Eva Potiguara, Jama Wapichana e a literatura das mulheres indígenas

As escritoras Jama Wapichana, do povo Wapichana, e Eva Potiguara, do povo Potiguara

A literatura produzida pelos povos indígenas é um instrumento que ajuda na disseminação da história e dos saberes originários. No Brasil, escritores indígenas ainda buscam alcançar mais destaque no mercado editorial. No caso da literatura produzida por mulheres indígenas, a luta pelo espaço é ainda mais difícil e importante.

 O Mulherio das Letras Indígenas surgiu com o objetivo de dar voz a artistas indígenas mulheres de todo o Brasil. É uma organização não governamental sem fins lucrativos, que busca descolonizar e aldear as múltiplas linguagens do Brasil de hoje.

 Em 2022, o Mulherio das Letras Indígenas publicou seu primeiro livro, o Álbum Biográfico Guerreiras da Ancestralidade. A obra reúne mais de 60 escritoras e poetas indígenas de várias etnias de todo o Brasil. Dividido em duas partes, o álbum biográfico começa com homenagens a mulheres pioneiras na literatura indígena, como Joenia Wapichana e Sônia Guajajara, e termina com a coletânea dos textos produzidos pelas autoras e pequenas biografias de cada uma delas.

 No episódio de hoje da série Pensando a Amazônia pela Literatura, vamos conversar com Jama Wapichana, do povo Wapichana, e Eva Potiguara, do povo Potiguara.

 Eva é escritora, artista audiovisual e doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, além de ser coordenadora do Mulherio das Letras Indígenas. Jama é escritora, roteirista e mestre em Letras e Literatura pela Universidade Federal de Roraima.

Amazônia Latitude: Eva Potiguara, Jama Wapichana e a literatura das mulheres indígenas


Amazônia Latitude
: De onde veio a inspiração para vocês criarem esse coletivo de literatura?

Eva Potiguara: A princípio, o Mulherio não existia voltado para especificidades das mulheres indígenas. O Mulherio das Letras é um coletivo de um movimento popular, democrático, que surgiu há mais de seis anos, começou em 2016. Esse movimento começou pela Maria Valéria Rezende, quando ela estava numa feira de livros no Rio de Janeiro, e ela olhou para a programação e não tinha nenhuma mulher na abertura dessa feira de livros. E ela perguntou “onde estão as escritoras? Só tem homem?” E a partir desse questionamento, elas resolveram ali mesmo fazerem o manifesto e criarem o que elas chamaram de Mulherio.

E aí surgiu o Mulherio das Letras Nacional e os Mulherios regionais. Cada estado, Rio de Janeiro, São Paulo, e aqui mesmo no Nordeste, Rio Grande do Norte, foram surgindo Mulherios. Aqui tem o Mulherio Nísia Floresta, que foi o primeiro que surgiu. Depois surgiu outro Mulherio aqui chamado Zila Mamede. Mas não havia um Mulherio com especificidade, como eu falei, indígena.

Quando veio a pandemia em 2020, nós tivemos muitas dificuldades de produtividade e as mulheres indígenas mais ainda. Só que uma coisa que sempre nos perseguiu é a injúria racial. E foi algo que nos afetou mais ainda na pandemia. Porque nós começamos a fazer lives. Então muitas mulheres que se autodeclaravam indígenas começaram a ser mais perseguidas ainda. Por quê? Porque a visibilidade passou a ser maior no campo virtual do que no campo presencial. E eu fui uma dessas mulheres.

Numa discussão num grupo de poetas, eu disse que eu era indígena e era uma escritora que pesquisava os percursos da minha família. E a partir disso eu comecei a ser bastante atacada e fui muito atacada nas redes sociais por um desses escritores do Rio Grande do Norte. A partir daí, se tornou uma coisa tão terrível que eu comecei a ser cancelada por alguns movimentos feministas. Porque esse escritor e outro junto com ele eram responsáveis por um site de artigos, e os artigos eram bem pesados, artigos às vezes muito cheios de discurso de ódio, de misoginia e bastante racismo. Eu fui muito explorada de todas as formas nesse site.

E quando eu busquei ajuda a alguns movimentos, eu fui totalmente desdenhada. As pessoas não queriam se envolver. E então o próprio mulherio aqui, no meu contexto, essas meninas sentiram dificuldades nisso.

Até certo ponto eu entendo a dificuldade que elas tiveram. Agora eu fiquei numa situação muito delicada, me senti muito só. Foi então que eu botei essas pessoas na justiça, esses homens. E comecei a desenvolver um trabalho mais solitário inicialmente, mas eu fui acolhida por Eliana Potiguara e depois acolhida pela nossa querida Maria Valéria Rezende. Elas me deram muita força, e eu comecei a juntar mulheres indígenas de outros estados pelas redes sociais. A gente começou a fazer algumas lives.

