Diane Whitty e a tradução da literatura sobre a Amazônia

Diane Whitty

Entre as obras traduzidas para a língua inglesa por Whitty estão os livros de Eliane Brum, com destaque para o mais recente deles, “Banzeiro òkòtó”

A Amazônia é um tema que alcançou significativa relevância internacional nos últimos anos, tanto pelo destaque na política quanto por sua importância para o futuro do planeta e da humanidade. Levar os discursos que são feitos dentro da floresta para os outros países também se faz uma tarefa necessária. 

Diane Grosklaus Whitty, renomada tradutora e intérprete, é uma das personalidades que atuam nessa missão. Como exemplo de suas colaborações, Whitty traduz para o inglês as obras de Eliane Brum, cujo trabalho aclamado destaca as complexidades e desafios enfrentados na Amazônia. 

No 4º episódio da série Pensando a Amazônia pela Literatura, Diane Grosklaus Whitty discute a importância da tradução de livros sobre a Amazônia para a quebra de barreiras culturais, levando histórias e perspectivas amazônicas para o público global.

“Só falar da Amazônia não basta. A gente precisa falar com paixão e a gente precisa ouvir das pessoas que estão vivenciando, que estão sentindo essas coisas na pele”, diz. “Não tem como, não tem uma fonte mais rica do que a pessoa que vive ali, que está mergulhada dentro da cultura”.

Ouça a entrevista completa com Diane Grosklaus Whitty:

Amazônia Latitude: Diane, como começou a sua incursão pela tradução? 

Diane Whitty: Eu me mudei para o Brasil, casei com um brasileiro. Me mudei para o Brasil em 1976, ainda na Ditadura [Militar], e sem nenhuma intenção de ser tradutora, mas depois de uns dois meses ouvindo uma música do Chico Buarque, eu fiquei com um desejo muito grande de explicar essa música para meus pais, era “A coisa aqui que está preta” [Meu Caro Amigo]. Então foi a minha primeira tradução, eu mal entendia português, e logo começar com uma música do Chico, imagina. Mas foi o início da minha paixão, a minha necessidade de transmitir a minha experiência para alguém fora.

Amazônia Latitude: E como foi o resultado? 

Diane Whitty: A música do Chico, graças a Deus, nunca foi publicada. Mas foi uma primeira tentativa. Olha, eu sempre tive uma paixão por línguas e por palavras. Quando era criança, eu queria ser escritora. E eu acho que a tradução acabou sendo o meu caminho de juntar a minha paixão por palavras e essa paixão de querer passar para as pessoas da minha terra natal, informações sobre a minha segunda terra, a terra que acabou sendo, depois de 23 anos lá, a terra do meu coração.

Amazônia Latitude: É muito valioso o que você fala, porque a tradução, além de ser algo muito sistemático, também quebra tabus. Nesse sentido, a tradução acaba sendo um abridor de portas?

Diane Whitty: Sim, exatamente. Inclusive, eu acho que a tradução você aprende até certo ponto e o resto você não aprende, porque ela é uma coisa tão aberta que transgride, muitas vezes. A Eliane [Brum], por exemplo, é uma pessoa que fala muito na língua em geral. Ela gosta de transgredir com a língua. E eu acho que, na tradução, a gente tem que estar pronto para fazer isso com a nossa língua, a língua que a gente chama de língua alvo, a língua para a qual nós estamos traduzindo. Nós temos que tomar certas liberdades.

Bom, essa é a minha posição. Deixa eu dar uma rézinha aqui, porque tem maneiras diferentes de abordar uma tradução. A gente fala em domesticação e estrangeirização de uma tradução. É uma simplificação falar nesses termos. Mas a domesticação seria, por exemplo, quando você pega a tradução, alguma coisa sobre o Brasil, e você faz em um inglês tão americano, que o leitor não necessariamente estranha nada e nem reconhece. É a tal tradução muito fluente. Aí você tem estrangeirização, onde você é mais fiel à língua original. Mais fiel e você talvez incorra em mais transgressões da língua alvo.

