Neuber Uchôa, Eliakin Rufino e a música roraimense

Neuber Uchôa, na esquerda, e Eliakin Rufino, na direita
Neuber Uchôa, na esquerda, e Eliakin Rufino, na direita. | Fotos: Jder Souza e Jack Lima. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.
Neuber Uchôa, na esquerda, e Eliakin Rufino, na direita

Neuber Uchôa, na esquerda, e Eliakin Rufino, na direita. | Fotos: Jder Souza e Jack Lima. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.

Roraima é o estado mais ao norte do Brasil, no meio da transição entre a campinarana e a Floresta Amazônica. Um estado cuja história recebeu influências de diferentes culturas ao longo dos séculos — desde as culturas indígenas milenares da região até a rítmica caribenha e os elementos da paisagem natural.

Uma das expressões artísticas que mais contribuiu para a construção da identidade roraimense é a música. E dois dos principais artistas participantes dessa construção identitária são Eliakin Rufino e Neuber Uchôa.

Nascidos em Boa Vista, ambos são cantores e compositores apaixonados pelo estado. Eliakin e Neuber fazem parte do Trio Roraimeira ao lado do cantor e compositor paraense Zeca Preto. O grupo é responsável pelo surgimento, na década de 1980, do Movimento Cultural Roraimeira, para a construção de uma identidade para o povo de Roraima.

Eliakin Rufino e Neuber Uchôa são os primeiros convidados do “Pensando a Amazônia pela Música”. Ao longo do especial, vamos conversar com músicos e pesquisadores sobre a produção musical na e da Amazônia.

Confira agora o primeiro episódio do LatitudeCast, com Neuber Uchôa e Eliakin Rufino:

 

Marcos Colón: Como vocês definiriam a música que fazem?

Eliakin Rufino: Eu poderia até te responder com uma música… Eu defino minha música como uma coisa local. [Canta um trecho da música Universal, de Eliakin Rufino].

Neuber, na sua música Cruviana, vocês também falam dessa paixão de cantar Roraima. Há um diálogo nessa questão que o Eliakin falou.

Neuber Uchôa: O Eliakin é e sempre foi cirúrgico. Foi muito generoso durante esse tempo todo, porque, coincidentemente, ele se formou no ano em que nasce o Movimento Roraimeira. Ele estava em Manaus, costurou o primeiro show do Movimento e colocou nossa interrogação, todo nosso trabalho de busca pela identidade à luz da ciência. Compartilhou conosco tudo o que recebia na universidade. O Zeca [Preto] tem uma brincadeira de dizer que durante esse tempo a gente se formou umas quatro vezes.

Nossa música procurou traduzir esse povo heterogêneo que há 40 anos se reuniu aqui no meio desse lavado para procurar ouro, diamante, essas coisas todas. A gente entendeu que ali seria um ponto nevrálgico e, se a gente mistura, a gente dilui, é uma questão de antropofagia, de aproveitar o que o colonizador trouxe de bom.

Nossa música é de Roraima, não tem similaridade, é uma mistura perfeita de todo mundo que vem aqui fazer conosco essa poesia que Roraima é. A gente agradece de coração.

Qual a importância do Movimento Roraimeira e o que ele foi?

Eliakin Rufino: O Movimento Roraimeira é um movimento cultural formado por artistas de várias linguagens artísticas e tenta ajudar na construção de um esboço da nossa fisionomia cultural.

É um movimento nativista, de raiz, que está buscando… O que é nosso aqui em Roraima? Como é que um lugar que é feito por brasileiros de todas as partes do Brasil, mais dez nações indígenas e mais duas fronteiras, uma de língua inglesa e uma de língua espanhola… Como acomodar essas diferenças todas e encontrar um ponto em comum? Esse é o trabalho do Roraimeira. E nós acomodamos tudo, sem excluir nada. O Movimento é inclusivo. Antes da moda, a nossa identidade é a diversidade.

