Cemitérios de castanheiras: a história das árvores sozinhas
"A castanheira é que nem nós. Não podemos viver isolados, sem ninguém", diz extrativista
Castanheira sozinha no município de Capixaba (AC). Foto: Hellen Lirtêz.
Em meio à vastidão verde da Amazônia, as castanheiras-do-Brasil enfrentam uma batalha silenciosa pela sobrevivência, revelando-se como testemunhas dos desafios enfrentados na Amazônia Legal. Nesses locais, a floresta densa cedeu lugar às pastagens, e as castanheiras permanecem erguidas como monumentos solitários. Suas copas outrora frondosas, agora se destacam como lápides contra o céu.
No epicentro desses cenários, tais árvores centenárias são protegidas por lei e não podem ser derrubadas. No entanto, são condenadas a morrerem sozinhas. O fato de ainda estarem de pé não quer dizer que estão vivas. Práticas como o uso do fogo para renovar pastagens mais rápido lançam uma sombra sobre o futuro de ecossistemas necessários para a existência da castanheira. Nem as reservas extrativistas ficam isentas do problema.
Quando falamos da castanheira-do-Brasil (Bertholletia excelsa), estamos falando da castanheira-do-Pará, como é conhecida popularmente. Seu fruto é comercializado em todo o país, mas é cultivado na Amazônia. Trata-se de uma árvore alta, que pode atingir até 50 metros, correspondendo à altura de um prédio de 16 andares. Sua longevidade chega a 500 anos, sem interferências humanas. A grande pergunta é: como essas gigantes se tornaram espécies ameaçadas e como ainda resistem como “mortas-vivas” no contexto de degradação da região amazônica?
O que são cemitérios de castanheiras?
Em algumas pastagens, sempre há uma árvore em específico que fica em pé. Com sorte, é possível que ela esteja num grupo de mais de cinco delas por perto. Esses são os cemitérios de castanheiras, uma marca do desmatamento. Ao se aproximar, percebe-se que os troncos estão secos, definhando e com as copas pouco frondosas. E com o tempo, a planta torna-se estéril e produz menos ou não produz mais castanhas.
Essas paisagens podem ser facilmente percebidas em locais da Amazônia Legal, como Acre, Rondônia e Pará. Essas áreas, geralmente, são resultado da ocorrência da “limpeza” para ocupação humana. Para a pesquisadora da Embrapa de Rondônia Lúcia Wadt, doutora em Genética e Melhoramento de Plantas, as castanheiras morrem principalmente pelo manejo do pasto no qual o fogo é usado para abrir grandes áreas. Ela relata que, mesmo que seja proibido cortar a árvore, o fogo ainda é bastante presente para a renovação de áreas.
“Com o tempo, essas castanheiras vão morrendo, e a gente começa a ver muitas árvores com a copa seca, com poucas folhas e praticamente sem frutos. Então isso é o que a gente chama de cemitério de castanheiras. A gente vê na paisagem aquelas castanheiras mortas em pé”, esclarece Wadt.
O estudo “Nova Economia da Amazônia”, formulado pela World Resources Institute (WRI), destaca a urgência de interromper o desmatamento na Amazônia Legal. Nos últimos 36 anos, houve uma significativa mudança no uso da terra, com crescimento anual de 6,8% na área agrícola e 3,2% nas áreas de pastagens. A soja representou 90% do aumento nas culturas temporárias. A expansão resultou na eliminação de 59 milhões de hectares de vegetação nativa, com 70% das atuais pastagens sendo resultado de desmatamentos recentes.
A Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, localizada no Acre e criada em 1990, foi pioneira no conceito de unidade de conservação de uso sustentável. Nela, as populações tradicionais têm a permissão de, não apenas morar dentro do local, mas também realizar o extrativismo de bens naturais, como a castanha, a borracha e o açaí. A utilização pelas populações extrativistas tradicionais é justamente o objetivo dessas áreas, uma vez que sua subsistência está baseada no extrativismo e na agricultura de subsistência.
Por outro lado, os dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) de 2022 foram preocupantes. O total da área desmatada na unidade de conservação chegou a 84 km². Na estrada que liga os municípios de Capixaba, Xapuri e Brasiléia, três dos seis municípios que integram a Resex, é possível identificar ao longo da BR-317 os cemitérios de castanheiras.
É fato que a castanheira é uma árvore proibida de ser derrubada e que deve ser protegida, como consta na lei federal nº 4.771. Porém, existem práticas antigas que ainda são fortemente recorrentes, conforme relata Chico Melo, morador da Resex Chico Mendes há mais de 40 anos, na Comunidade Porangaba, em Brasiléia (AC).
