Sandra Godinho: o caráter histórico de ficções sobre a Amazônia
A literatura de Sanda Godinho explora a realidade da Amazônia e da natureza humana em meio à floresta. Seu lançamento mais recente, “A Secura dos Ossos” (Editora Patuá, 2022), representa de forma única os elementos de sua escrita, que aborda temas como desmatamento, relações de poder, racismo e xenofobia. A ficção conta a história de uma jovem que vive na selva amazônica, na fronteira entre três mundos: o dos garimpeiros, o dos brancos e o dos Yanomami. A história foi inspirada no massacre de Haximu, que aconteceu em 1993, em Roraima.
“Dentro daquilo que a gente está vivendo, com tantas tragédias, tantas questões de mudança climática, tantas questões de falta de tolerância com a diversidade, eu acho que esse livro traz, para nós, um pouquinho de alento”, revela a autora.
Sanda Godinho é escritora, mestre em letras e membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira, paulista, mas que hoje vive em Manaus, no Amazonas. A escritora recebeu o prêmio Cidade de Manaus durante três anos seguidos em categorias diferentes em 2019, 2020 e 2021.
Neste episódio do LatitudeCast especial Pensando a Amazônia pela Literatura, Godinho fala sobre a profundidade da humanização dos temas da floresta na literatura e sobre o processo de criação de “A Secura dos Ossos”.
Ouça o episódio completo do LatitudeCast com Sandra Godinho:
Amazônia Latitude: Sandra, por que é importante contar histórias? Como “A Secura dos Ossos” nos ajuda a pensar ou a adiar, como diria Ailton Krenak, o fim do mundo?
Sandra Godinho: Eu estava lendo, outro dia, que o bom da música é que quando ela nos atinge, a gente para de sentir dor. Eu acho que a arte tem esse dom de nos dar uma certa completude, uma certa satisfação que no dia a dia nos escapa. E a literatura, em particular, nos encanta, nos dá prazer, nos entretém, nos dá um pouco de conhecimento e nos faz refletir sobre a realidade. Então eu acho que toda vez que a gente pode resgatar um evento histórico e misturar um pouquinho com ficção, dar um sabor gostoso para o leitor e fazer com que ele se interesse por essa história, é uma dádiva.
Dentro daquilo que a gente está vivendo, com tantas tragédias, tantas questões de mudança climática, tantas questões de falta de tolerância com a diversidade, eu acho que esse livro traz, para nós, um pouquinho de alento.
A literatura ainda tem um ingrediente a mais, que nos possibilita vivenciar a experiência vicária, ou seja, você, como leitor, se coloca no lugar do personagem, sente aquilo que o personagem sente e, com isso, vivencia outras vidas, vivencia a diversidade, vivencia a dor do outro, uma cultura que não seja sua, histórias que não sejam suas, mas que você quer experienciar. Eu acho que a literatura é mágica quando se trata de viver outros universos
Os povos originários foram menosprezados por nós, pela dita civilização, os homens brancos, por muito tempo, e é preciso que se resgate esse papel fundamental que eles têm na preservação do nosso mundo, da nossa vida, e aí não digo só dos povos originários, mas de toda a humanidade, de todo o planeta. Então se eu puder, com as minhas palavras, colocar um pouquinho de sabor a isso, já vou me dar por feliz.
Amazônia Latitude: Como se deu o processo embrionário do livro?
Sandra Godinho: Eu estava escrevendo meu primeiro romance, e o personagem morria na estrada BR-174. Eu comecei a pesquisar sobre a construção da estrada e me deparei com uma história muito bizarra a respeito do massacre de uma expedição do Padre Calleri. Eu fiquei mobilizada por isso e comecei a escrever o livro “Tocaia do Norte”, que era sobre o começo do massacre do povo Waimiri Atroari.