Eu vou dar um exemplo que não tem nada a ver com o Brasil. [Franz] Kafka. No início, quando se traduzia Kafka, os tradutores não faziam uma tradução muito próxima ao Kafka, porque ele é estranho, o inglês dele, que a gente lê, é um inglês diferente. Então, no início, os primeiros tradutores que pegaram tiveram que fazer uma coisa mais bem digerida para o leitor estrangeiro não estranhar e, também, não achar que isso é um problema com a tradução, não achar que “ah, isso aqui soou estranho porque o tradutor fez alguma coisa errada”. E com o decorrer do tempo, na medida que se foi re-traduzindo Kafka, o tradutor pôde ser mais fiel a ele, ao que o Kafka faz com linguagem. 

É uma coisa que aparece traduzindo, por exemplo, alguém como Eliane, que é muito criativa com a língua. Quando a gente lê em português, a gente acha um texto muito belo, mas é um texto que, às vezes, o leitor estranha alguma coisa, porque ela realmente odeia o lugar comum.

Amazônia Latitude: E, nesse sentido, a gente poderia dizer que a tradução te leva, de alguma forma, para fora do lugar comum?  

Diane Whitty: Exatamente. Eu acho que o lugar comum não é o que a gente quer. Às vezes, você tem essa meta, essa ideia que a tradução tem que ser uma coisa muito fluente, mas, quando você entra em um texto traduzindo, a minha esperança é que, realmente, você seja transportado para um mundo diferente.

Claro, tem alguns livros que tratam de temas tão clássicos que, não importa a língua, você pode tirar daquele momento histórico do Brasil, você pode tirar daquela cidade do Brasil, e você está contando uma história universal. Mas eu acho que, sempre, em qualquer literatura traduzida, qualquer conto jornalístico traduzido, você realmente queira estar trazendo alguma coisa da outra cultura, porque é isso que enriquece, inclusive, nossa língua.

Uma novidade. A gente quer sair do nosso mundinho. Quando a gente abre um livro, essa é a ideia, né? Eu acho que, quando a gente abre um livro, a gente sempre está querendo fazer uma viagem. Mas abrir um livro traduzido pode e deve acrescentar, eu acho, mais uma camada, onde você entra em contato com um mundo não só diferente.

Por exemplo, você é um americano do interior, você lê alguma coisa sobre Nova York, obviamente, você está conhecendo um mundo um pouco diferente. Mas não é tão diferente quanto ir para a Amazônia. 

Amazônia Latitude: Como você vê, especificamente, a importância da tradução de livros sobre a Amazônia para trazer para a superfície do debate atual, as questões ambientais e sociais que a região vem enfrentando? Não somente nesse momento, mas que é um processo que vem de longas décadas, mas que, nesse momento, se tornam tão urgentes e emergenciais.

Diane Whitty: Eu quero começar com uma estatística sobre tradução em geral. Nos Estados Unidos, e essa estatística é verdade já há uns 20, 30 anos, é muito citada, é os 3%. Que 3% dos livros publicados nos Estados Unidos são traduções. O resto não é. Ou seja, 97% do que se publica nos Estados Unidos foi escrito em inglês. Então nós, nesses 97%, temos muita coisa escrita sobre o Brasil. Você pode ler The New York Times, você pode ler The Guardian, você tem muitas fontes onde você pode buscar informações sobre o Brasil, como sobre outros assuntos. 

Agora, então por que a gente precisa da literatura ou dos contos ou das peças jornalísticas traduzidas? E aí eu vou entrar exatamente no que a Eliane está fazendo agora na Amazônia, que ela, o marido dela, e uns outros jornalistas, o marido sendo o Jonathan Watts, do setor de meio ambiente do The Guardian, eles abriram uma plataforma jornalística em três línguas, em inglês, português e espanhol, sobre a Amazônia. E qual é a meta deles? Eles querem fazer uma reportagem sobre a Amazônia, mas da Amazônia. 

