Jotabê Medeiros

Escritor e repórter, trabalhou como jornalista na Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Veja SP e CartaCapital. Participou de diversas coletâneas e publicou vários livros, entre eles, Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida (2019), finalista do Prêmio Jabuti.

 

Resenha: ‘A Secura dos Ossos’, de Sandra Godinho, é um romance entre os espíritos da floresta

Ritos, referências e realismo fantástico latino-americano: a envolvente narrativa de Sandra Godinho

Salpicado pelo pólen do realismo fantástico latino-americano, o romance “A Secura dos Ossos(Editora Patuá, 2022), da escritora Sandra Godinho, trata de uma sequência de ritos de passagem clássicos: o da menina que vira mulher, o da cidadã que se dá conta dos impasses éticos de sua terra, o da filha que descobre a história dos pais, o da moradora que vê seu mundo se alargar para além de sua comunidade, o da escritora que mergulha nos mistérios (e na tragédia) do seu País.

Antes mesmo de qualquer qualidade exógena, exterior à sua história fundamental, é preciso destacar que o ritmo da narrativa, fluido e sem afetação, de uma naturalidade desconcertante, faz de “A Secura dos Ossos” quase uma canoa deslizando num rio sem sobressaltos.

Sandra Godinho toma emprestadas, sem pressa para devolver, referências da literatura fundacional precedente – não por acaso, a personagem que é a espinha dorsal de “A Secura dos Ossos” se chama Ama Terra, uma clara referência à Ana Terra de “O Tempo e o Vento”, de Erico Veríssimo, e à saga de construção do Brasil mestiço em meio a uma terra partida.

A partir de um vilarejo descolado de uma costela da Macondo de García Márquez, só que por sua vez encravado na Amazônia, Encantado dos Almas, a meio caminho entre os garimpeiros e os Yanomami, a menina apartada de sua própria história (vivendo entre velhos, gente que morre de susto e andarilhos clarividentes), começa a recompor o quebra-cabeças da própria identidade ao decidir sair pelo mundo acompanhada de outro adolescente em uma espécie de road novel (ou “jungle novel”).

“Sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando”, dizia a Ana Terra de Erico Verissimo. No romance de Sandra Godinho, é também o vento que traz à adolescente Tainá, a filha mestiça de Ama Terra, as nuances das personalidades de seus interlocutores, as pistas de seu papel no destino, as defesas de que seus 17 anos necessitam.

A localização geográfica do romance vai sendo marcada menos pela precisão do que pelas diferenças: Boa Vista, a capital de Roraima, assim como Paracaima, também em Roraima, mas já na fronteira com a Venezuela, estão fora da área de influência porque não servem para receber os mortos de Encantado das Almas, já que os moradores do vilarejo preferem enterrá-los em pé entre suas casas.

Também poeta, a autora tateia a linguagem com olhar de descoberta, com habilidade de artesã, dando importância crucial às percepções, à construção rítmica, à invenção. “Eram homens mergulhados em perigosas gravidades, homens que tomavam o destino nas mãos, aproveitando a escassez de luz”. A Secura dos Ossos não idealiza a pureza – mesmo no mais recôndito dos paraísos e sob pesada vigilância ética, a cobiça e a maldade invariavelmente corrompem as pessoas.

Livro A Secura dos Ossos

“A Secura dos Ossos” parece inicialmente conduzir a um caminho que poderia ser mais adequado à literatura de entretenimento (há até uma evocação pop de StarWars, um “Eu sou seu pai” estandardizado dito por um personagem), tipo uma espécie de atualização da saga de Peri e Ceci. Mas é uma sensação ilusória, a história vai sendo progressivamente engolfada pela intolerância e o abandono espiritual, a desesperança, a ruína.

Ao alcançarem a Serra do Parima, Tainá e Tião alcançam também a possibilidade de compreenderem as coisas de outras maneiras. Até então, sua educação dos mistérios e da vida nas bordas da selva consistia na leitura cabocla, na crença em ideias como a de que basta virar a camisa do avesso para se livrar dos insidiosos encantos da serpente sequestradora.

Mas, quando são feitos cativos pelos Yanomami, portas profundas se abrem à sua frente, outro destino lhes é oferecido, mas é preciso deixar os comandos da razão para trás para compreender.

A introdução a um novo mundo, assim como uma nova problemática e uma febril sensibilidade, é oferecida não apenas aos personagens e ao leitor, mas também à autora, que trai sua própria estupefação para nos apresentar, numa narrativa à parte, as possibilidades de expansão da consciência por intermédio do xamanismo.

A experiência com o yãkoana (um pó cerimonial usado pelos Yanomami, produzido a partir da resina de uma árvore) é crucial para Tainá – por intermédio dos sonhos, de sua compreensão e vivência, ela começa a acessar os mitos e sua significação. É como se fosse um elemento paraliterário dentro da história, e, como tal, passa a exigir outro tratamento da autora,”apartes” destacados na edição.

A introdução ao mundo dos xapiri (na mitologia Yanomami, xapiri são os guardiões invisíveis das florestas, os espíritos nos quais vivem os ancestrais animais daquele povo) muda a narrativa e impõe uma pulsão diferente, um movimento que se dá a partir do momento em que a tensão entre aquela Nação indígena e os garimpeiros vai se acentuando.

O romance de Tainá Terra encontra seu desfecho na referência realista que encerra a ficção, que é o Massacre e Haximu, em 1993, na região do romance.

Foi uma chacina de indígenas promovida por garimpeiros – 17 indivíduos foram mortos de maneira bárbara, incluindo crianças e idosos, e demorou 3 anos para 23 assassinos serem indiciados.

O romance de Sandra Godinho foi finalista do Prêmio Leya 2022 – a autora também venceu o Prêmio Manaus e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. A forma como manuseia um amálgama de experiências femininas no interior de um conflito ancestral parece flutuar por cima da articulação violenta da Terra e da Luta (cruciais na visão masculina, por exemplo, de Euclides da Cunha). Tainá Terra procurava por respostas existenciais, e vai tê-las.

Junto com as respostas, presenciará o desmoronamento de diversos mundos em torno de si, mas a convicção da autora é de que, primeiro, é preciso saber, para só então poder escolher.


Jotabê Medeiros – paraibano de Sumé, mas pequeno e adolescente viveu em Londrina, no interior do Paraná. Jornalista, escritor, repórter de de cultura há 35 anos, é autor dos livros “O Bisbilhoteiro das Galáxias”, “Belchior – Apenas um Rapaz Latino-Americano”, “Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida”, “Roberto Carlos – Por isso essa voz tamanha” e da autobiografia familiar “O Último Pau de Arara”.
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