E esse movimento que começou nas lives, depois, em 2021, alguns de nós nos encontramos na Marcha das Mulheres Indígenas em 2021, em Brasília. E aí, quando foi em 2022, em janeiro, eu fui visitar Maria Valéria Rezende e, conversando com ela [sobre] as dificuldades que eu estava tendo de acolhimento aqui, de desenvolver um trabalho aqui, regionalmente, ela disse “você esqueça isso e vá dar prioridade ao Mulherio das Letras Indígenas a partir de agora”. E quando ela disse isso pra mim, eu senti que chega um fogo me queimou por dentro, que eu não tinha me despertado, que tudo aquilo que estava acontecendo comigo, de alguma maneira, era pra me levar pra esse outro caminho.

E foi então que, em 2022, no dia 20 de fevereiro, nós fizemos a nossa primeira Assembleia Nacional Virtual e, nesse dia, nós tivemos mais de 80 mulheres nessa Assembleia Virtual e abrimos o Mulherio das Letras Indígenas.

Amazônia Latitude: E quantas integrantes o coletivo tem hoje?

Eva Potiguara: Hoje a gente já passou de 200 mulheres, sendo que essas mulheres escritoras também são artesãs, cacicas, doutoras, médicas, advogadas. A maioria mora em contexto urbano, 25% mora em contextos aldeados e mais de 70% mora em contexto urbano. E algumas moram fora do país, em Portugal, no Paraguai, no Chile, no Peru, mas são mulheres indígenas que saíram do Brasil e foram tentar a vida noutros lugares. Algumas também são cantoras, musicistas.

E uma coisa que a gente percebeu [é que] a maioria delas sofrem, ainda hoje, perseguições por não estarem aldeadas, porque dependem apenas do trabalho delas, ou seja, às vezes elas não conseguem uma inclusão num projeto por ser indígena. E o Mulherio é para isso também, para fortalecer essas mulheres, porque os crimes de abuso, silenciamento e apagamento de mais de cinco séculos de invasão, genocídio e etnocídio ainda estão presentes na dor, na memória e hoje estão na nossa escrita.

Essa juventude de hoje, como Jama Wapichana, que é uma das nossas manas jovens, a gente fica com esperança que essa juventude vai continuar na resistência pelas outras que virão, como sementes desse processo.

Amazônia Latitude: Jama, como se deu esse processo da sua produção? O que o Mulherio compartilha em termos de linguagem, o que busca resgatar, avançar nesse processo da tessitura da produção literária, da linguagem? Como você experimentou esse processo na colaboração com o Álbum Biográfico Guerreiras da Ancestralidade?

Jama Wapichana: O Mulherio das Letras é um encontro para além de um livro. É um encontro com os outros. A princípio, eu fui convidada pela outra parenta, Lucia Tucuju, a entrar no Mulherio das Letras pra gente lançar um álbum e um conto.

Recentemente, eu tinha finalizado o meu mestrado. No meu mestrado eu trouxe um poema, uma escrevivência minha, do meu sagrado violado. É uma dor minha, um processo de violência muito individual e também coletivo. E a primeira coisa que veio à cabeça [foi] “vou levar a isso”, porque eu senti um acolhimento antes desse primeiro momento.

Para mim, foi um momento de muita subjetivamente, muito desafiador, uma escrita de violência, que atravessa meu corpo. Mas eu vejo que não só o meu corpo, eu falei um pouco da violência contra as mulheres indígenas, contra os corpos, o território violado.

E entender que não é uma luta individual, mas sim uma luta coletiva e que a gente torna público isso. É um processo de se limpar, de se curar também, em que fui abraçada pela Eva Potiguara, [que] me ajudou bastante na escrita. Eu fico pensando, “será que é esse momento de expor isso?”. E foi um momento bom, foi um momento certo, porque é um processo de encontrar com o outro, conhecer o outro através do livro, foi um processo de cura para mim. É como eu vejo a minha escrita, que também foi moldada, teve observações.

Mas qual escrita que eu quero levar? Essa seletiva de contos, essa seletiva de poemas para dentro de um livro, que representa uma mulher indígena, uma mulher wapichana dentro desse álbum. Eu entendo em diversos momentos que eu pude estar com outras manas de diversas partes do Brasil, a gente pôde compactuar, a gente pôde chorar juntas, compartilhando as mesmas dores, falar sobre patriarcado, sobre a violência desse território, falar da violência contra o sagrado.