O tempo nos ensinou que não havia identidade, e sim identidades, porque a nossa identidade é um caleidoscópio, é uma pluralidade, e isso é que é bonito. Claro que essa diversidade foi feita pela presença de milhares de garimpeiros que estão na área indígena Yanomami, a presença do agronegócio e do CTG.

Dado interessante: o Movimento Roraimeira começa em 1984, ano em que é fundado um Centro de Tradições Gaúchas (CTG) aqui. Nas cidades do Mato Grosso onde se instalaram CTGs e não houve um Roraimeira local, hoje são todas gaúchas, giram em torno do CTG. Por isso que o movimento Roraimeira não só é de identidade, mas de resistência. Porque se não fosse o Roraimeira, hoje estaríamos à mercê da cultura gaúcha.

Nesse sentido, o Movimento Roraimeira parece ser um dos últimos desdobramentos do movimento modernista de 1922. Vocês podem traçar quais seriam as possíveis aproximações e diferenças do Movimento Roraimeira, que completa agora 40 anos, como o último desdobramento do Modernismo?

Eliakin Rufino: Tu sabe quando é que começa, aqui no Brasil, esse sentimento de brasilidade, de procurar uma identidade, de procurar uma fisionomia local? Isso começa em 1822, com a Independência. Inclusive, Dom Pedro é autor do hino da Independência. Dom Pedro tocava seis instrumentos. É nesse momento que, no Brasil, começa a se discutir essa questão da brasilidade.

1922, a Semana de Arte Moderna, é um evento que comemora os 100 anos dessa luta, do início. Então é um desdobramento, e essa coisa vai chegar aqui também. Ou seja, o que mais nos aproxima do grito de independência e da Semana de Arte Moderna é esse sentimento de brasilidade, é fazer uma coisa que tivesse a nossa genética.

Neuber Uchôa: Trazendo para a gente, que é mais recente, a coisa só se renovou, se ressignificou. Mas a tendência é a mesma. Como o poeta falou, o sentimento vem em primeiro lugar. A nossa intenção é trazer à tona esse sentimento de amor pela música, pelo estado, pelas coisas bonitas que temos. A estética. Optamos pela estética do regionalismo.

Vocês foram gravados por cantores de vários vieses e pegadas musicais, como o Nilson Chaves, por exemplo. Vocês acreditam que houve um movimento de terem recebido influência de Belém e depois acabarem influenciando a música de Belém e da Amazônia em geral?

Neuber Uchôa: A música, a arte, são isso mesmo, uma samsara. A gente indo e voltando para o mesmo lugar. E todo esse amor, carinho, reverência que a gente tem pela música paraense é como uma simbiose, algo perfeito.

Agora mesmo eu tenho me preocupado em mergulhar mais profundamente nessa música urbana que se faz em Belém e nas cidades do interior. Passei 32 dias dirigindo pelo interior, achei bacana. Conheci cidades interessantes do interior, Bragança, Ourém, Salvaterra, na Ilha de Marajó, Soure. E conheci a pegada mais raiz que eles têm, assim como a música urbana, que respeita toda essa jogada, essa resposta.

Eliakin Rufino: Inclusive, Neuber, lembrando que você trouxe do Pará a música “Rodopiado”, que nós colocamos no repertório do Roraimeira há muitos anos, e que somente agora está ganhando o mundo.

Neuber Uchôa: Fomos os primeiros a regravar. A gente conheceu o Ronaldo [Silva] em 1993. Ele tinha gravado no primeiro disco dele, em 1991. Enfim, a gente seguiu essa pegada amazônica, e por uma coincidência enorme, a gente tem o respeito e o agrado dos artistas amazônicos de Belém e todo o Pará.

Eliakin Rufino: Belém também é onde a gente gravava os discos.

Neuber Uchôa: No fundo, Belém é onde a gente vai recarregar as baterias amazônicas, mas não é à toa, eles têm 408 anos. Imagina, é muita história. E é uma coisa linda, que faz parte da nossa vida. Todos os discos que nós gravamos foram gravados em Belém. Mesmo que a gente levasse uma música que a gente queria que tivesse a nossa cara, ela terminou tendo um pouco do sotaque paraense. Os músicos eram todos paraenses.