O massacre da expedição do Padre Calleri foi um bode expiatório para o genocídio desse povo que veio a seguir, e isso me mobilizou para eu escrever os três grandes massacres que eu conhecia a respeito dos povos originários dentro da Amazônia. Então eu me propus a escrever o massacre do povo Waimiri Atroari, o massacre do povo Yanomami e o massacre do povo Cinta Larga. Foi alguma coisa que eu me propus, como escritora, a fazer. Não que eu fizesse só isso, ou só escrevesse sobre isso, mas era um projeto que eu acalentei e queria muito realizar.
Então eu escrevi “Tocaia do Norte”, o primeiro livro sobre esse grande genocídio, depois eu comecei a vislumbrar como escrever o genocídio do povo Yanomami, que foi o grande massacre de Haximu, em 1993, por garimpeiros, dentro daquela fronteira de Roraima com a Venezuela. Eu precisava de pesquisa, então comecei a me debruçar sobre livros, teses, dissertações e me deparei com o livro do Davi Kopenawa, “A Queda do Céu”. Eu comecei a ler esse livro, ele é um tijolo bem grande, são 700 páginas. Foi uma transcrição do Bruce Albert das palavras do Davi Kopenawa. Eu fui me encantando com aquele falar dele, aquilo era uma poesia muito bela, que me tocou muito profundamente.
Eu queria escrever o meu livro de uma forma que englobasse o máximo possível o modo de vida dos Yanomami, mas com a magia que o povo merecia e sempre com um olhar de fora para dentro, porque eu nunca vou poder retratar ou escrever como um indígena, um membro pertencente da etnia Yanomami.
Isso se deu mais ou menos no final de 2020, começo de 2021, eu preparei o livro e já estávamos no governo do Bolsonaro. E a gente estava vendo que ele estava colocando em ação toda uma ideologia daquilo que ele acreditava, que os garimpos dentro da terra indígena seria possível, enfim, tudo que a gente já presenciou e pôde comprovar.
Então assim, eu fui tomada mesmo pelas palavras de Davi Kopenawa. Em uma parte do livro, ele fala: “toma as minhas palavras, mas não as destrua e leve adiante”. Eu fico emocionada até hoje só de falar. É uma coisa que me mobilizou muito e me tocou muito. E tudo que a gente viu durante o governo passado, a quase inanição em que foi deixado o povo Yanomami. Foi algo que conjuminou no mesmo momento, o meu pensamento de resgatar todos esses massacres e culminou, também, com o desprezo com relação ao povo Yanomami.
Amazônia Latitude: No início do livro, você diz que era preciso não perder o senso da realidade. Por que é importante não perder o senso da realidade? Como escritora, como você lidou com a realidade em “A Secura dos Ossos”?
Sandra Godinho: Como falei anteriormente, eu precisei fazer uma pesquisa antes sobre o massacre de Haximu, e essa é a minha realidade, eu queria contar essa história. Eu ia partir de um fato, um evento histórico, um fato real. O fato é real. Eu ia partir de um fato e ficcionalizar.
O senso de realidade é porque, dentro da minha obra, eu gosto de misturar tanto a ficção quanto a realidade, partindo sempre da realidade, daquilo que eu me proponho a falar, porque eu preciso trazer esses fatos históricos para a reflexão, é isso que eu me proponho a fazer dentro da minha realidade. Eu não digo que seja sempre assim, mas dentro daquela proposta inicial de retratar ou de resgatar os massacres, eu precisava partir desses eventos e, com eles, trazer a público, trazer o leitor acompanhando essa história toda e refletir sobre isso.
Então, o senso de realidade é que a gente não pode se deixar iludir por falsas ideologias, por falsos profetas, por falsos testemunhos, por falsas histórias. A realidade é que nos dá o parâmetro. A gente está perdendo o senso de realidade e a gente deve buscar os fatos reais. É dentro disso que eu acredito e que eu me baseio.
A ficção serve para colocar uma lupa dentro daquele fato e resgatar aquilo que está acontecendo com os povos indígenas, com os povos originários, com o planeta. E como eles podem nos ajudar com o seu bem viver, porque eles sabem viver em coletivo, coisa que a gente não sabe. Os ditos homens brancos, os ditos homens civilizados não sabem lidar com o coletivo, com a diversidade, com a alteridade, eles só veem aquela bolha. E está num sentido tal de polarização de ideias que, se você não corrobora aquilo que eu penso, eu te excluo da minha bolha. É isso que a gente vê hoje em dia.
