Clei Souza e Edmon Neto: a literatura e a poética da Amazônia

Clei Souza, Edmon Neto e a poética da Amazônia; literatura

No quinto episódio da série Pensando a Amazônia pela Literatura do LatitudeCast, os poetas Clei Souza e Edmon Neto conversam sobre as dinâmicas da poética da Amazônia e suas diferentes formas de expressão. 

Clei Souza é professor doutor de Literatura pela Universidade Federal do Pará (UFPA), poeta, contista, crítico-literário e artista visual. Para ele, a palavra poética instaura novas possibilidades de mundo.

“Eu acredito que todos os poetas que têm essa percepção estão escrevendo o mesmo poema, estão escrevendo o poema de um mundo por vir, que aponta caminhos”, afirma. “Nessa escuridão que nós vivemos, com esse modelo econômico capitalista que destrói a tudo e a todos, a poesia é a possibilidade de nos fazer reexistir, a poesia não é entretenimento, ela é uma afirmação humana, uma afirmação de existência”.

Edmon Neto é professor doutor de Literatura na UFPA, poeta e músico. Neto sempre teve uma relação próxima com a literatura e, quando se mudou para a Amazônia, aprendeu a lidar com uma nova temporalidade da poesia.

“O tempo da poesia é um tempo específico. O tempo da Amazônia também é um tempo específico. Quando eu cheguei à Amazônia, eu estranhei o tempo daqui, das pessoas, o tempo que as pessoas levam para viver. O cotidiano é outro, o clima é outro. E isso modifica radicalmente a nossa relação com o tempo”, conta Neto.

Hoje, ele pesquisa sobre os poetas e poéticas do Médio Xingu, e estuda sobre as línguas originárias, principalmente o tronco Tupi, o Macro-jê e o Caribe. 

Ouça a entrevista completa no episódio do LatitudeCast:

Leia um resumo da entrevista com Clei Souza e Edmon Neto:

Amazônia Latitude: Como vocês começaram a gostar de poesia e decidiram seguir carreira nessa área?

Clei Souza: O meu caminho pela palavra poética começa na minha adolescência, porque eu sou da periferia, do bairro da Marambaia, na capital Belém, e meu pai trabalhava numa banca de feira, vendendo frutos e legumes. A gente fazia um rodízio de filhos que iria para lá à tarde, de meio-dia às 17h, para ele poder descansar, dormir, para poder, depois, voltar para um segundo momento de trabalho. 

Naquele tempo, a gente enrolava as frutas e os legumes com jornal velho que ele comprava por quilo. E como não tinha nada para fazer, não tinha celular, o que eu fazia? Eu catava, nos jornais, as crônicas, os textos que eu achava interessantes. No mínimo, talvez duas vezes por semana, eu tinha cinco horas de leitura. Desses jornais velhos, eu fui evoluindo para os livros. 

Paralelamente a isso, era a década de 1980, era um momento em que a música brasileira no rock, que era essa música mais juvenil, se ligava muito à letra. Então as letras de música foram me chamando a atenção, esses jornais velhos foram me chamando a atenção e, a partir daí, fui buscar os livros que faziam referência, tentando desvendar uma cartografia intertextual. Quando eu me vi, comecei a escrever, comecei a procurar livros e aí eu já fui para esse caminho. A partir do momento que eu comecei a gostar de literatura, eu já criei um movimento cultural no bairro de periferia. A gente fazia sarau, fazia festas na praça. 

Eu disse “poxa, vou tentar ganhar a vida um pouco com isso”. E fazer Letras (Literatura) foi o caminho que eu encontrei para poder fazer isso que eu já fazia no Ensino Médio, que era trabalhar um pouco com a poesia, com a canção e poder me sustentar. E aí eu fui na graduação, no mestrado e no doutorado. 

Edmon Neto: Embora hoje eu more em Altamira, estou aqui há quase dois anos, conheço muito pouco ainda da Amazônia, mas a minha relação com a literatura e, particularmente, com a poesia sempre aconteceu. Eu acho que sempre fui um poeta, hoje isso é muito claro para mim. 

Eu venho do interior de Minas Gerais, de uma cidade chamada Tabuleiro, que não chega a 5 mil habitantes. Os meus pais vieram da roça, estudaram até o ensino fundamental. Eu venho de uma família de seis filhos, família longa. Fui o primeiro a frequentar a universidade pública da minha família. Mas a poesia eu sempre escrevi, sempre tive uma relação muito íntima com a poesia desde criança. 