E por que a tradução é importante? Porque te dá acesso, não só às informações, mas às informações que vêm do lugar. Não tem uma fonte mais rica do que a pessoa que vive ali, que está mergulhada dentro da cultura. Então, a Amazônia é uma coisa que muito se ouve falar, você lê muito na imprensa estrangeira, mas a Amazônia que você lê, que é uma reportagem feita por alguém que está sentado em Nova York, que está colhendo as informações, talvez de um jornalista na Amazônia, ou talvez de um jornalista no Rio, não para desfazer o trabalho dessas pessoas, mas não é a mesma coisa. 

Por exemplo, saiu agora a história da Patry, nome falso, de uma trabalhadora de sexo da Venezuela que se mudou para a Amazônia e trabalhou como prostituta em encampamentos, em curratelas, na área de garimpo na Amazônia. Não tem como você ter um contato mais próximo e mais rico em termos de detalhes, em termos de experiência. É uma maneira de você ser transportado lá. E eu acho que isso leva a um nível de vivacidade. E é uma coisa que a gente precisa agora, porque só falar da Amazônia não basta. A gente precisa falar com paixão e a gente precisa ouvir das pessoas que estão vivenciando, que estão sentindo essas coisas na pele.

Amazônia Latitude: Ao traduzir temas relacionados com a Amazônia, como é lidar com essa responsabilidade de transmitir com precisão a mensagem e a importância desses temas?

Diane Whitty: É um peso, é uma responsabilidade muito grande. Como a Eliane sempre fala nos livros dela, essas pessoas confiam primeiro muito nela, confiam as histórias para ela. E ela acaba entregando para mim essa responsabilidade. E é maior do que se pode imaginar, porque é… A Eliane fala alguma coisa sobre ela receber as histórias, as experiências, e essas passam pelo corpo dela, porque ela não é uma mera gravadora. Essas histórias, essas experiências sofrem alguma transformação quando passam por ela. Ela passa para mim e, necessariamente, vai passar para o meu corpo também. Então, eu acrescento do meu lugar de fala. 

Como você estava falando sobre jornalismo, não existe neutralidade, não existe tradutor neutro. Eu vou acrescentar alguma coisa minha ali. Então, é uma questão de estar atento a toda hora a essa responsabilidade, à voz da pessoa, respeitar as palavras da pessoa, o teor daquilo que a pessoa está falando, sabendo que a gente vai errar, vai entrar erro. Eu acho que o tradutor precisa ser humilde, porque a linguagem é uma coisa muito complexa. Em uma conversa entre duas pessoas em uma mesa do bar, quantas vezes a gente não pede “espera aí, mas você quis dizer isso?”. Então, a comunicação sempre tem erro, o tradutor precisa estar atento a isso sempre. 

 

Capa do livro Banzeiro Òkòtó

 

Amazônia Latitude: A colaboração entre tradutores e autores é uma parte essencial do processo de tradução. A jornalista Eliane Brum descreve você nos agradecimentos do livro dela como uma tradutora que “protege a integridade da escrita com talento e também com dentes”. Como é trabalhar com Eliane Brum na tradução dos livros e do site, especialmente da obra “Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo” (2021, Companhia das Letras)? Como essa colaboração influenciou a compreensão e a transmissão das histórias amazônicas para o público de língua inglesa?

Diane Whitty: Trabalhar com a Eliane é maravilhoso. A gente se dá muito bem. Como ela falou, a gente nunca se conheceu, mas sempre se amou. Eu acho porque, em parte, nós duas somos toques. Cada uma do seu jeito, mas ela é muito exigente. Ela não gosta que você mexa em uma vírgula do que ela escreveu. E isso é uma coisa que eu aprendi logo cedo com ela, mas [assim] como ela tem essa tendência de transgredir, de não gostar do lugar comum, eu também não. Eu acho que quando uma pessoa fala de um jeito mais, às vezes é um jeito mais poético, às vezes é uma maneira mais criativa, não se deve passar um ferro. 

Foi maravilhoso trabalhar com a editora Graywolf, que publicou os dois livros dela. Mas eu tive umas experiências de publicar histórias dela em jornais de maior porte, onde realmente eles não aguentam a criatividade. Eles querem o lugar comum, eles querem aquela linguagem jornalística que qualquer um poderia ter escrito e aí é dente. Aí eu brigo, eu brigo sim. Então é muito bom trabalhar com ela, de ter essa troca. 