 Amazônia Latitude: Um dos aspectos importantes que eu vejo no Mulherio e no Álbum Biográfico Guerreiras da Ancestralidade é que é um livro que é construído de uma argamassa coletiva, de mulheres de todo o Brasil, de todas as partes do Brasil. Qual é a missão do Mulherio? Como o Mulherio é um instrumento não somente de registro, mas de resgate da cultura, de que maneira o Mulherio serve como uma plataforma de reivindicar a preservação da cultura indígena brasileira, inclusive pela participação das mulheres?

 Jama Wapichana: Eu acho que a gente vive em uma bolha. O Mulherio das Letras permitiu que eu tivesse encontro com outras manas. Eu, enquanto mulher wapichana que vive em território de fronteira aqui no Caribe, aqui na Amazônia brasileira, eu estar com outras manas, ter essa abertura de ouvir outras manas. Eu acho que muitas das vezes a gente esquece desse processo de violência.

 Quando a gente foi para o Encontro Mulherio das Letras, no ano passado, em 2022, eu cheguei em um momento que as manas estavam falando muito de espiritualidade. Aquilo me incomodou, porque para nós a espiritualidade não se fala. A espiritualidade trabalha em silêncio. E eu pude notar que aquilo me incomodou muito interno, mas eu pude ver “não é assim, Jama”. Eu entendi o processo de tanta violência que as nossas manas do Nordeste passam. Como é que a gente, aqui da região Norte, recebe as outras manas? Porque os nossos olhares dessa recepção ainda… eu vejo que é um preconceito entre nós ainda, entre nós para com nós.

Eu acho que a gente precisa – estou falando em geral – ter uma reeducação. Para romper com isso, essa não aceitação das manas do Nordeste, também, as manas do Norte. Romper com essa questão de estereótipos dos cabelos de samambaia. Romper com esse estereótipo, porque a gente também no Norte, a gente carrega esse estereótipo. E existe essa diversidade, essa diversidade de corpos, essa diversidade de espiritualidades, de ver o mundo, de estabelecer relações.

Como é que a gente respeita, como é que a gente acolhe. E eu pude aprender muito isso. Estou falando para nós, a gente precisa se reeducar. Como é que a gente vai poder reeducar a sociedade brasileira, que vive já nesse racismo muito estrutural? Porque o racismo está entre nós, o preconceito está entre nós.

Eva Potiguara: Eu acho muito pertinente e esperançoso ouvir a narrativa de jovens como Jama Wapichana, que é uma mana lá do Norte, tendo essa visão mais ampla do que o etnocídio foi e ainda é dos nossos corpos, territórios, das mulheres, e, em especial, as mulheres do Nordeste brasileiro.

Porque o processo de colonização é um processo ainda bastante presente, porque está bem vivo na desigualdade social, nas sequelas dessas grandes injustiças sociais ainda presentes. Vocês veem como nós percebemos o processo de usurpação dos corpos.

O etnocídio não é a morte do corpo, mas a morte do processo de identidade, quem é você. E chega, também, a esse olhar do outro, que você não é ou você é. E muitos dizem “você não tem cara de índio, você não tem cara de índia”. Isso é muito doloroso. “Você não é índio, não tem índio no Rio Grande do Norte, não tem índia no Rio Grande do Norte”. Você chegar a ouvir isso, gente, é você ouvir o tombo de todos os seus ancestrais novamente sobre a terra. É você ver mais uma vez o genocídio se fortalecer no etnocídio. Porque a morte das memórias, a morte das nossas culturas, a morte da nossa própria identidade, do ser.

 E ao se identificar como escritora indígena, a gente se depara com outro confronto, que é o confronto de autoafirmação, de dizer “eu sou escritora de dores, eu sou escritora de memórias, narrativas ancestrais, e, ao mesmo tempo, eu sou uma sobrevivente, eu sou uma mulher filha, neta, bisneta, tetraneta, quintaneta, de mulheres que foram silenciadas, usurpadas, abusadas, e hoje eu não posso me calar, minha escrita é subversiva, é uma escrita que não tem códigos padrões da literatura formal, ela tem um processo de escrevivência que está relacionado às memórias de uma espiritualidade e ancestralidade bastante violentadas”.

 Ao mesmo tempo, nós somos essas mulheres que ainda são apontadas como subversivas, aquelas que incomodam e aquelas que não são bem-vindas em todos os lugares. Então, nós estamos incomodando, ainda vamos incomodar mais, porque nós estamos num momento histórico do século XXI em que não podemos mais nos calar.