A minha relação com os livros sempre foi uma relação muito próxima. Mesmo que na minha casa não tivesse uma cultura livresca – os meus pais não eram leitores, tampouco os meus irmãos –, eu sempre frequentava as poucas bibliotecas da cidade, da escola inclusive. Eu gostava de produzir os meus próprios livros.

Eu fui meio que me assumir na faculdade. Eu me mudei para Juiz de Fora, que não é tão longe de Tabuleiro, para mim é uma metrópole. Lá, eu fui terminar o meu Ensino Médio e fazer faculdade de Letras. Eu entrei na faculdade de Letras com 20 anos, mas eu participava ativamente da vida cultural de Juiz de Fora. A faculdade de Letras realmente desperta em mim uma relação, eu retorno à poesia com mais força.

Participei de eventos de performances poéticas durante os anos 2000. Cantei em banda de rock, sempre tive uma ligação muito forte com bandas, tenho um projeto musical, hoje, que envolve música, poesia, então as outras artes também sempre estiveram presentes na minha vida. Embora o meu único livro de poesia tenha saído só no ano passado, que é um livro que eu lancei pela editora Urutau. O livro se chama O Desportista na Cama.

Amazônia Latitude: Como vocês definiriam o papel do poeta que, com a sua poética, busca clamar um papel social mais atuante no contexto que estamos vivendo? 

Edmon Neto: Eu fiquei pensando em como a poesia instaura, de fato, outros possíveis. Mesmo que ela seja movida por questões sociais, políticas, existenciais, a poesia vai criar uma outra coisa, essa outra coisa que nos interessa enquanto poesia. Se for para dizer o mesmo, socialmente, politicamente falando, panfletos políticos fazem isso, as palavras de ordem falam por si só, mas a poesia não, a poesia não fala a partir de um outro lugar, mas ela instaura um outro lugar. 

Então eu penso que fazer poesia seria justamente criar esses outros lugares, essas outras possibilidades. As palavras têm um poder que é muito maior do que o próprio poeta, então quando o poeta tem acesso a essas palavras e consegue, com elas, criar outras possibilidades de mundo, que são possibilidades que podem ser transformadas em palavra escrita ou não, palavra falada, palavra gravada, palavra performada, palavra cantada, aí sim essa é a poesia que me interessa, pelo menos. 

Clei Souza: Eu concordo com o Edmon, que a palavra poética instaura possibilidades, e acho que daí a grande importância da poesia, porque ela consegue ser uma linha de fuga, ela consegue escapar do que já está instituído, do que já é conhecido e apresentar novas possibilidades de mundo, de existência. Porque se pensarmos que nós conhecemos o mundo pela linguagem e a invenção da linguagem, a gente pode pensar a poesia como a invenção do mundo. 

Nesse sentido, eu acredito que todos os poetas que têm essa percepção estão escrevendo o mesmo poema, estão escrevendo o poema de um mundo por vir, que aponta caminhos. Nessa escuridão que nós vivemos, com esse modelo econômico capitalista que destrói a tudo e a todos, a poesia é a possibilidade de nos fazer reexistir, a poesia não é entretenimento, ela é uma afirmação humana, uma afirmação de existência. 

Amazônia Latitude: Vocês dois participaram de projetos envolvendo não somente a literatura, como outras linguagens. No caso do Clei, com o “Sarau TODOSOSSENTIDOS”, e no seu caso, Edmon, com o grupo “Ressonâncias: música, mídia e literatura”. Começando com o “Sarau TODOSOSSENTIDOS”, Clei, como foi essa iniciativa?

Clei Souza: O “Sarau TODOSOSSENTIDOS” surgiu da minha própria experiência, porque, por exemplo, eu não venho de uma família que tem uma tradição de leitura, meu pai fez até a quarta série, a minha mãe fez até o fundamental maior. E o que eu conheço inicialmente de literatura vem da canção, vem de jornais, vem de amigos que vão me mostrando coisas, livros, discos, filmes. 

Então eu posso dizer que o meu começo com a palavra de maneira estética, que a gente chama de literatura, não começou com essa questão do livro. E aí eu comecei sempre a questionar essa questão da literatura ficar exclusivamente ligada ao livro, porque eu, embora sempre tenha trabalhado com livro já há mais de 25 anos, também trabalhava com a canção, e para mim isso é literatura, eu trabalhava com o vídeo, e para mim isso é literatura. 