Eliakin Rufino: Sim, nós somos influenciados pelo Pará, porque gravávamos lá, que era o centro de gravação. Mas com o tempo, eles gostam também do nosso trabalho e começaram a gravar a gente lá.

Neuber Uchôa: A gente cantou a pedra com muito talento, humildade, mas a gente estava no caminho certo. Sabia que era algo novo, e era isso que a gente queria: antes de tudo, ser essa voz que traduz o sentimento do seu povo. Acho que é a coisa mais emocionante, mais espetacular que pode existir na carreira de um artista.

Nas várias músicas de vocês, como “Makunaimando”, “Do Norte” e “Mosquito da Malária”, vocês têm umas referências diretas à natureza da Amazônia, à floresta, às comunidades, aos povos. Vocês podem falar um pouco dessas composições e qual foi a influência, por exemplo, da tríplice fronteira, do ritmo caribenho, dessa simbiose musical, latina, caribenha?

Neuber Uchôa: Comecei a cantar há 60 anos. Faço 65 daqui a uma semana. Foi num programa de auditório e, por coincidência, hoje de manhã cedo, estava fazendo uma pesquisa para saber quantos habitantes Boa Vista tinha nessa época. Uma cidadezinha com 20, 25 mil habitantes, que só tinha uma rádio AM, que ia embora às 11 horas da noite, quando a energia também ia embora, e só voltava no dia seguinte, às 6 horas da manhã. Depois disso, era Caribe. Desde a Rádio Havana e todas essas rádios caribenhas, isso era o que nós ouvíamos.

Meu avô era viciado em rádio. Quando ele largava a rádio, às 11 horas da noite, e ia embora, eu pegava para ouvir essas coisas. Sempre adorei a música, o balanço. Gosto de ritmo, de alegria. E a nossa história tem essa alegria. A música roraimeira tem esse sentimento de amor e estética.

Eliakin Rufino: Há um Movimento Roraimeira feito com muitos artistas e, dentro do Movimento Roraimeira, tem o núcleo de música, que é representado, principalmente, por esse trio que passou a ser conhecido como o Trio Roraimeira, formado pelo Neuber, o Zeca e eu.

Nesse trio, quem faz a pesquisa musical é o Neuber e o Zeca. Eu sou mais letrista, poeta. Embora dou alguns palpites e tenho composições minhas, não é o meu forte. Meu forte são as parcerias, muito embora eu não tenha muitas parcerias com o Neuber e o Zeca, porque eles também são poetas letristas. E eu sou letrista, mas de músicos que não escrevem ou que escrevem, mas que também têm um trabalho forte de parceria, como é o caso do próprio Nilson Chaves.

O Nilson Chaves escreve, mas o trabalho 100% autoral dele é mais ou menos uns 10, 20% do trabalho dele. São 10, 12 letristas que ele já trabalha há muito tempo. E eu tenho a honra de ser um deles.

Tem um documentário em que o Nilson, inclusive, ressalta essa pesquisa musical feita pelo Neuber, que tem essa bagagem, que ouviu muito do rádio e tem toda uma concepção do que quer fazer de música. E junto com o Zeca, você vê que os maiores sucessos do Roraimeira são parceria dos dois, porque o Zeca traz do Pará também essa coisa popular do carimbó, siriá, brega, essa própria mistura interna. Neuber e Zeca já são uma pesquisa, já são uma fusão.

Temos um CD gravado em abril de 2000. É o primeiro gravado ao vivo em Roraima, no Teatro Carlos Gomes, e se chama “O canto de Roraima e suas influências indígenas e caribenhas”.

Neuber Uchôa: Queria falar de uma música especial que tem muito a ver com isso que o poeta falou. A gente já vinha discutindo isso lá no início dos anos 90, a saudade que o povo, principalmente os nordestinos, que foram os principais colonizadores, têm da terra [natal], porque todo mundo que vem para cá, ou para qualquer lugar, pensa em voltar. Existe essa saudade latente em cada cidadão. Os nordestinos têm uma bagagem cultural muito grande.