Eu acho que a realidade é essa, a gente precisa um do outro, a gente precisa dos povos originários para preservar nascentes, a mata, as florestas, porque sem isso a gente não vai viver. E isso é o grande lance, a grande epifania: a gente precisa um do outro, a gente não pode prescindir um do outro, porque cada um tem a sua tradição, o seu costume, mas o seu conhecimento de vida também. E é só assim, um dando a mão ao outro, que a gente consegue viver – e ultimamente, sobreviver. É isso que eu acredito, e se eu puder trazer um pouco de luz para isso, acho que o meu caminho já está bem delineado, bem riscado, dentro daquilo que eu me propus traçar.
Amazônia Latitude: Como surgiu o seu caminho na literatura? Esse sentir de denúncia, de alerta que está impregnado dentro da sua literatura.
Sandra Godinho: Pensando sobre isso, quase me remete ao início de tudo. Eu comecei a escrever já com uma certa idade, eu já estou na terceira idade. O que eu posso deixar, qual vai ser o meu legado? Eu não posso escrever sobre alguma coisa que seja “light”. Eu poderia escrever um texto que falasse sobre comédia, um texto engraçadinho, um texto sobre jovem adulto – e não que o jovem adulto não seja importante –, mas eu queria que a minha literatura estivesse aliada a um senso de resgate de valores. O que eu posso deixar para os meus filhos e netos? Tem que ser uma coisa relevante.
Juntou tudo na minha cabeça quando eu comecei a morar em Manaus. Eu sou de São Paulo, mas eu moro em Manaus há uns 20 anos. Eu adoro aqui, foi uma cidade que me acolheu com tanto carinho, fui tão feliz, sou tão feliz aqui. Eu adoro o verde, eu adoro a natureza, e eu estava vendo a natureza sendo destroçada. Então [eu quis] chamar a atenção para a Amazônia, mas com um olhar diferenciado, porque você não pode explorar a Amazônia como tem sido explorada até então, com o mesmo sentido capitalista dos empresários que têm feito até então. Porque senão você vai destruir não só a região, você vai destruir grande parte do que a gente costuma entender como um mundo, como um planeta.
Você está vendo as mudanças climáticas acontecerem, a falta de chuva em algum lugar, o excesso de chuva em outros, então eu queria chamar a atenção para a região amazônica e chamar a atenção para o que a gente ainda pode fazer. A questão do massacre indígena, dos povos originários, o que que eles têm para nos dizer, o que eles têm para nos ensinar. Vamos parar de matar, de destruir. Agora é reconstruir.
É isso que eu quis deixar. Eu queria que a minha literatura fosse relevante nesse sentido de resgate de povos originários, de reconstrução, de desenvolvimento da região, porque eu acho que precisa ser realmente desenvolvida. Você precisa desenvolver a região com uma economia sustentável, de baixo carbono e que utilize o que aqui tem de melhor – a biologia, o bioma, a procura de fármacos. Uma coisa mais positiva. Foi isso o que eu pensei quando me propus a escrever.
Amazônia Latitude: “A Secura dos Ossos” é um livro que está permeado pelo realismo fantástico latino-americano. Como foi a decisão de trazer essa abordagem, utilizando o realismo fantástico latino-americano e fazendo essa combinação entre os ritos indígenas, as passagens clássicas?
Sandra Godinho: Eu começo falando que cada livro é um livro. Eu fiz três, já escrevi o terceiro volume dessa trilogia que me propus a fazer, e cada um deles é escrito de um jeito diferente. Quando eu comecei a pesquisar sobre os Yanomami, como eu falei, me encantei. Eu queria trazer toda essa cosmovisão que eles têm da vida, e o único jeito de conversar com essa mitologia dos Yanomami seria inserir o realismo fantástico, para conversar com os Xapiri, que são espíritos dos mortos, daqueles que já foram vivos. Tudo, para eles, é espírito. Uma folha é espírito e tem um canto, o pássaro, quando morre, passa para o mundo dos mortos e vira um Xapiri, vira um espírito e tem um canto.