Amazônia Latitude: Essa relação entre tradutores e autores não é um casamento perfeito. Como a gente sabe, em todos os casamentos há situações de conflitos. E eu imagino que, durante o processo de tradução, sempre existem situações em que você argumenta uma coisa, a autora argumenta outra. Fale um pouco do processo da tradução do título do livro, por exemplo. 

Diane Whitty: O título do livro não foi um problema comigo e com Eliane, não. Olha, título, para mim, é a última coisa que eu traduzo. Eu tenho que traduzir o livro todo, o livro tem que estar vivo dentro de mim. No início, o livro, quando ela me entregou, era “Banzeiro”, não era “Banzeiro òkòtó”. Mas para mim, desde o início, o título tinha que ser “Banzeiro”. Agora, vai convencer uma editora americana a aceitar um título desses. 

Eu comecei a traduzir esse livro antes da Eliane terminar de escrever. Então, foi um processo um pouco maluco nesse sentido. E quando ela estava chegando perto do final, ela acrescentou “òkòtó”, que eu não sei se devo explicar ou não, porque realmente tem que ler o livro, eu acho, para entender por que ela acrescentou “òkòtó”. Eu conversando com a Eliane, porque quando chega perto do final do livro, eu tendo a começar a entrar em conversa com o autor [sobre] qual vai ser o título. E nós duas estávamos “não, tem que ser, tem que ser”, e a gente conseguiu convencer Graywolf a aceitar. 

E não foi assim da primeira vez, porque quem nos Estados Unidos consegue dizer esse título, “Banzeiro òkòtó”? Ninguém. Ninguém sabe o que quer dizer, a gente não tinha a tradução fácil, porque logo no início, Eliane começa a dizer que “ah, banzeiro é uma palavra que nem existe uma boa definição”. Mas o que eu fiquei muito contente com Graywolf, que eu acho que realmente o livro encontrou uma casa boa, é que eles concordaram. Porque desde o início, o leitor sabe estar entrando em um território estranho, que é um livro que está levando para a Amazon Center of the World [Amazônia Centro do Mundo], mas não é um cruzeiro, não é aquele navio de luxo que vai ser confortável, fácil. Não, você vai ter que trabalhar para entender bem essa viagem, para fazer essa viagem. 

Amazônia Latitude: E como foi essa viagem para você? 

Diane Whitty: Foi uma viagem de altas e baixas, e brigas, e alguns capítulos de arrancar o cabelo. Capítulos inteiros nem tanto, mas alguns capítulos que apresentaram mais desafios linguísticos. E alguns capítulos bem difíceis, daquele tipo que você tem que parar e chorar de vez em quando. As crianças de Altamira, também o capítulo sobre a chacina na penitenciária. Nessas horas, a gente tem que manter um pouco de distanciamento do texto, que ao mesmo tempo não é possível. Mas com a Eliane, a viagem sempre vale a pena, porque a maneira dela enxergar, o olho dela, e a maneira dela, às vezes, esfregar a cara do leitor na realidade, não pode ser fácil.

Amazônia Latitude: O que você trouxe dessa viagem para casa, dessa leitura, dessa imersão, que você acha que transformou, de alguma forma, o modo até mesmo de ver, embora você seja uma pessoa que já conhece o Brasil? O que mudou na sua percepção do Brasil? 

Diane Whitty: Eu diria que não simplesmente a minha percepção do Brasil. E eu também diria que não foi só esse livro, mas um conjunto de coisas, inclusive leituras que eu tive que fazer para acompanhar o livro. 

Eu acho que, desde que eu comecei a tradução, eu enxergo a minha relação com os seres, os mais-que-humanos, de forma diferente. Por exemplo, a casa onde eu moro é nos subúrbios, no sentido americano, e teve um urso solto. De repente apareceu um urso umas três semanas atrás. Todo mundo na vizinhança, na área, queria ir atrás do urso, saber do urso. E a minha primeira reação era, eu acho que igual todo mundo, “tem um urso aqui”, mas aí veio uma outra percepção, que é “mas espera aí! Nós estamos no lugar desse urso. Que mundo é esse, onde o fato de ter um bicho, um urso, aqui na nossa presença, causa tanto espanto e medo? Não, nós que somos os interlopers [intrusos], nós que estamos no lugar deles”. 