A gente tinha acabado de fazer um show lá no sul do estado, em Rorainópolis. O prefeito era um nordestino e todo o secretariado dele também. Lá para as tantas, uma das secretárias do prefeito disse: “Eliakin, toque o hino”. Eliakin disse: “Hino de quê, querida?”. Ela disse: “O hino nordestino. Há tempo, muito tempo que eu estou longe de casa“.

Voltamos para o hotel conversando sobre isso, e passamos a volta conversando sobre isso. Chegamos aqui em Boa Vista e fizemos uma música chamada “Saudade de casa”, que é muito especial.

Vocês acreditam que haja uma Música Popular Brasileira amazônica com uma cara própria?

Eliakin Rufino: Não tem, não. Essa coisa de localizar é muito ruim. Existe uma MPB que é feita na Amazônia, no Nordeste, no Sul, e não há essa compartimentação. Você vê que nós sofremos muito e temos que ter muito cuidado com essas regionalidades. Você mesmo usou uma apresentação de Roraima como o extremo norte, mas a ponta do Seixas, lá na Paraíba, não é chamada de extremo leste, assim, normalmente. Nem Cruzeiro do Sul, no Acre, é chamado de Extremo Oeste. Inclusive, o Acre nem está no oeste. Olha o absurdo! É o ponto mais a oeste do Brasil, mas está na região Norte. Então tem alguma coisa errada.

Essa região Norte foi criada irresponsavelmente. Foi uma maneira de homogeneizar a coisa. Estamos, na verdade, no Noroeste. Roraima, Amazonas, Acre e Rondônia estão no Noroeste. Temos outro fuso horário, diferente do resto do país.

Aqui em Roraima, mais ainda, que não estamos no bioma amazônico, e sim no Planalto da Guiana, que é uma savana, outra vegetação, outro clima. Os picos mais altos do Brasil, estão nesse Planalto, que são Neblina, 31 de março, e Roraima. Não estamos na baixada. Até fiz um haikai que é assim: “Sou da região serrana | Não tenho lugar de fala na Terra Plana”. Aqui a gente está mais alto.

Entrando numa outra temática: o avanço do agronegócio em Roraima. Um advento que não é novo no Brasil, mas em Roraima tem avançado muito. Observo como a entrada do agronegócio em Roraima se reflete na música. Para que o agro possa se estabelecer no local, ele precisa primeiro se estabelecer culturalmente. Nesse sentido, fico pensando nesse o agronejo ou sertanejo. Como vocês veem essa mudança na região?

Neuber Uchôa: Isso tem sido um tema recorrente aqui. A gente está acostumado. A gente vive com uma estátua de um garimpeiro no centro da cidade, entre o Palácio do Governo, a Assembleia Legislativa e o Tribunal de Justiça, além da Catedral, abençoando tudo. E nem por isso, a gente deixou de fazer a nossa música, seguir o nosso caminho, sem puxar saco nem tapete de ninguém. É difícil, claro, mas 40 anos se passaram, e eu acho que a gente mais ganhou do que perdeu.

Eliakin Rufino: Apostamos na beleza. Os problemas não se resolvem com canções. Embora tenhamos feito homenagens à cultura indígena de Roraima em vários momentos da nossa obra, quem é responsável pela questão indígena é a Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas]. Embora nós tenhamos defendido a vida, o meio ambiente, quem tem que cuidar disso é o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis]. Existem instâncias governamentais para cuidar desses problemas, e não é uma tarefa nossa.

É claro que isso nos preocupa, mas como diz o Neuber, aprendemos a conviver com isso, porque o Roraimeira tinha um compromisso de ser um show de divulgação turística de Roraima, para atrair turistas para cá e não garimpeiros, não o agronegócio. É uma resistência. O Roraimeira defende como binômio econômico para Roraima turismo e cultura, que são duas indústrias associadas no mundo todo e não seria aqui que a gente defenderia uma ou outra. As duas ainda são a saída econômica para Roraima, e não madeira e minério como querem os outros.