“Como você vai entrelaçar isso somente com o realismo fantástico?”, eu pensei. Então eu teria que começar com o realismo fantástico. E esse realismo fantástico não vem do nada. Os homens estão cegos. Por que eles estão cegos? Porque a gente está meio cego, a gente não consegue enxergar o outro, a gente está cego para aquilo que a gente não quer ver.
Quando o xamã começa a ficar invisível, é porque ele é invisibilizado. Quando nós temos o Tião Rocha, que não sente dor, é porque ele é um homem insensível. Tudo dentro do livro, o realismo fantástico tem um porquê, não é do nada, não é fantástico por ser fantástico, não é mágico, ele tem um porquê de estar lá. A Tainá Terra, quando tem o olfato apurado, é porque ela tem que farejar a identidade dela. Ela tem que ir atrás da mãe, mas ela tem que ir atrás, também, da origem dela. Então tudo tem um porquê. Foi o único modo que eu pude conceber esse livro, foi o único modo desse livro ser criado. Um olhar de fora, de uma mulher que foi criada como uma menina branca, mas que na verdade não é, então ela tem que se descobrir.
Agora que você está falando isso, eu fico pensando. Também aconteceu isso no “Tocaia do Norte”. O personagem principal tinha que se descobrir, tinha que se firmar. Apesar de que ele é branco e ele não tem nenhum resgate de identidade indígena para realizar, ele também busca o seu papel dentro do mundo, o que ele quer, o que ele vê, quem é ele dentro desse jogo de interesses que a gente vê toda hora acontecendo.
Amazônia Latitude: A sua protagonista se chama Ama Terra, e é uma clara referência à Ana Terra, do Érico Veríssimo. Como foi o processo de tessitura, que une o que a gente chamaria de, em inglês, road novel ou jungle novel e, ao mesmo tempo, esse sabor latino-americano, com uma mensagem muito atual sobre as questões que os povos indígenas, não só no Brasil, mas em toda a América Latina, estão enfrentando diariamente?
Sandra Godinho: Por incrível que pareça, apesar da similaridade do nome, não tem nada a ver com o Érico Veríssimo, nem com a Ana Terra do Érico Veríssimo. Eu precisava de um nome que falasse sobre amar a terra, então eu parto do nome Amana Terra, que é o nome original dela, e a gente vai procurando para simplificar até virar Ama Terra.
Apesar de toda a questão, eu busquei nomes que eu pudesse trabalhar, nomes indígenas também, [como] Anaí. E nada me vinha com satisfação para falar: “poxa, fechei nesse nome”. Mas quando eu descobri Amana, falei: “poxa, mas Amana, se cair o “na”, vira “Ama”, e foi aí o pensamento do qual eu parti. Mas tem toda uma saga da Ama Terra e da filha, é uma questão de quase que xamanismo matricial, é uma questão da linhagem das mulheres, da linhagem feminina.
Amazônia Latitude: Sobre esse aspecto da ancestralidade, que está muito presente no livro pelas decisões espirituais, houve algum momento especial na construção da narrativa que te impactou, que te mudou como autora, que te deixou alguma marca?
Sandra Godinho: Se você começar a me perguntar, eu começo a chorar. Eu me mobilizo muito com esse livro, e desde quando ele foi concebido, ele me toca muito, me emociona muito. Eu queria falar das mulheres, a linhagem, porque são as mulheres que criam os homens e são as mulheres que temem pelos seus homens, seus filhos e maridos. E a gente tem que saber mudar esse pensamento muito egoísta, a gente tem que saber criar filhos para o mundo, e se não tiver mundo não tem filhos. Então eu queria resgatar essa linhagem de mulheres. Saber que a gente tem possibilidades dentro do nosso alcance, tem como reverter isso, é só mudar o nosso pensamento.
