Festival Amazonas de Ópera: uma tragédia cultural em cinco atos
Um decreto do governo do Amazonas que reduziu gastos das secretarias foi responsável pelo cancelamento do evento
Considerado o maior festival de ópera da América Latina, evento foi cancelado por falta de verba.
Foto: Secom/Divulgação
O cancelamento do Festival Amazonas de Ópera (FAO) de 2024, anunciado em 8 de março, pegou de surpresa a todos os envolvidos na produção e seus admiradores. O evento ia para sua 26ª edição e se destaca por ser o mais tradicional e o maior da América Latina no segmento da ópera. Mas não pôde ser realizado este ano por falta de verba, de acordo com a Secretaria de Cultura e Economia Criativa (SEC) do estado.
Para se estruturar e colocar a Amazônia em evidência como um polo cultural da arte lírica, o FAO passou por uma trajetória curiosa. Em 1997, o já centenário Teatro Amazonas, em Manaus, não recebia um espetáculo completo de ópera havia décadas e estava em situação de abandono. O cenário era bem diferente do auge da agitação da Belle Époque na Amazônia, no início do século 20, quando os barões da borracha traziam companhias e grupos artísticos europeus para se apresentarem no espaço.
Foi quando o violinista alemão Michael Jelden se mobilizou para realizar o primeiro festival de ópera no Teatro Amazonas, em parceria com o governo estadual da época. O músico se inspirou no filme Fitzcarraldo (1982), do diretor alemão Werner Herzog, sobre a épica história de um europeu que tinha o sonho de construir um teatro e realizar uma grande ópera na Floresta Amazônica,
Michael Jelden trouxe 150 músicos da orquestra da ópera Bolshoi e solistas estrangeiros que trabalharam com o Coro Sinfônico do Amazonas. Foram apresentados os espetáculos La Traviata, Carmen, O Barbeiro de Sevilha e concertos sinfônicos.
O sonho de Fitzcarraldo se concretizou. A semente lírica foi plantada e colheu bons frutos ao longo do tempo. Com 25 edições, o Festival Amazonas de Ópera (FAO) se consolidou como o principal na América Latina e colocou o Brasil no mapa da ópera mundial.
Para além da relevância artística e cultural, o festival desenvolveu um legado educacional. Para atender a demanda por “mão de obra”, foi criado o Liceu de Artes e Ofícios Cláudio Santoro, em 1998, responsável por formar diversas gerações de profissionais nas áreas de artes visuais, audiovisual, dança, música e teatro.
Outro legado deixado pelo FAO são os corpos artísticos do estado, como a Orquestra Amazonas Filarmônica, o Coral do Amazonas, a Amazonas Band e o Balé Folclórico do Amazonas.
ATO I: festival cancelado em 2024
O enredo desta bem-sucedida peça só não contava com uma reviravolta: a seca histórica no Amazonas e austeridade que corta gastos de pastas ditas “menos importantes”.
Com o cancelamento da 26ª edição do evento em 2024, veio também a repercussão negativa e os debates a respeito do setor cultural, que é um dos primeiros a ser retaliado em situações de crise.
Por meio de nota, a SEC informou que o cancelamento se deu por conta de um decreto de redução de gastos, em vigência por tempo indeterminado, para manter o equilíbrio orçamentário do governo e manutenção de serviços prioritários.
O Governo do Amazonas anunciou o decreto em agosto do ano passado, alegando queda na arrecadação do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), que foi resultado da severa estiagem que assolou o estado em 2023. A medida foi prorrogada para este ano.
De acordo com a SEC, tentou-se nos últimos meses a captação de recursos junto à iniciativa privada, dentre outras possibilidades de parcerias que viabilizassem a produção do evento deste ano. Porém, não se conseguiu chegar aos valores necessários.
A pasta chegou a anunciar antecipadamente, durante o encerramento da 25ª edição do FAO, a programação de 2024, que estava prevista para acontecer de 16 de abril a 26 de maio e contava com cinco grandes óperas: Simon Boccanegra, de Giuseppe Verdi; O Afiador de facas, de Piero Schlochauer; Lakmé, de Léo Delibes; o concerto Gala Puccini; Alma, de Claudio Santoro; e Fedora, de Umberto Giordano.
Fontes ligadas ao festival informaram à Amazônia Latitude que os grupos artísticos já estavam se organizando para os ensaios dos espetáculos que se apresentariam no FAO.
No dia 29 de fevereiro, houve uma reunião no Teatro Amazonas com o coral e a orquestra em que foi repassado aos artistas que o formato seria alterado, diante da falta de orçamento para a realização do FAO. Seria encenada somente a ópera Simon Boccanegra. Lakmé seria em formato de concerto e a ópera Alma seria cancelada.
Nesse período, correram rumores do cancelamento, mas somente em 8 de março os trabalhadores do FAO foram informados oficialmente que não haveria o evento.