 Mesmo que a gente tenha que confrontar-se com a morte do corpo material, nós vamos morrer falando e sangrando as nossas letras, porque nós precisamos disso para dizer que nós, hoje, somos sementes, somos frutos daqueles que acharam que tinham sido dizimados, os nossos povos, os nossos pais. Nós nos tornamos escritoras, aprendemos a língua do invasor para dizer que essa terra é nossa, esse lugar é nosso, e nós podemos ser o que quisermos. Vocês jamais irão falar nada sem nós, fazer nada sem nós, e jamais irão nos deter, mesmo com suas armas de fogo, com suas armas químicas e com todo o poder patriarcal que vocês engendraram há mais de cinco séculos.

 Porque a nossa escrita não é apenas uma literatura, ela é a nossa ancestralidade viva, ela é, também, a voz dos nossos encantados e ela também é fogo, terra, água e ar. Ela é a própria Mãe-Terra, junto de todas nós, a nossa mãe querida, a mulher mais estuprada e mais violada, e nós, membira abiayala, filhas da terra, vamos até o fim, por todas, e especialmente por ela.

 Amazônia Latitude: No Repórter Eco, na TV Cultura, a organizadora do livro, Vanessa Guarani, comentou que alguns dos textos vieram de histórias contadas pela tradição oral. Como funcionou a adaptação dos textos dessa oralidade, dessa transcrição, para o livro? Qual é a importância dessa adaptação?

 Eva Potiguara: O processo não foi fácil, porque, embora nós tenhamos estigma de povos da oralidade, nós também sempre utilizamos as expressões gráficas, ou pictográficas, ou pirográficas, porque os nossos povos também foram povos imagéticos, usavam as imagens nas pedras, nas rochas, nas cerâmicas, nas madeiras. Esculpiam as suas histórias através de simbologias, sejam elas até nos cânticos.

 Quando o invasor chegou, eles precisavam aprender a nossa língua. Então, os jesuítas criaram a língua Nheengatu em alguns povos, que quer dizer língua boa, que é uma mistura do Tupi com o Guarani e outras línguas para facilitar essa comunicação, que, na verdade, não tinha nada de educação, era só uma estratégia a mais de usurpação e manipulação.

 Por outro lado, essa troca comunicativa fez com que os jesuítas tivessem acesso às oralidades originárias, às cosmovisões desses povos, a partir do momento em que eles podiam se comunicar e trocar os seus saberes. Muitas dessas histórias foram transcritas por alguns jesuítas, e em até alguns livros.

 Muitos dos indígenas foram aprendendo a escrever porque foram educados no catecismo desde a tenra idade dos seus 5, 6 anos de idade. Chegavam aos 10, 12 anos já alfabetizados na língua do branco, e começaram a escrever, também, esses produtos que antes estavam só no contexto da oralidade.

Quanto às nossas manas, às mulheres, elas sempre foram as que mais transmitiam essa oralidade para seus filhos e netos, nos momentos antes de dormir ou até nos momentos de colheita, no momento de catar o feijão, no momento de ralar a mandioca. Ali eram momentos também de trocas de histórias. As mulheres hoje, aquelas que têm celular usam mais o áudio do celular, mais do que a própria escrita, porque algumas também falam o seu idioma materno, que é diferente do idioma do branco da língua portuguesa.

Muitas das manas fizeram áudios dos seus poemas, das suas crônicas, das suas etnobiografias, e nós tivemos uma comissão de curadoras para transcrever essas oralidades nos áudios. Passamos para o processo de transcrição, depois para o processo de revisão do português e depois para a diagramação. Foram processos longos, levaram às vezes cinco meses. Porque nós tínhamos que ter ciência da pontuação, do parágrafo, do ponto de exclamação ou de interrogação, porque tínhamos que prestar atenção naquela oralidade e trazê-la para o status de escrita.

Foi um processo artesanal, mas foi um processo de muitas mãos. Muitas manas do Mulherio têm formação em Letras, em Língua Portuguesa, algumas têm formação em Artes Visuais, como eu, algumas são doutoras em outras áreas, doutora em Literatura, em Língua Portuguesa. Eu sou doutora em educação. Então, tivemos o apoio somado do coletivo. O coletivo fez a diferença na transcrição desses saberes. 

Muitas dessas manas também escreviam desde a adolescência e chegaram aos 40, 50 anos sem nunca ter publicado um livro sequer. Elas estavam no total apagamento, e o livro foi o primeiro livro, na verdade, [em] que foi publicado algo produzido por elas.