Por isso que eu digo [que] não é só a Amazônia. Mas a relação que o ser humano vive hoje em dia, nós vivemos muito longe. Nós achamos nós aqui, a natureza lá. E até a gente conseguir desfazer essa falsa fronteira e entender que nós somos integralmente natureza, nós estamos perdidos.

Amazônia Latitude: O processo de tradução contém suas facetas. Uma faceta que chamou muita atenção durante a leitura do livro, é como você conseguiu nos trazer a própria questão do gênero neutro, que a Eliane advoga com tanto orgulho, e ficou tão bonito. Como foi esse desafio?

Diane Whitty: Primeiro, para falar sobre a opção da Eliane, ela optou por, em certos momentos, usar o gênero neutro. Nesse caso, com “e”. “Queridos” virou “querides”. Agora, o desafio maior em inglês é que isso desaparece, de boa forma. Porque inglês é uma língua sem gênero. Então, para nós, “humanos” é “human”, não é “humanos”, “humanes”, “humanos”. Então, em boa parte, desapareceu. 

O que eu consegui fazer foi o uso da terceira pessoa do plural, para o “they”, que hoje em dia está se usando já como gênero neutro. Por exemplo, tem a pessoa Erasmo. No início do capítulo sobre ele, a gente sabe, pelo nome, que ele provavelmente seja com a identidade masculina, o “ele”. Mas ele se declara [como] eu acho que o termo é um ser sem gênero, aí eu passo a usar o “they”. E, inclusive, com isso, em vez de “themselves”, “themself”, no singular, que foi uma briguinha com quem fez copidescagem, porque queria mudar para o plural. “Themself” é uma palavra de uso meio raro, não muito comum em inglês, mas é uma maneira de incorporar esse uso de gênero neutro.

Na tradução, a gente faz isso às vezes. Por exemplo, tem trocadilho ali, a gente não consegue captar, a gente perdeu, mas a gente joga em outro lugar, para manter a ideia, o espírito da coisa. Uma outra coisa que eu consegui fazer, que não é gênero neutro, mas, em português, quando você fala “o gato que mora ali”, “o gato que comeu o rato”, e “o homem que sentou para jantar”, é o “que”. Em inglês, a gente tem “who” e “that”, a gente distingue entre o sujeito humano e o sujeito mais-que-humano. Então, eu resolvi, nesse livro, que o sujeito mais-que-humano ia, também, merecer o mesmo tratamento de pronome. Então, onde normalmente seria “that” para bicho, virou “who”, como se fosse uma pessoa.

Um passo a mais que eu poderia ter tomado, seria usar uma proposta de uma escritora, Robin Wall Kimmerer, indígena, ela tem uns livros maravilhosos sobre a nossa relação com a natureza. E ela tem uma sugestão de adotar, em inglês, um pronome que vem de uma língua indígena, que seria “ki”. Eu até pensei em talvez fazer isso, mas o problema é o seguinte: quando a gente está fazendo uma tradução, você não pode desviar a atenção do leitor para algo que não é tão fundamental. Então, eu achei que ia ser uma distração aquele “ki”. Da mesma forma que, quando Eliane optou pelo gênero neutro, ela não fez com todas as palavras do livro, ela não fez com todos os substantivos, porque acabaria sendo uma distração.

Então, eu acho que o que vale é que ela chamou a atenção, ela disse “nós precisamos começar a pensar niss, nós precisamos começar a encontrar esse caminho”. 

Amazônia Latitude: Não necessariamente no Banzeiro, mas em outros momentos de trabalhar no contexto da Eliane, como foi esse processo, esse embate de palavras? 

Diane Whitty: Tive uma experiência quando eu traduzi o primeiro livro dela, Collector of Leftover Souls [O colecionador das almas sobradas. De fato, o livro não existe em português, porque é a coletânea de dois livros dela e de outros escritos. 