Se a gente pensar em quando se começou a usar a palavra esteticamente, que é o que a gente chamaria de literatura, o tempo que ela passou no corpo e na voz é muito maior que o tempo que ela passou na escrita, então o tempo da escrita é muito menor do que o tempo da oralidade, dessa palavra que é ligada ao corpo. 

No “Sarau TODOSOSSENTIDOS”, eu procurei explorar essas várias possibilidades, mostrando que pensar a literatura iniciada no livro era ser, como diria o [Jacques] Derrida, grafocêntrico. Há vários povos que trabalham literatura e que não necessariamente passam pela página, e hoje em dia, com a arte contemporânea, isso é muito mais visível, a poesia está nos muros, está em vários locais. Eu, desde muito cedo, tive essa percepção de que a palavra poética está no livro, mas ela também extrapola o livro. 

Amazônia Latitude: Edmon, conte um pouco sobre o projeto “Ressonâncias: música, mídia e literatura”, que faz essa interseccionalidade das várias mídias.

Edmon Neto: O Ressonâncias é um projeto de pesquisa do qual eu participei por volta de 2019. Ele reunia alguns amigos de instituições diferentes, a gente chegou a fazer uns dois eventos em que a gente colocava as nossas ideias de pesquisa. Tinha gente estudando disco de vinil, tinha gente estudando, músicas tristes, melancólicas, eu cheguei a apresentar trabalhos sobre músicas voltadas para o público LGBTQIA+.

Era um grupo ainda muito iniciante, com gente pesquisando já há muito tempo música. Foi um projeto muito bacana, sobretudo, porque foi a partir dele que eu tive acesso, no contato com os outros colegas, com informações sobre etnopoesia, etnomusicologia, que tem a ver com um trabalho que me interessa hoje, um trabalho voltado para a performance, para o corpo.

Eu sempre tive uma ligação muito forte com a música, mas eu nunca tive acesso a estudos específicos sobre a música, então o Ressonâncias me ajudou muito. O que eu trago como contribuição desse projeto é muito do que eu tenho feito hoje com relação às etnopesquisas, sobretudo aqui no contexto amazônico.

Amazônia Latitude: Sobre a produção artística na Amazônia, existem algumas controvérsias em relação a alguns patrocinadores massivos. Um exemplo disso é a mineradora Vale S.A, que está envolvida em diversos desastres ambientais, como as barragens de Mariana e Brumadinho, e, mesmo assim, patrocina produções artísticas na Amazônia. O que vocês têm a dizer sobre essas controvérsias? 

Edmon Neto: Nenhum investimento apaga o que foi feito por empresas criminosas. Qualquer tipo de contrapartida social, qualquer tipo de iniciativa que tenha a ver com investimento em cultura, a gente sabe muito bem que, no fim das contas, os interesses são muito voltados para redução de impostos ou até mesmo criar algum tipo de impressão no interesse público. Mas nenhum investimento vai apagar o que foi feito. 

Eu acho que uma questão que é importante pensar nesse caso é o que está sendo investido, em quê está sendo investido, que tipo de artista está captando os investimentos de grandes empresas. Porque, por exemplo, se você pega um artista de grande projeção nacional, que é uma questão que envolve a Lei Rouanet. Se um grande artista midiático capta recursos de uma grande empresa, e essa empresa é notoriamente corrupta ou praticou algum tipo de crime – ela matou um rio como o Rio Doce, ela colocou mercúrio no Rio Xingu –, a questão ética de um artista de grande projeção fazer isso… Eu acho que a gente poderia entrar em mil pormenores aqui.

Quando eu estou falando, por exemplo, de um grupo de teatro específico, de uma comunidade ribeirinha amazônica, de um grupo de escritores que nunca receberam qualquer tipo de incentivo, seja por via pública, seja por qualquer tipo de investimento privado, eu acho que o investimento tem que acontecer mesmo. Investimento em cultura, assim como investimento em educação, tem que acontecer. Que banque. A Vale vai lá e vai dar dinheiro, vai investir realmente em quem tem que ser investido. 

Não deve ser muito confortável, porque eu não sei receber dinheiro de quem tem sangue nas mãos. Mas nós estamos falando de um lugar, e eu coloco a região norte, as Amazônias, de modo geral, que são lugares esquecidos historicamente no nosso país, que não recebem recursos de várias áreas. E a gente está falando da cultura, que é a última coisa a ser investida. Então, por mais que os nossos princípios ideológicos gritem nesse momento, eu acho que investimento em cultura tem que ser feito, seja de onde ele vem. Mas eu concordo também que é uma discussão em aberto.