São quatro páginas por autora, sendo que a primeira e a segunda páginas eram reservadas para a etnobiografia, que é a parte onde ela conta a história do seu povo, e a terceira e a quarta páginas eram para poemas, crônicas, contos e outras produções literárias autorais. Sendo que essas produções vêm dessa oralidade. Muitas delas são contos que vêm da oralidade do seu povo. Então, a gente percebe isso, as cosmovisões nessa diversidade.

Também percebemos que essas mulheres têm talentos incríveis e uma capacidade de comunicação criativa esplendorosa. Bastava ter um pouco de oportunidade. É por isso que nós nos fortalecemos nessa luta pelo Mulherio.

Amazônia Latitude: Jama. Se define melhor uma literatura indígena em 2023. Qual é a tua visão da literatura indígena? E em relação à luta por protagonismo, em relação ao mercado editorial, como você vê a contribuição que o Mulherio traz nesse processo, em busca desse protagonismo?

Jama Wapichana: Eu penso de onde sai isso, sabe? Talvez eu não consiga responder se é o mercado editorial, mas de impactos nas bases. Para quem a gente escreve. Eu acredito que a gente ainda deve escrever para nós, para que a gente possa reeducar primeiro a gente. Esse tipo de literatura serve para nos acordar. Uma compreensão para nós entendermos como a gente está tão envolvido, tão… Para nós. Eu fico pensando para nós. É um despertar para nós.

Essa literatura tem que chegar para nós. Quando tem chegado em vários lugares, várias escolas nas nossas bases, várias escolas de comunidades indígenas, eu acho que o objetivo tem que chegar até nós, para conosco. Depois a gente consegue alcançar a sociedade brasileira, os mercados editoriais, porque o principal somos nós.

Quem é que a gente está despertando? O que a gente está falando nas nossas escritas? O que as nossas parentes estão trazendo? Essa valorização de nós enquanto profissionais, desse reconhecimento perante os nossos coletivos. Para mim, antes de chegar ao editorial, é um reconhecimento de identidade também. É dizer que nós podemos publicar também. Isso, para mim, foi um marco muito renovador, um marco coletivo.

Amazônia Latitude: Recentemente, nós publicamos uma resenha e um podcast com uma autora Verenilde Pereira, que é considerada a primeira autora afro-indígena. O livro dela foi redescoberto 25 anos depois que ela publicou o livro com o próprio dinheiro dela. Ela saiu distribuindo o livro nas ruas, colocando nos pontos de ônibus para as pessoas pegarem. E o livro, hoje, vai ser reeditado pela Companhia das Letras. Hstórias como essa, de uma mulher filha de pai negro, de mãe indígena, que publicou um livro que quebra paradigmas, que traz não somente uma linguagem inovadora, mas que abre um protagonismo inédito nas letras brasileiras, considerado importante nesse momento. Jama, você pode comentar algo no sentido dessa relação da produção, do que aconteceu nesse caso com a Verenilde Pereira, se é possível fazer essa correlação, inclusive pelo fato de ser uma literatura afro-indígena, pioneirismo.

 Jama Wapichana: Como é que a gente traz o termo afroindígena? Porque está em ambiente de fronteira também. A gente pode até se encontrar em termos de afro, mas é muito complexo isso. É muito complexo colocar o afro na frente do indígena. Esses termos são muito complexos e estão sendo muito debatidos.

Mas de como essa literatura passa a ser visibilizada, de Virenilde, questões amazônicas também. Exemplos. Na minha região, nós não temos muitas publicações, mas publicações que saem das comunidades. Já tem muitos materiais produzidos, mas não tem ainda suporte. Essa questão de que eles produzem muito, muito material, mas não tem essa visibilidade. Tornar esse material concreto, escrito – está faltando isso para cá, para as nossas regiões, mas as comunidades, os professores, a nossa juventude tem produzido bastante. Claro, com a sua especificidade, mas essa invisibilidade ainda abarca todas nós, chega até nós.

Amazônia Latitude: O Ailton Krenak fala muito de ideias para adiar o fim do mundo. Na verdade, o cerne do livro “Ideias para adiar o fim do mundo” (2020, Companhia das Letras) é contar histórias. Todos nós temos um HD no nosso cérebro para histórias, para ouvir histórias, contar histórias. Eva, na construção do livro, como você definiria o processo de contar histórias das mulheres? Como vocês observaram esse processo de contar histórias dentro do livro?

Eva Potiguara: Eu acho essa pergunta muito importante, porque, primeiro, a gente vai destacar esse lugar de fala que transmuta-se da oralidade para a escrita, mas que, nessa transmutação, não perde a sua essência de resistência e, ao mesmo tempo, a sua natureza ancestral.