Amazônia Latitude: Temas como racismo, xenofobia, o próprio machismo, estão permeados em toda a sua narrativa. De que maneira você acha que “A Secura dos Ossos” serve como um instrumento para decolonizar essa visão que muitas pessoas ainda têm sobre o papel da mulher e da própria Amazônia como mulher para o planeta?
Sandra Godinho: Eu estou reverberando a sua pergunta. Mas a Amazônia é a grande terra estuprada, ela é violada, ela é vilipendiada, ela é abusada, e eu gostaria que esse livro fosse, talvez, uma luzinha no fundo do túnel. Se eu tiver a felicidade de ver o meu livro fazendo as pessoas refletirem e pensarem a Amazônia como um grande tesouro que a gente tem e que deve ser melhor cuidado, melhor tratado, eu iria ficar muito feliz e muito gratificada por esse livro já ter nascido. É um grãozinho de areia numa praia, mas eu fico satisfeita de ter criado ele, dele ter existido, e se ele puder mobilizar quem o lê, eu também ficaria muito, muito satisfeita. Me daria uma certa completude, me daria um pouco de… como se fala? Um emplastro para a dor humana, e aliviaria a minha dor.
Amazônia Latitude: Durante todo o romance, a personagem principal vai apontando caminhos que nos fazem, como sociedade do presente, refletir. Um deles é um tema recorrente, que é o da saúde mental. Fale um pouco sobre isso.
Sandra Godinho: Saúde mental. É difícil falar sobre isso, mas eu acho que com tudo isso que a gente vê de mudanças climáticas, de tragédias e tudo, a gente fica meio abalado. A gente tem uma paz, uma suposta paz, quando a gente entende que está tudo bem, quando a gente enxerga que está tudo bem, tudo no seu devido lugar e tudo caminhando bem. Quando eu, por exemplo, fico sabendo que garimpeiros estão manchando os rios, os igarapés com mercúrio, ao ponto de quando eu for a um restaurante, eu não puder mais pedir um peixe porque ele está contaminado, veja, as coisas não estão mais no lugar.
Isso me faz pensar, porque é o que a gente tem visto aqui, os rios ficaram contaminados, os povos ribeirinhos estão contaminados de mercúrio, alguns indígenas estão contaminados, alto índice de contaminação por mercúrio. As coisas não estão mais dentro do lugar, dentro daquilo que a gente entende como a ordem natural das coisas. Então, é preciso que cada um faça a sua parte.
Eu não sei fazer outra coisa, não sei lutar, não sei pegar em arma, não sei fazer nada, nada, nada. A única arma que eu tenho, a minha ferramenta é a palavra. Então, pela palavra, eu vou ser resistência, e é isso que eu quero.
Amazônia Latitude: De que maneira a poética, a poesia, teve influência na sua escritura? Fale dessa relação poesia – narrativa – prosa. De que forma uma retroalimenta a outra?
Sandra Godinho: Eu vou falar sobre duas coisas. Sua pergunta me dá ensejo de falar sobre dois itens aqui. O primeiro é que você está me dando uma ideia para escrever exatamente sobre a saúde mental dos indígenas quando eles têm a sua terra, que até então é tida como sagrada, violada. Como eles se sentem? Isso é uma coisa para a gente pensar e até escrever sobre.
Você desvirtua a identidade indígena. Quando você faz da terra que é tida como sagrada, lugar de espíritos que tanto são do mundo dos mortos quanto dos vivos, para virar uma coisa mercantilizada, você está afetando a saúde mental dos indígenas. Isso é uma coisa que está dando ideia para outro livro.
Mas a questão da poética, a poesia não é o meu forte. Eu vou te dizer que eu sou uma falsa poeta, eu tento, eu procuro, mas não é algo que surge para mim com facilidade. Mas eu me encanto muito com o texto do Mia Couto. Ele é poesia pura, o Mia Couto.