Clei Souza: A Vale tem uma equipe muito inteligente. Não é à toa, por exemplo, que o presidente da Vale em 2021 e 2022, sequencialmente, foi o homem que mais ganhou dinheiro aqui no Brasil – 55 milhões em 2021 e 60 milhões em 2022. Ele com certeza não ganhou isso por acaso. Tem sangue nas mãos, mas tem uma equipe que consegue fazer com que os artistas limpem esse sangue das mãos da Vale. 

Eu tenho muitos amigos que trabalham suas obras com o patrocínio da Vale, mas eu sempre digo “olha, isso não elimina o que a Vale fez”. Porque as pessoas conhecem muito a questão de Brumadinho e Mariana, que as pessoas chamam de acidente ou tragédia e que não foi. Na verdade, eles sabiam que isso poderia acontecer, mas priorizaram os lucros em vez da natureza e em vez das pessoas. 

Eu tenho um caso particular porque, quando houve o episódio de Mariana, eu trabalhava em Marabá, na Unifesspa, e um amigo meu foi fazer um ato de protesto em solidariedade às vítimas nas proximidades do trem da Vale em Marabá. A Vale processou esse meu colega de trabalho, dizendo que ele estava impedindo o trem de passar. Ele e mais alguns alunos. Processou e queria que ele pagasse a pena até o último instante, ainda que a pena fosse somente prestações comunitárias. Mas ela [a Vale] queria fazer uma punição exemplar. 

Eu só não fui para esse evento porque eu tinha que passar uma prova na hora, então não deu para eu ir. Ou seja, eu ia ser um dos processados, porque a Vale processa, ela persegue aqueles que não estão de acordo com a sua política. Por conta dessa lei neoliberal ligada à arte e à cultura, que repassa a isenção para empresas para que elas possam patrocinar, [a Vale] consegue cooptar os artistas.

Só que, como falou o Edmon, é uma questão complicada porque, por exemplo, eu posso me dar o privilégio de fracassar, eu posso me dar o privilégio de pegar os livros que eu escrevo, chegar num lugar e não vender nenhum, mas meu salário está pronto porque eu sou funcionário da UFPA, eu sou funcionário público. Mas aqueles que escolheram viver da sua arte ficam a essa mercê.

A cultura nunca foi vista como um olhar mais sério. Eu ouvi isso com relação a uma lei ligada à questão do empréstimo, que nenhum fazendeiro que tenha relação com o trabalho escravo pode pegar financiamento público. Deveria ter isso, também, na área da arte e da cultura. Nenhuma empresa que esteja ligada à questão de mortes de pessoas poderia estar patrocinando eventos culturais e artísticos, isso deveria existir. 

A Vale é envolvida com o massacre da ponte de 1987, ela tem uma relação direta com o massacre de Eldorado dos Carajás. Então não é uma questão de uma empresa que participou de dois acidentes. Ela tem uma política de perseguição àqueles que defendem a floresta, os povos da floresta e aqueles que são oprimidos pela Vale. E ela neutraliza os artistas que poderiam ser esse campo crítico em relação ao que ela faz. Na verdade, o que ela faz é uma estratégia política e o que ela gasta com a arte para isso é muito pouco. Ela tem um mínimo de investimento e um máximo de lucro.

Edmon Neto: Eu queria sugerir um livro de uma poeta suíça, que é a Prisca Agustoni. A Prisca mora em Juiz de Fora, uma grande poeta, e tem um livraço que se chama “O gosto amargo dos metais”, que é um livro que foi escrito a partir do crime com a Vale no Rio Doce, em Minas Gerais. Só para não deixar que a gente se esqueça de que a arte também responde a isso diretamente, muito melhor do que a nossa própria discussão. 

Amazônia Latitude: Edmon, como coordenador do projeto de pesquisa “Poetas e poéticas do Médio Xingu”, que mapeia as manifestações poéticas na região, você pode contar um pouco mais sobre o projeto? Quais são as suas descobertas e a diversidade de vozes que têm emergido desse trabalho?

Edmon Neto: É um projeto de pesquisa que me alegra muito. Primeiro, porque pesquisar, sendo professor universitário, é um privilégio. Pesquisar poesia, pesquisar literatura, isso é um privilégio. 

Quando eu cheguei em Altamira, algumas pessoas me disseram “nossa, mas esse lugar não tem literatura”. Eu falei “não é possível”. E como o interesse pela poesia já estava em mim, eu falei “vou começar pelo mais básico, vou atrás dos livros, das publicações”. Então desde o final de 2021, eu estou tentando fazer esse rastreamento. 