 O que acontece quando a gente escreve? O que seria essa escrita de uma mulher indígena? Eu acredito que a nossa escrita não é apenas minha. A nossa escrita é uma escrita do eu-outro e outras. Eu vejo a minha escrita como uma escrita que está fincada nas raízes mais profundas das árvores, assim como ela está nessa corporeidade das mulheres e homens de minhas vidas, aqueles que estão no meu sangue, no meu genoma, no meu DNA e que, muitas vezes, de maneiras que eu não sei explicar, gritam, falam, cantam, rezam, poetam e criam artes.

Essa arte da palavra, que seria a literatura, é uma arte que não tem um final feliz, porque a nossa vida não tem final e esse momento não é feliz, mas também não é infeliz. É um momento de luta. Nós estamos incessantemente na luta. E quem está na luta implica que esteja atento a acolher o parceiro ou parceira que está lutando junto.

Quando a gente escreve, nossas escritas têm essa densidade, intensidade. Tem um poema meu da última obra, “Abya Ayala Membyra Nenhe’gara” (2022, UkA Editorial), que diz assim:

“A minha escrita eu uso para dizer o que me cala

A minha pele é um mapa de histórias colonizadas

As minhas memórias são rios que teimam e teimam cobrir abismos

As minhas vozes desejam acordar ladrões de sonhos”

 Então, é uma escrita de uma corporeidade… e quanto mais a gente se fere, mais a gente se desaversa em versos, em crônicas, nas nossas rimas de dores, nas nossas rimas encharcadas de sangue e também de memórias.

 Quando eu fui escrever um poema que eu chamei de “Ancestralidade Feminina”, eu contei as histórias de mais de cinco gerações da minha família. Por quê? Eu parti da oralidade das mulheres de minha vida, de tudo que eu ouvi desde criança e fui trazendo um conto que, na verdade, é toda uma série de violações e usurpações históricas que foram processadas na minha geração.

 Então, quando eu escrevo isso, não estou apenas contando uma história, entende? Eu estou denunciando crimes e, ao mesmo tempo, manifestando o meu amor e a dignidade dessas mulheres. Eu digo assim:

“Minha mãe, com quatro anos, morava no sertão

Foi levada para o litoral por uma tia rica que preferia seu cabelo de indinha nativa

Minha avó tinha muitos filhos

Aceitou compassiva, pois saiu moça do Seringal do Pará para fugir da vida tempestiva

Minha bisavó desgostou do gênio paraibano

Porque era um caboclo andarilho e andava pelo mundo como um cigano

Minha trisavó nem soube dessa confusão

Foi pega pelo laço, pelo branco, com quem viveu infeliz dessa violação

Minha tetravó no mato vivia e plantava macaxeira

Até sua roça ser queimada por ambição pela madeira

Minha quinta avó na aldeia vivia, com seu povo em comunhão

Na floresta livre ela dançava até o navio chegar e declarar a invasão”

 A nossa escrita é uma escrita eu-outro coletiva. Ela é uma escrita de cosmovisões que se entrelaçam. E, no meu caso, é uma escrita de muita dor. Eu não consigo escrever nada que seja festivo, mas eu também não consigo ser nem totalmente triste e nem ser alegre. Eu não perco a esperança, porque eu continuo lutando, e eu sei que não estou só. E sei que sempre haverá outros e outras lutando nesta mesma luta.

 Amazônia Latitude: Jama, no final do teu texto, você faz uma citação e diz que escrever certamente é uma maneira de sangrar. Por que você usou essa citação?

 Jama Wapichana: Citei Conceição Evaristo. Também pela Eliana Potiguara. Essa minha escrita foi pensada muito durante o mestrado. Ela trabalhou de Eliana Potiguara, “A metade cara, a metade máscara”, sobre o processo de violência, mas ela fala muito sutilmente dentro da obra desse processo de violência. E ao escrever, tornou-se… A gente sangra, é um processo de muita dor. É um processo que a gente entende por cultura, o que a gente entende por dor coletiva.

Para esses processos que a gente tem, o que é ser indígena hoje no Brasil? Por trás da escrita, o que escrever nos traz? As dores dos nossos irmãos também. A escrita realmente faz a gente sangrar. Essa dor não é só nossa, não é só nós, não existe o individual. A gente traz essa força, essa manifestação dessa força de dor e de libertação. Trazer essas dores em memórias.

 Escrever é deixar um marco para as nossas identidades, para nossos corpos, o que a gente está falando. Nossas violências vão para além disso. É o que a Eva compartilhou mais cedo, sobre o processo das dores da terra, terra como parte de nós.