A fonte contatada pediu para ter não ser identificada, pois houve uma orientação interna para que os funcionários não falassem com a imprensa sobre o ocorrido.
A sinfonia do silêncio ecoa com os gestores do FAO. A diretora-executiva Flávia Furtado e o diretor artístico Luiz Fernando Malheiro não responderam os questionamentos dos veículos de comunicação. A Secretaria de Cultura apenas emitiu uma nota.
ATO II: Brasil no mapa da ópera mundial
Nelson Rubens Kunze é diretor da revista Concerto. Baseado em São Paulo, o veículo se dedica a cobrir música clássica e ópera no Brasil. Ele acompanha o Festival Amazonas de Ópera desde a primeira edição e viu o evento tomar forma. Kunze assistiu ao início da Amazonas Filarmônica, à época sob a regência do maestro Júlio Medaglia, em Manaus.
Em entrevista, ele conta que ficou surpreso com o cancelamento, que classificou como “pouco razoável” e “muito destrutivo”.
“No caso do Festival Amazonas de Ópera, acho que o choque é você ver 25 anos de história… Para nós, parecia uma coisa impossível de acontecer, que simplesmente não fossem fazer o festival. É um choque, além de um desastre”, afirma Kunze.
O crítico ainda destaca a preocupação da direção do FAO em formar profissionais localmente e não apenas importar mão de obra de outros estados e países. Esse cuidado permitiu que no Amazonas fossem formadas diferentes gerações de artistas e trabalhadores da cultura, dando a chance de fazer da arte um sustento.
“Desde sempre, houve a intenção de criar profissionais qualificados da Amazônia. Tudo em torno dessas atividades técnicas que rondam a ópera, desde cenógrafos, costureiros e maquiagem. Já tem pelo menos 15 anos que se faz ópera só com pessoas do Amazonas. Não é uma coisa que vem de cima, faz o festival e depois some. Deixa um legado.”
ATO III: FAO e a disputa narrativa da imagética amazônida
A imagem da Amazônia foi muito prejudicada por uma série de acontecimentos trágicos que repercutiram internacionalmente, como os recordes de queimadas, o garimpo ilegal, a crise humanitária dos Yanomami e o caso Dom e Bruno.
“Para o primeiro mundo, fica uma coisa meio estigmatizada para o lado ruim: falam que na Amazônia só se destrói tudo. Claro que não é assim. Quando a gente tem essas coisas lindas, que é a cultura, a promoção social pela música, o patrimônio humanista e universal da música lírica que são as óperas, sendo levado dentro do Amazonas, isso é uma notícia super positiva. É essa imagem que a gente tem que tentar levar pra fora”, diz Kunze.
A cultura se torna uma trincheira na guerra de narrativas e discursos sobre a Amazônia.
A pérola arquitetônica do Teatro Amazonas, no meio da maior floresta tropical do mundo, encanta. Essa joia da cultura nortista se torna o refúgio das mazelas e problemas que assolam a região. O mundo das complexidades deixa de existir por um momento para se contemplar a força teatral, musical, cenográfica e lírica de uma ópera.
O destaque do festival não se dá apenas pela peculiaridade geográfica de onde os concertos acontecem, mas também pela qualidade dos espetáculos. Há um critério rigoroso para as produções. Os principais artistas de ópera do mundo tem o Teatro Amazonas como, até então, um ponto de encontro anual para se celebrar essa arte secular.
O evento é uma oportunidade de se assistir às óperas, bem como de se envolver e aprender com a produção. Esse foi o caso do produtor cultural e artista Bosco Borges, que é da cidade de Itacoatiara, interior do Amazonas, e que trabalhou em duas edições do FAO, como contrarregra.
A vontade de fazer parte do festival veio quando uma caravana do evento passou pela sua cidade. Ele assistiu às óperas e ficou encantado.
“Comecei trabalhando na CTP [a Central Técnica de Produção], ajudando na produção dos figurinos, na produção cenário, dos adereços. Vêm muitos profissionais de fora, do Rio de Janeiro e de São Paulo, inclusive de fora do país para dar oficinas para os trabalhadores executarem as óperas. Aprendi muito. Eles também aprendem com a gente, com a nossa forma de trabalhar”, conta.
Bosco Borges, um artista do interior, não chegou a cogitar que um dia pudesse trabalhar em uma ópera. Ele conta orgulhoso do privilégio de poder contribuir com a produção da tetralogia épica do Anel do Nibelungo de Richard Wagner, icônico compositor da música clássica, que inclui os espetáculos Siegfried, O Ouro do Reno, Valquíria e O Crepúsculo dos Deuses.
“Comecei a trabalhar em 1986 com o teatro. Nunca tinha essa pretensão, era algo muito grande. A gente nunca pensou em se apresentar no Teatro Amazonas, porque o teatro é um templo sagrado. A gente sempre pensou pequeno, nós que somos do interior. Nunca imaginei que eu pudesse trabalhar na produção de óperas”, finaliza o artista.