Obviamente que eu estou longe de conseguir apreender tudo, até porque eu preciso viajar por essas encruzilhadas das águas amazônicas para poder chegar a poetas que não têm registros. Eu falo de poetas da oralidade, de poetas que não têm um livro publicado, de cantores originários, de regimes discursivos originários, de artes verbais indígenas, ribeirinhas, quilombolas. 

A primeira coisa que a gente descobriu são os poetas de confrarias. Tem a Academia Altamireste de Letras, com escritores pertencentes à universidade ou não, mas que estão aqui na região do Médio Xingu já há muito tempo, que vieram de muitos lugares do Brasil e aqui fizeram sua morada. Em 2010, a Academia Altamireste de Letras surgiu, assim como a Academia Transxinguana de Literatura de Cordel.

A tradição popular do cordel, que vem sobretudo dos fluxos migratórios do Nordeste, é muito forte aqui também. Os poetas alternativos, periféricos, marginais, adjetivos que são autointitulações. Tem um coletivo de poetas marginais, tem a galera do hip-hop. É impressionante o talento dos jovens de Altamira na produção de poesia vocal. É um domínio do verbo que eu não tenho. Eu estudo, escrevo poesia, mas eu jamais seria capaz de pegar um microfone e improvisar uma letra de rap numa batalha, disputando com um adversário, numa disputa super saudável, inclusive, que eles fazem. 

Eles são muito bons e eles aprenderam com o tempo a organizarem o próprio grito. É impressionante. Todo mês eles ocupam os espaços públicos. Tem o Joaca Barros, que é um jovem talentosíssimo daqui, que é um multiartista, ele produz vídeos, ele produz o videoclipe da galera, ele é o MC que conduz as batalhas. Eu fico muito animado em poder conhecer essa galera e poder estabelecer um contato mais próximo, que é o que eu tenho tentado fazer para contribuir. Porque eu acho que a pesquisa vem de modo colaborativo, senão ela não faz sentido, eu não faço nada sozinho.

Tem, também, a galera muito vinculada à universidade, o Paulo Vieira, que é de Belém, é um poeta, está aqui, ele faz o rolê dele na Faculdade de Etnodiversidade [da UFPA]. É um poeta que tem um trabalho com a poesia com crianças em comunidades aqui do Médio Xingu. Tem um poeta que é de Curitiba, que é professor… Agora me fugiu o nome dele, porque é muita gente. Ele faz um trabalho com o ensino de Engenharia Ambiental e a poesia. É impressionante ter uma questão pedagógica com a poesia, que é muito importante, que é interessantíssimo também observar aqui.

E, claro, as poéticas originárias, que aqui nessa região ainda são praticamente intocadas. O que a gente sabe sobre os povos indígenas, que são muitos aqui, é uma região multilingue, vem da antropologia. E nem todos os antropólogos têm o interesse literário. Tem o Antônio Risério, por exemplo, que traduziu os cantos arawetés junto com o Viveiros de Castro. O Risério tem uma relação mais próxima com a poesia, então é na direção do Risério que eu tenho muito interesse, que é algo que eu tenho feito, estudar as línguas originárias, estudar o tronco Tupi, o Macro-jê, o Caribe, um mínimo, para ter contato com a possibilidade de transcriar cantos, histórias, enfim, toda sorte de artes verbais e regimes discursivos originários, que aqui é possível se fazer. 

Amazônia Latitude: Dentro dessa diversidade de vozes, e as representatividades? Mulheres, comunidade LGBTQIA+. Como você tem observado esse mapa que você está fazendo dessas manifestações poéticas?

Edmon Neto: A nossa pesquisa não conseguiu mapear informações socioeconômicas muito específicas. Mas em termos de gênero, e aí sendo bem binário mesmo, a gente encontrou, inclusive, um equilíbrio entre homens e mulheres. O que chama a atenção é justamente a ausência de escolarização formal. Isso é muito comum. 

Eu poderia chamar a atenção para alguns aqui. O Paulo Vieira, por exemplo, é um poeta que eu acho que estabeleceu uma relação com a região e que merece ser lido. Mas eu vou destacar o nome do João Mendes, que é um poeta de Medicilândia. Ele é um poeta analfabeto. Ele nunca escreveu um livro, mas o livro dele, que se chama “Poemas e Cantos” ou “Cantos e Poemas”, agora não me lembro. Ele foi, digamos, doxografado, ele foi transcrito por vários colaboradores que ouviam os poemas e os cantos e transcreviam. É um livro que eu tenho olhado para ele com muito carinho, com muita dignidade, na verdade. Fazer esse tipo de pesquisa é dar dignidade a quem nunca recebeu um tratamento digno. 