Amazônia Latitude: Eva, quais são os planos do coletivo para o futuro? O que vocês pretendem publicar? O que vocês esperam em termos de apoio ao coletivo para outras publicações?

Eva Potiguara: Na verdade, a gente não tem planos para o futuro, a gente tem planos no presente, e o nosso presente é o futuro que nós temos. Mas a gente quer publicar o Álbum Etnobiográfico 2024” e, no próximo ano, a gente está vendo a possibilidade de fazer uma parceria com o MEC [Ministério da Educação] e a rede de sustentabilidade. E já temos um parceiro que gostou da ideia para distribuir nossa obra, porque a gente vai continuar com a proposta de uma obra que não pode ser vendida.

E o outro desafio, a gente quer fazer o nosso primeiro congresso nacional de escritoras indígenas, a nível nacional. A gente quer fazer esse encontro trazendo as manas, e essa é a nossa maior dificuldade. A gente precisa trazer parceiros para poder somar nessa questão de recursos e a gente precisa trazer essas mulheres porque a maioria de nós não nos conhecemos pessoalmente ainda. Somos mulheres de várias regiões, região norte, nordeste, sul, sudeste, centro-oeste.

 Nós também temos um grande desafio que nós vamos agora encabeçar. Além do álbum biográfico, a gente quer fazer uma série que a gente está chamando de Aldear a Literatura Brasileira. Aldeando a Literatura Brasileira, meu primeiro livro. A gente quer possibilitar que as escritoras indígenas do Mulherio que ainda não tiveram as oportunidades nem condições de publicar seu primeiro livro solo, possam fazer isso no próximo ano.

Nós estamos com esse grande projeto, que é um projeto único. É um projeto bastante ousado, é um projeto de enfrentamento com o patriarcado, com essa máquina capitalista colonial, que é a máquina do livro. A gente sabe que a maioria das livrarias foram fechadas. Existe um número pequeno de grandes produtores de livro que dominam o mercado da literatura e do livro didático. E a gente também está enfrentando tudo isso.

Além da invisibilidade, porque a literatura indígena não chega nem a um por cento ainda no ranking da produção literária desse país, pindorama chamado Brasil. A gente está querendo fazer isso, e a gente vai fazer, porque nós somos carne de pescoço, nós somos ruins de matar, nós somos um povo difícil de morrer, porque nós sabemos viver de todas as maneiras.

A gente vive na chuva, na seca, no outono, no verão, no inverno. A gente sempre dá um jeito, a gente se transmuta o tempo todo. Então, a gente é bicho difícil de matar. E, sendo mulher, é mais difícil ainda. Então, a gente vai conseguir isso aí. A gente é metida porque a gente não é pouca coisa. Então, a gente quer fazer isso de uma maneira grandiosa. A gente quer levar todas essas mulheres que querem lançar seu primeiro livro. Primeiro, elas não vão pagar nada pelo livro.

Então, a gente vai conseguir isso. Elas vão ter esse livro e elas vão poder vender o livro delas, certo? E nós vamos poder ter mais livros de mulheres indígenas rodando, voando, em todos os quatro cantos.

Por exemplo, manas como Jama, que não tem ainda seu primeiro livro. Porque no nosso grupo de mais de 200 mulheres, mais de 80% não tem o primeiro livro. Por questões de desigualdade social, financeiras, de racismo, de discriminação e tantos outros. Mas elas vão conseguir e nós vamos conseguir. E a gente pede que os encantados fortaleçam essa nossa enfrentada, porque a coisa não é pequena não, a coisa é pesada mesmo. Porque nós somos guerreiras, nós não estamos aqui a passeio, não.

Amazônia Latitude: Onde podemos encontrar o coletivo, o Álbum Biográfico e falem para a gente o endereço de vocês nas redes, como acompanhar as novidades de vocês.

Jama Wapichana: Nós estamos no Instagram, no Facebook, estamos disponíveis. O meu Instagram foi derrubado, silenciado recentemente. Até ativei um outro, Jama Wapichana. Mulherio das Letras Indígenas, Facebook e Instagram.

Eva Potiguara: Eva Potiguara, Instagram e Facebook. E podem ficar inquietos também com as nossas previvências e insubordinações. Nós somos insubordinadas. O nosso foco é valorizar o lugar de fala das escritoras indígenas nessa contemporaneidade. Nós temos o nosso e-book gratuitamente que vocês podem baixar na bio do Instagram do Mulherio. Lá, vocês têm o link, é só clicar que vocês baixam. Podem divulgar sem moderação. Entendeu? Esse livro não pode ser vendido, mas vocês destaquem as manas que estão dentro.