“A castanheira é protegida pela lei. Então eles desmatam, mas deixam a castanheira. Aí vem o fogo. Ela continua viva, só que não produz, porque fica doente, e também fica sem árvore por perto”, expõe o extrativista.
O El Niño é um fenômeno climático que representa o aquecimento anormal das águas superficiais e sub-superficiais do Oceano Pacífico Equatorial. Essa mudança afeta a produção da castanha, que diminui drasticamente, e faz com que os produtores tenham que aumentar seu valor de venda. Em 2017, por exemplo, a escassez dos frutos na Amazônia fez disparar o preço do produto final. Segundo um levantamento feito pela Embrapa, o valor da lata de 11 kg de castanha (unidade padrão de comercialização) saltou de R$50 em 2016 para mais de R$120 no ano seguinte, alcançando a faixa de R$200 na região Nordeste do bioma.
De acordo com Melo, devido ao verão intenso e às ondas de calor, as castanheiras não conseguem florescer. Além disso, seu ouriço tem caído precocemente. O produtor ainda chama a atenção para o desmatamento dentro da Resex e sobre como o uso de defensivos agrícolas também têm afetado a coleta.
A partir de suas observações, Melo faz uma previsão do que o aguarda nos próximos anos: “A produção de castanha de 2024 para 2025 não vai ser boa. Ela sempre produz um ano bem e no outro, não produz muito. E este ano, no Porangaba, começamos a coleta e estamos observando que o verão do ano passado foi um dos mais fortes que teve no planeta.”
Castanheiras são como nós
Quem acompanha o aumento das pastagens na região fala com propriedade como tudo começou. Raimundão Mendes é morador da colocação Rio Branco, em Xapuri (AC), na Resex Chico Mendes. Ele cultiva a castanha desde que se entende por gente, e tem acompanhado como as mudanças climáticas têm afetado a produção da castanha.
O primo do ambientalista assassinado Chico Mendes relata que a “quentura” tem ajudado a matar a castanheira. No entanto, mesmo que ela permaneça de pé, seu maior inimigo é o desmatamento.
Aos 80 anos, ainda cortando e cultivando castanha, ele relembra o momento em que os pastos começaram a ser formados no trecho de Rio Branco a Brasiléia. Em entrevista, conta que o fogo oriundo do latifúndio foi o principal responsável: “Eram grandes cemitérios de castanheiras, tudo muito grande, todas mortas.”
Mendes relata que as castanheiras, quando ficam sozinhas, entram numa espécie de estado de depressão. Por isso, também param de produzir.
“A castanheira é que nem nós, seres humanos. Não podemos viver isolados, sem ninguém. Elas tem que ter a companhia das outras castanheiras. Precisam demais da convivência das outras florestas. A tendência é ela deixar de produzir, e depois morre, sozinha”, reflete.
Importância das Unidades de Conservação
Como exposto anteriormente, os cemitérios de castanheiras estão presentes também nas Resex e a existência destas é essencial no combate ao desmatamento e à preservação de espécies. A criação de uma Unidade de Conservação (UC) geralmente se dá quando há uma demanda da sociedade para a proteção de áreas de importância biológica, cultural ou de beleza cênica. E também para assegurar o uso sustentável dos recursos naturais pelas populações tradicionais.
As UCs são criadas por ato do poder público (federal, estadual ou municipal), após a realização de estudos técnicos e consulta pública. Isso possibilita que a sociedade participe ativamente do processo, oferecendo subsídios para o aprimoramento da proposta.
A pesquisadora Lúcia Wadt explica que as UCs e reservas de terras indígenas demarcadas têm um papel importante na proteção das castanheiras.
“Essa política de tornar áreas em unidades de conservação protege a espécie, porque você protege áreas desmatadas. Então a castanheira é protegida por causa disso, mas não necessariamente pela lei”, explica Wadt.
As castanheiras, assim como toda a biodiversidade amazônica exige ações imediatas, desde a implementação rigorosa da legislação até a conscientização sobre as ramificações ambientais do desmatamento. Afinal, os cemitérios de castanheiras podem ser mais do que testemunhas do desmatamento na Amazônia, mas também do ponto de virada para uma narrativa que realmente demonstra preocupação com o futuro dessa árvore e de toda a floresta.
Produção: Hellen Lirtêz
Revisão: Isabella Galante & Filipe Andretta
Direção: Marcos Colón