Amazônia Latitude: Clei, suas obras são viagens sensoriais pela Amazônia. Como é a influência dessa região, tão rica e tão diversa, na sua poesia?

Clei Souza: O meu trabalho que se liga à Amazônia, porque eu, como professor, tive o privilégio de ir para muitos lugares e presenciar muitas vivências em que há uma estreita relação entre o humano e a natureza e essa divisão clássica do ocidente, do humano como aquilo que é o distanciamento do natural. É algo que a minha poesia tenta quebrar por aquilo que percebo, a questão sensorial, a questão do modo de perceber a vida, o cosmos.

Eu acho que a minha poesia, na verdade, é uma espécie de registro, de aprendizagem dessas outras vivências, porque a gente é da universidade, e a universidade é, por excelência, esse lugar que distancia, na sua origem, o humano do natural. Então, a minha poesia vem de um aprendizado de como a Amazônia serviria como uma possibilidade de uma outra existência humana. 

Quando eu escrevo sobre essa temática, para mim, é a reverberação de um outro etos, de uma outra forma de ser. E aí, não somente eu, existe uma tradição de autores que, por serem da Amazônia, são muito importantes para o mundo. 

Por exemplo, durante muito tempo, houve um debate com relação ao Dalcídio Jurandir. Ele era regional? Ele era universal? E, na verdade, não sacaram, do que ele estava falando, que havia uma outra possibilidade de pensar humano, e que isso se ligava à vivência dele como Quilombola no Marajó, na Amazônia. 

Ele questionou os naturalistas, ele questionou aquilo que o modernismo não fez. Então, nesse sentido, ele é meio que antimodernista. Ele foi o primeiro autor da literatura que bateu de frente com aquilo que era o marco do modernismo brasileiro, que era o Gilberto Freire, por exemplo. Ele mostrou que havia uma outra possibilidade de perceber os povos de herança africana. E essa consciência ele teve pela vivência dele de sujeito afro-amazônico.

Não somente ele. A gente tem, por exemplo, Paz Loureiro. Então, eu tenho uma espécie de felicidade de me dizer pertencente a uma tradição de escritores que conseguiram contribuir com uma percepção de mundo, de universo, que hoje é uma demanda.

Amazônia Latitude: Essa representação da poesia em outras áreas é vista em muitos autores, como você colocou. Na tua poética, como essa relação se dá? Da poesia e das artes amazônicas em geral. 

Clei Souza: É porque tu precisa perceber, nas Amazônias, essa divisão disciplinar do que é poesia, do que é prosa, do que é palavra, do que é imagem. Isso é uma coisa bem… É uma doença ocidental, essa divisão entre gavetas. Chegas na Amazônia e tudo é entrecruzamento, tudo é rizoma. 

O rizoma, na minha poesia, está nessa realidade. Por exemplo, a cultura indígena. Tu tens o canto, esse canto se liga a um gesto, esse gesto se liga a um tipo de pintura, a um tipo de traço, a um tempo, a um espaço. A minha poesia é confluente e é intersemiótica, porque a realidade amazônica é assim. 

Nas pesquisas de leitura, por exemplo, se diz que a Amazônia é o lugar onde a literatura tem menos penetração, porque as pessoas consomem menos livros. Mas como mostrou o Edmon, vá ver os cantos dos povos originários, vá ver suas danças, vá ver suas pinturas. A poesia não é abarcável, ela é imensa e sempre em processo de transmutação, de diálogo e de contato, como é o próprio bioma. 

Amazônia Latitude: Vamos entrar na questão do ensino e aprendizado de literatura. Tanto você, Clei, como você, Edmon, são professores de Literatura na UFPA. Vocês acreditam que o ensino da literatura na Amazônia dá a devida representatividade aos autores e às obras amazônicas? Esse ensino ainda é feito a partir de uma perspectiva de fora da região ou já existe um processo da mudança de chave?

Edmon Neto: Eu venho para cá com uma visão de fora, então a minha visão está se transformando nesse momento. E eu acho muito importante pensar a Amazônia. Eu sou partidário da ideia de que a Amazônia tem que ser pensada como central, não só no Brasil, mas como no mundo. 