Hoje nós também queremos fazer uma “femenagem” à nossa querida Antônia Flechiá Tuxá, que faleceu hoje. Ela também tinha na luta contra o câncer. A Antônia Flechiá Tuxá está no nosso Álbum Biográfico, na página 40 e 41. Ela era cacica, era educadora, professora em escola indígena, na cidade de Rodelas, no extremo sul da Bahia. Eu tive a felicidade de conversar com ela. Não tive com ela pessoalmente ainda. E ela escreveu aqui no texto dela o seguinte:

Sou originária da terra Pindorama, filha da força da natureza ancestral.

Sou fruto de um povo que resistiu à invasão, provocando um rio de dor.

Sou a resistência do processo de genocídio, originária desta terra desigual.

Quando Cabral nesta terra pisou, a posse desse território arquitetou.

Há 522 anos tentam nos silenciar, essa violência gera apagamento, destruição, derramamento de sangue, matam em massa os povos desta nação.

Deixam crianças órfãs, mulheres viúvas, anciãos sem proteção.

Sou fruto das lutas sangrentas e trago nas veias a resiliência.

Quando perguntam quem sou eu, neste mundo perverso e desumano, respondo:

Sou a criança, a menina, a mulher, a mãe e a avó que você massacrou e estuprou.

Sou filha da mulher, viúva desamparada, que você em nome da dominação criou.

Sou humana, forte e luto pela igualdade de direitos, em meio a tantas desigualdades e barbaridades praticadas contra os nossos direitos.

Quem és tu que pensas que podes nos tratar com preconceito e desrespeito?

Você, fruto provido de um lugar distante,

Não tens o direito de invadir o nosso habitat, nos expulsar e exterminar.

Sou a vida das florestas que sobreviveu as cinzas do seu ódio exacerbado.

Quando nos queimam e, em cima do nosso chão, o concreto instalam.

Ao olhar as marcas do passado, percebo o culpado desse desgoverno.

Chamado de democracia capitalista, na verdade, é pura hipocrisia,

De quem governa sem humildade, poço de egoísmo e maldade.

Destroem direitos conquistados para o bem-viver das comunidades.

Ainda quer saber quem eu sou? Sou ser de direitos,

Sou fruto de um povo resistente, que sobreviveu à destruição da inundação.

Sou mulher indígena, guerreira, filha oriunda do rio São Francisco

Protagonista da nossa cultura, educação e tradição, sou povo Tuxá do sertão.

Resistiremos às violências e humilhações, ressurgiremos a cada dia,

Mais fortalecidos e unidos na luta por igualdade de direitos para toda a nação.

 Antônia Flechiá Tuxá. Hoje se encantou. Hoje está eternizada em nossas memórias e na sua escrita no livro “Álbum Biográfico Guerreiras da Ancestralidade 2022”. Que a voz dessa mulher não fique apenas nessa escrita. Que a voz dessa mulher possa despertar nessa sociedade tão líquida o reconhecimento das singularidades e pluralidades estéticas, artísticas, no campo das letras, no campo de todas as outras artes dos povos indígenas, das suas memórias, de dores, de lutas e ancestrais. Vítimas da ganância de um colonialismo capitalista que ainda está bastante feroz na destruição da nossa terra, dos bens naturais, transformando tudo em mercadoria e transformando os seres em protótipos mecanizados desse mercado.

É para isso que nós resistimos e queremos pedir a vocês que invistam na literatura indígena. Procurem os escritores indígenas e escritoras indígenas. Nós temos algumas instituições como a Livraria Maracá que investe há muitos anos, especialmente em literatura indígena, onde você vai encontrar nossas obras. E vamos descolonizar, vamos quebrar paradigmas. A gente precisa fazer isso e a gente não vai conseguir fazer isso sem ouvir a voz dos povos originários.

Que possamos, então, ser ouvidas, respeitadas e que possamos ter um diálogo mais íntimo com o que a Mãe Natureza pede, mais respeitoso com ela. Vamos parar de sermos seres usurpadores? Vamos parar de sugar os bens naturais? Vamos servir como a água serve, como corrente, vamos servir como o ar serve, como brisa, vamos servir como os animais servem na humildade até de nos servir de carne para viver. Vamos ser servos da nossa Mãe Natureza. Vamos parar de sermos mercadores dela, vendê-la, possuí-la. E assim, quem sabe, a gente pode se juntar a vocês escrevendo uma nova história. Que amanhã nossos netos, filhos, possam dizer olha, eles cuidaram da Mãe Terra, por isso que hoje nós estamos aqui como frutos de toda essa história.



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