ATO IV: Economia da Cultura e desenvolvimento sustentável
Um outro pilar fundamental do Festival Amazonas de Ópera é o impacto econômico dessa indústria criativa.
Segundo informações da organização do FAO, o evento gera cerca de 700 postos de trabalho a cada ano. Isso representa mais do que oito setores da Zona Franca de Manaus.
A organização repassou também outros dados para se entender a movimentação que o evento gera em seu entorno. Calcula-se que, desde o início, foram abertas seis lojas de instrumentos musicais, dez lojas de equipamentos de som e imagem, sete empresas de iluminação e quatro empresas especializadas em estruturas de palco.
Cerca de dez novos estabelecimentos comerciais foram inaugurados no entorno do Teatro Amazonas, que inclui restaurantes, lanchonetes, cafés e bares, além de sete novos hotéis, sendo dois de padrão cinco estrelas.
Em seu artigo sobre o cancelamento do FAO, Nelson Rubens Kunze destacou um estudo sobre o Festival de Ópera de Salzburg, na Áustria. De acordo com a pesquisa, o valor gerado pela demanda do festival, que era de 215 milhões de euros, alcançou quase quatro vezes o orçamento total do evento, de 59,6 milhões de euros. Os dados demonstram o poder e força da cultura como um motor econômico.
E o melhor: um motor econômico sustentável. A indústria da cultura representa uma alternativa de desenvolvimento que não precisa desmatar, queimar a floresta ou matar indígenas. É, por sua própria essência, uma economia verde.
Mais um fator importante é como essa indústria criativa impulsiona o turismo. Na Europa, um setor bem desenvolvido é o de turismo de ópera, onde é comum as pessoas viajarem para assistir a espetáculos.
Para que essa realidade se expanda na Amazônia, é fundamental a estruturação de políticas públicas e o investimento de recursos para a cultura. Mas, historicamente, a região Norte é preterida na distribuição da verba federal. Quem faz esse destaque é a diretora executiva do FAO, Flávia Furtado, em entrevista dada ao podcast do evento.
“O Norte é uma região que sempre tem pouco investimento. Quando tem as divisões de verba, o Norte sempre leva menos. Porque está mais longe, porque tem menos visibilidade para o resto do país, porque tem menos população. Ao mesmo tempo, é uma região onde é extremamente necessário esse investimento. O Norte é justamente uma das áreas em que a gente precisa de soluções para o desenvolvimento sustentável. A cultura é uma delas”, declara Flávia.
Em 2022, durante a programação do Festival de Ópera do Theatro da Paz, em Belém, foi assinado um convênio entre os governos do Amazonas e Pará para a criação do Corredor Lírico do Norte. A ação inaugurou uma parceria inédita no país entre teatros líricos, mirando na capacitação de profissionais, circulação de espetáculos e coproduções.
As particularidades da região Norte não são consideradas na distribuição federal de recursos, o que inviabiliza uma série de avanços no setor cultural.
Diante da situação, as delegações da região compareceram em peso na 4ª Conferência Nacional de Cultura, que aconteceu entre os dias 4 e 8 de março em Brasília.
Os grupos levantaram a pauta do “fator amazônico”, que foi reconhecido unanimemente nas propostas aprovadas no evento. A medida permite uma distribuição justa de recursos, equilibrada e inclusiva, respeitando as regionalidades.
A consideração do “fator amazônico” foi uma vitória, juntamente com as propostas que dizem respeito à criação de uma instituição vinculada ao Ministério da Cultura para tratar somente da cultura amazônica, a garantia de recursos para o Fundo de Cultura da Amazônia e a permanência da Lei Rouanet no Norte.
ATO V: Cultura como medida socioeducativa
Para além de todos os impactos positivos na economia ocasionados pela indústria da ópera, eventos culturais também podem exercer importante papel socioeducativo – a exemplo do que acontece com o projeto Sons de Liberdade, realizado pelo Festival de Ópera do Theatro da Paz.
O projeto é desenvolvido na comunidade carcerária do Pará desde 2021. São realizadas oficinas de capacitação voltadas às artes performáticas, como cenotécnica, figurino e visagismo, ministradas por profissionais que atuam nesse festival.
A ópera Armide, de Jean-Baptiste Lully, foi apresentada no evento e teve os figurinos totalmente confeccionados pelas mãos de quatro mulheres egressas do Sistema Penitenciário.
Em outra ocasião, a ópera Die Abreise, de Eugene D’Albert, também teve parte dos figurinos e cenários construídos por quase 80 custodiadas e custodiados do sistema penitenciário.
A cultura tem essa característica: abraça todos, sem julgamentos ou preconceitos. Uma pena que nem todos os governantes não a abracem também.
Produção: João Felipe Serrão
Revisão: Isabella Galante & Filipe Andretta
Direção: Marcos Colón