Teve uma história linda que ela conta sobre o enterro dos pobres. E ela conta uma cena onde o pai que acaba de enterrar o filho recém-nascido, morto, está no cemitério, e tem um pássaro cantando na árvore. E o pássaro é um sabiá. O nome desse pássaro, em inglês, é thrush. Eu, pessoalmente, acho esse nome horrível. Talvez, em parte, porque eu sou intérprete médica também, e o thrush é o nome de sapinho, aquela doença que dá em criança. Thrush, para mim, eu não queria. Então, eu usei songbird, porque sabiá, ou thrush, é da categoria de songbird. É uma categoria um pouco mais genérica. 

Mas, como eu sempre faço com a Eliane, quando eu faço alguma mudança assim, eu chamei a atenção dela. Eu disse, nas margens, “olha, Eliane, eu mudei”. Olha, ela mandou um e-mail para mim de dois parágrafos, gritando. Era e-mail, mas eu sei que ela estava gritando. O trabalho que deu para ela descobrir a espécie daquele pássaro. Ela ficou muito chateada quando soube que era sabiá, porque ela queria que fosse um pássaro mais exótico, mais interessante. Mas era um trabalho jornalístico que ela estava fazendo, então eu tinha que me manter fiel – gostasse ou não gostasse – do nome em inglês. Era um thrush

Amazônia Latitude: Parece tão raro e caro falar de temas indígenas nos Estados Unidos. Como você vê essa contribuição maiúscula da sua tradução para o público americano? De que maneira você acha que o trabalho como tradutora de um livro tão importante pode, de alguma forma, ajudar o público americano a ver não somente a Amazônia, mas também olhar para si mesmo com outros olhos?

Diane Whitty: É não só olhar para a Amazônia e prestar atenção, interessar-se e ver sua ligação com a Amazônia, mas se enxergar com outros olhos também. Eu acho que isso é uma coisa fundamental da tradução. A gente trazer alguma coisa da autocultura e fazer com que isso mexa na gente, na alma da gente. Fazer a gente parar para pensar nossa vida, nossa maneira de enxergar o mundo.

E no caso da Amazônia, deste livro, do trabalho Sumaúma e as outras coisas que estão sendo escritas sobre a Amazônia, é fundamental, é o centro do mundo. Se a gente não conseguir salvar a Amazônia – a Amazônia sendo a Amazônia e sendo, também, os outros centros do mundo, que são os lugares que precisamos salvar –, a gente precisa enxergar como nós somos nada. Nós não somos nada. E o clima está nos mostrando isso. 

Nós somos um pedacinho deste mundo, e a gente precisa ter a humildade de reconhecer isso e dar espaço para o mundo natureza. O mundo natureza somos nós. Então isso é a minha esperança, que as pessoas acordem um pouco para a Amazônia, mas também acordem para o fato de que nós somos natureza e nós precisamos agir dessa forma, nos pondo em um lugarzinho um pouco menor do que a gente costuma se pôr. 

Amazônia Latitude: Qual é a importância de escritores como a Eliane nos dias de hoje, em 2023, para nos sacudir da forma como ela faz? E qual é a relevância dela em um aspecto global?

Diane Whitty: Eu acho que a importância da Eliane é a mensagem que ela está trazendo, que é essencial, importante. Não sei nem como dar palavras para a importância da mensagem dela. Mas ela faz isso com um talento que é muito raro, que você tem uma voz tão lírica, poética, contundente ao mesmo tempo, criativa e trazendo um recado para o mundo, dizendo “a casa está pegando fogo, gente, façam alguma coisa”. Mas ela está fazendo isso como a bela literatura faz, sem ser literatura. É uma literatura da vida real. Que aliás foi o nome, se eu não me engano, de uma coluna dela no jornal Zero Hora, onde ela retratava as vidas de pessoas, digamos, invisíveis, as almas sobradas, que ninguém presta atenção. Então ela conta a história do mundo, das pessoas, mas com um viés de literatura da vida real.

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