Eu não consigo, talvez, fazer uma avaliação muito precisa sobre como é o ensino de literatura aqui. O que eu percebo no Brasil de modo geral, é uma defasagem de literatura, que é um problema, uma crise do ensino brasileiro como um todo. É um problema da BNCC [Base Nacional Comum Curricular], que não fala na palavra literatura, é um problema do novo Ensino Médio. Então antes de pensar em como a literatura de expressão amazônica é trabalhada aqui, na região, [pensar] como a literatura, de modo geral, é trabalhada nas escolas.

O que eu percebo são muitos autores daqui sendo trabalhados, tanto na faculdade onde eu atuo, quanto nas escolas. 

Clei Souza: A gente tem que perceber que se a gente pegar de uma maneira histórica, como fala o professor Zé Miguel Wisnik, a literatura no Brasil começa como um instrumento de dominação de classe, da classe rica, branca, sobre os demais sujeitos da sociedade. Então ela serviu a uma classe, serviu a uma elite, veiculava um discurso. E na Amazônia não foi diferente. A Amazônia começa reproduzindo esses discursos. 

Eu vejo que há um esforço de muitos professores e muitos pesquisadores para que haja uma visibilidade de autores amazônicos muito mais na prosa do que na poesia. Por isso que, hoje em dia, eu me dedico à pesquisa exclusivamente da poesia, porque eu pretendo manter essa trincheira poética amazônica. 

A gente tem uma gama de autores maravilhosos. A gente tem Max Martins na poesia, na prosa tem vários, o Dalcídio é um deles. Só que há um distanciamento entre a pesquisa e o ensino. Por quê? Porque o ensino é uma espécie de capital. E aí você tem um ensino básico que gira em torno do Enem. O Enem, embora haja uma boa intenção de muitos criadores de prova, não tem como abarcar um país que é continental.

Eu, particularmente, nunca vi um autor da Amazônia entrar em uma prova de Enem. Aí entra em outro debate que eu acho que é a questão do cânone. O cânone não é uma questão apenas histórica no Brasil. O cânone é uma questão geográfica.

Eu costumo dizer que o problema da literatura brasileira é um problema regional se a gente conseguir considerar Rio [de Janeiro] e São Paulo como região. E aí se perde muito, porque essa riqueza desses autores amazônicos não é trabalhada no ensino básico, e na graduação ela é um pouco trabalhada, mas esporadicamente.

Eu tento fazer isso com o meu grupo de pesquisa, chamado Gri Amazônia, que trabalha representações da Amazônia na literatura, no audiovisual e na canção. A gente produz TCC [Trabalho de Conclusão de Curso], trabalho de mestrado. Na graduação também trabalho, mas ainda é preciso que isso seja institucionalizado. E eu estou falando só daquela literatura que a gente considera literatura no sentido tradicional, do livro escrito. Se a gente pensar nas outras produções, da oralidade, do corpo, isso é intocado. O que é interessante é que essas produções existem de uma maneira maravilhosa, apesar de tudo que se faz contra elas. 

Essa arte não somente sobrevive, ela consegue impor sua beleza com toda a sua força. É preciso que nós, na academia, consigamos ver essa possibilidade. Porque não se trata de uma questão de cota, vamos incluir os excluídos. Não, há uma potência e uma beleza fantástica nessas manifestações, que não são apenas matéria-prima para criações vanguardistas, modernistas, etc. São criações potentes, esteticamente ricas que, além de ter a sua beleza, ainda conseguem atravessar todo esse mar de censura, de perseguição e de opressão por séculos. 

Amazônia Latitude: Clei, você pode fazer uma pergunta para o Edmon? E Edmon, você pode fazer uma para o Clei? 

Clei Souza: Eu ouvi ele [Edmon] falando sobre a questão de como a Amazônia trouxe outras possibilidades poéticas, mas eu queria saber se isso se manifesta nessa maneira intersemiótica ou, como dizem outras pessoas, de maneira interarte. Se isso fez com que ele trabalhasse além do poema no papel, também a canção, o vídeo, o corpo e como é que ele pensa, agora, tanto a produção dele quanto a pesquisa dele. 

Edmon Neto: Bom, desde que eu cheguei aqui, eu tenho um projeto musical chamado Los Românticos Experience. É um projeto em que eu toco bateria. É um projeto com dois amigos, o André Monteiro e o Bruno Tuller. Então a gente fez um projeto, registramos esse projeto e, no ano passado, a gente fez um videoclipe, um segundo videoclipe para a banda. E parte desse videoclipe eu gravei aqui em Altamira, com a imagem das pessoas, com foco nas pessoas. 