E eu queria escrever esse livro de uma maneira muito especial. Então eu procurei, com todas as minhas forças, tentar fazer uma prosa poética que fosse razoável. Apesar de não saber lidar bem com a poesia, eu escrevo, mas eu não me sinto à vontade ainda com os poemas. Eu procurei trabalhar todo esse léxico de modo que fosse uma prosa poética que fosse à altura dessa história dos Yanomami e de tudo que eles precisavam, porque foram tão desprezados no governo passado. Eu precisava resgatar a mitologia, os costumes, o modo de vida em coletivo que eles têm, as ameaças que eles sofrem. Eu precisava fazer algo à altura. E não sei se eu consegui.
Amazônia Latitude: Como você vê o papel da literatura como ferramenta para decolonizar, repensar, representar através da arte, da prosa, da narrativa? Pensando nesta série, “Pensando a Amazônia pela Literatura”, qual é a importância de pensar a Amazônia pela literatura?
Sandra Godinho: Eu acho, e isso não é um pensamento meu, mas vem de outros autores, autoras, a literatura nos salva, a literatura nos distrai do real, da dor da realidade. Ela é fundamental. Eu acho que a literatura, sabendo usá-la, a gente tem uma ferramenta incrível nas mãos. Como eu falei, ela possibilita que você fique no lugar do outro, que você sinta a dor do outro, que você sinta a alteridade. Então, é fundamental.
Levando em conta tudo que a gente vivenciou nesses últimos anos, a respeito de um desprezo pela Amazônia, pela riqueza que é a Amazônia, pela importância que tem a Amazônia no planeta, eu acho que a gente, podendo conciliar a literatura para exaltar a Amazônia e os povos originários que nela habitam, é fundamental e é fenomenal.
Amazônia Latitude: Você já tem algum outro trabalho em andamento? Como andam essas próximas aventuras literárias?
Sandra Godinho: Eu estou em gestação. Eu acho que o escritor é sempre um inquieto. Ele fica sempre pensando, refletindo, acumulando elementos que, uma hora, dão um clique na cabeça. E ele fala: “poxa, agora eu vou escrever sobre isso, vou falar sobre isso, desse jeito, assim, assado”. Então, eu acho que estou em gestação. Eu quero falar alguma coisa sobre o garimpo, as mulheres no garimpo. Ainda não sei como, mas eu acho que tem que ser algo que, uma hora, vai conciliar tudo dentro da minha cabeça e vai dar tudo certo.
Amazônia Latitude: Você faz parte da Academia Internacional de Literatura Brasileira. Como foi o processo de se tornar membro da academia? Como você se sentiu ao ser convidada?
Sandra Godinho: Esse trabalho é desenvolvido pela Nereide Rosa. Ela também foi uma autora vencedora do Jabuti. Ela vive em Nova Iorque e abriu uma editora, Underline Publishing, e fundou essa Associação Internacional da Literatura Brasileira. Ela fez uma chamada para quem se interessasse em participar da literatura. E elas têm, ao longo desses poucos anos de vida, divulgado a literatura brasileira fora.
Eu ainda não tive a oportunidade de traduzir um dos meus romances para o inglês. Assim que eu tiver possibilidade, vou fazê-lo e vou pedir a ela que assuma, junto comigo, a cumplicidade de divulgar esse livro, qualquer um que seja, dentro dos Estados Unidos, para fora, para a gente poder divulgar a literatura brasileira para além do Brasil.
Amazônia Latitude: Sandra, muito obrigado pela gentileza de falar conosco.
Sandra Godinho: Eu que agradeço o convite da revista Amazonas Latitude. Foi uma honra para mim, foi uma conversa bastante prazerosa. Só tenho que agradecer e salientar um pouquinho mais sobre a literatura de autoria feminina. Principalmente a literatura de autoria feminina que fale sobre a Amazônia. Nós temos a Verenilde Pereira, nós temos as próprias autoras indígenas, nós temos o Ailton Krenak. Eu vejo que é cada vez mais imprescindível que essa literatura voltada para a Amazônia se propague, divulgue, reverbere, repercuta. Porque nós dependemos dessa Amazônia que nos acolhe e que nos possibilita viver dentro desse planeta.