dos Mercedários, pelo então departamento de História e Antropologia da UFPA. Aí começaram as perguntas, as conversas, as aulas e os ensinamentos.

Em 1990 aposentou-se do Ministério da Cultura, teve uma espécie de retorno a Belém, participou muito do projeto Preamar ao tempo de Paes Loureiro, ministrando cursos e formando gestores culturais. Entre 1996 e 1997, dirigiu o Museu da Universidade Federal do Pará, que hoje guarda sua imensa coleção, de livros, discos, fitas cassetes, recortes de jornais, folhetos e raridades bibliográficas.

Em 2011, numa linda cerimônia, recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Pará. Junto com Alessandra Mafra, que estuda sua obra, escrevi um texto para uma coletânea de homenagem a ele, organizada por Regina Maneschy.

Memórias com ele tenho muitas: passeios, visitas em seu apartamento ali na São Pedro, merendas na casa da Rosa Arraes e um brinde de ele ter escrito uma apresentação do meu livro “A cidade dos encantados”, no qual tanto devo à obra do mestre.

Vicente Salles, saudades!

Aldrin Moura de Figueiredo é historiador e, desde 1991, professor da Faculdade de História da UFPA. Realizou curadorias e consultorias em diversos projetos com instituições brasileiras e estrangeiras. Realizou estágio avançado em história da arte no Museu de América (Madri, Espanha) e intercâmbios de pesquisa em diversos museus europeus. Foi diretor do Centro de Memória da Amazônia (2013-2017), é membro do Conselho Editorial do Senado Federal, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e é pesquisador vinculado à Cátedra João Lúcio de Azevedo (Instituto Camões e UFPA). Coordena o Grupo de Pesquisa em História Social da Arte (UFPA/CNPq) e é professor do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará.
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