Eu produzi o vídeo, dirigi, selecionei as imagens, editei, fiz tudo praticamente. Mas foi uma primeira incursão que eu misturei linguagens, estéticas, estilos e hoje eu acho um pouco apressado o trabalho. Mas é algo que me interessa, produção de vídeos, vídeo-poemas, eu gosto de fotografar, tenho feito algumas coisas, mas o que mais tem me interessado, para além da produção da poesia escrita, é buscar alternativas de poder captar cantos, transcrevê-los e traduzi-los.

Por exemplo, tem uma senhora indígena Xipaya aqui em Altamira, que é a Maria Xipaya, ela é a última falante da língua Xipaya, que é do tronco Tupi, e ela participa de vários eventos culturais aqui. Normalmente, ela abre os eventos cantando alguma música. Tem um filme sobre ela e tem um vídeo da Casa de Memória, que ela gravou, em que ela canta dois pequenos cantos, e eu consegui a transcrição de um deles, que é o Canto do Macaco. E eu estou aqui quebrando a cabeça, muito entusiasmado, muito curioso para poder entender e decodificar isso, transformar esse canto numa versão em português, esteticamente eficaz. 

A pergunta que eu queria fazer para o Clei tem a ver com muito do que a gente conversou aqui hoje. Eu me interesso quase que exclusivamente pela poesia, mas eu consigo enxergar a poesia, por exemplo, no Dalcídio. Eu acho que o Dalcídio é um enorme poeta. Agora terminei essa resenha sobre o Ribanceira, que é um livro pesadíssimo, super complexo, justamente porque as técnicas utilizadas ali são técnicas que fazem muitas coisas confluírem, tempos, espaços, enfim. E eu acho que isso é coisa de poeta. 

Muito do que você [Clei] disse hoje me ensinou. Eu já penso diferente a partir daquilo que você falou. O tempo da poesia é um tempo específico. O tempo da Amazônia também é um tempo específico. Quando eu cheguei à Amazônia, eu estranhei o tempo daqui, das pessoas, o tempo que as pessoas levam para viver. O cotidiano é outro, o clima é outro. E isso modifica radicalmente a nossa relação com o tempo. Eu queria te fazer uma pergunta direta, depois desse preâmbulo. A Amazônia é poesia? 

Clei Souza: Para mim, total. Eu acho que o ser humano ocidental foi criado em cima de medos. O medo do natural, o medo do retorno ao animal. E a Amazônia traz essa possibilidade do não medo, e sim da felicidade, da alegria do outro. De você conseguir entrar em tempos que confluem. 

Com relação ao Dalcídio. Eu conheci, eu admirava e admiro muito, um grande músico brasileiro chamado Walter Freitas. É o único músico do Brasil que tem só um disco e ele é idolatrado aqui em Belém, que é o “Tuyabaé Cuuá”. O nome do disco dele traduzido seria “A sabedoria dos antigos pajés”. 

Uma vez eu criei coragem, ainda estudante, perguntei para ele “quais são dois grandes nomes que te influenciaram a fazer essas canções?”. Ele falou Guimarães Rosa e Dalcídio Jurandir. Guimarães Rosa eu entendi, porque eu vi que ele cria neologismos, ele pegou a fala amazônica e recriou esteticamente. Mas o Dalcídio eu não entendi direito. Talvez seja um motivo amazônico. 

Depois de ler toda a obra de Dalcídio Jurandir, os dez livros do Ciclo do Extremo-Norte, eu percebi que ele [Walter Freitas] pegou frases dos romances [de Dalcídio Jurandir] e colocou nos versos. Ele fez uma apropriação parafrásica. A poesia, mais do que uma escrita, mais do que uma palavra, é esse processo de vivência e de experienciação de uma outra possibilidade.

Acho que isso está na poesia do Cecim, na do Max, na do Marcelo Caldas Costa, na do Paulo Vieira, que é um grande poeta também. Isso está no Dalcídio. É um tempo poético. É um tempo que nos propõe uma existência estética e não essa existência da produtividade que nos está levando ao caminho que o mundo vem tomando, que é um caminho de risco de extinção.

A Amazônia, nesse sentido, é fundamental poeticamente para ensinar. Não é somente um pulmão do mundo, não é somente uma reserva florestal, mas humanamente tem algo muito importante para ensinar para os países chamados “civilizados”. 

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