Madeira e minério são extrações depredadoras. Está aí a tragédia dos Yanomami, extração de minério. Está aí a tragédia do desmatamento, extração de madeira. Então enquanto madeira e minério não forem substituídos por turismo e cultura, a Amazônia não vai.

Inclusive, tem o disco do Neuber e do Zeca que está escrito na capa do disco, sem ninguém pagar nada, “Faça turismo em Roraima”.

Neuber Uchôa: A gente sempre fez isso. Quase todo o nosso trabalho, a gente tentou ligar diretamente a nossa arte, a esse lado bonito que a economia tem, de vender a cultura de um povo. A gente já pensava nisso há 40 anos.

Eliakin Rufino: A gente é muito criticado no Roraimeira por não ser artistas engajados, muito sério. Pode parecer até meio alienado a gente só cantar a beleza, mas não é, não. É uma estratégia que deu certo. Hoje, as crianças nas escolas estão cantando as nossas canções porque elas são bonitas e falam das belezas daqui.

Neuber Uchôa: A gente distribuiu a identidade. Hoje, existe um amor próprio que foi produzido culturalmente, pelas nossas intervenções.

Eliakin Rufino: Estava contando para um jornalista que eu sou o autor do hino oficial do município. Ele disse: “Ah, então você foi cooptado”. Digo: “Não, eu venci um concurso”. E eu vejo isso como uma conquista do Roraimeira.

O Zeca Preto é autor do hino informal do estado. A música “Makunaimando” foi tombada como patrimônio cultural por decreto da Assembleia Legislativa.

Uma estratégia de apostar no belo, de apostar na beleza e de emocionar as pessoas, de conquistar as pessoas, não mostrando a tragédia. Ninguém faz campanha contra a violência violentamente. E ninguém faz campanha pela vida denunciando tragédia. A gente tem que mostrar a beleza mesmo, encher os olhos das pessoas de beleza, emocionar as pessoas para que elas acreditem que a vida é mais bonita viva.

O Ailton Krenak tem o livro que virou uma referência para todos nós, “Ideias para adiar o fim do mundo” (Companhia das Letras, 2020). De que maneira a música que vocês produzem também nos ajuda a adiar o fim do mundo?

Eliakin Rufino: Olha, eu penso que, somando com todas as outras, a música ajuda. Por isso, tem gente que pensa que o Movimento Roraimeira é o Trio Roraimeira, porque as outras artes não têm essa visibilidade toda. Como a música é a rainha das artes, ela tem esse alcance todo, tem musicoterapia, a música das esferas celestes, Pitágoras, a matemática que está na música. A música está ligada com tudo, com matemática, com o universo. Então é mais profundo.

O que nós fazemos é a música popular, que é uma música de consumo, que existe também no mundo todo, de entretenimento e de regionalidade. Porque nesse ajuste agora da linguagem, por exemplo, não se fala mais índio, se fala indígena. Então temos muitas músicas e poemas que usavam a palavra índio e que agora já ficaram um pouco para trás por causa da mudança. A própria palavra regionalismo, hoje não se fala mais, regionalidade é mais adequado, porque está mais ligado com identidade. A gente vai se adequando aos novos tempos.

Os indígenas hoje têm um protagonismo muito maior do que tinham quando nós começamos a falar alguma coisa em defesa deles.

Estamos contribuindo, e, ao mesmo tempo, mudando o tempo todo para não tentar falar em nome de ninguém, não tentar ser prepotente com o trabalho. Vamos nos adaptando, repensando, reavaliando sempre. Mas, no fundo, eu penso que há uma contribuição, sim. Não só para a melhoria da nossa identidade local, mas também para outras consciências de regionalidades. E isso faz as pessoas mais felizes, porque ninguém é feliz sem ter uma porçãozinha de regionalidade, de pertencimento a algum lugar.

Neuber Uchôa: Eu faço música pensando nisso. Não em adiar os finais dos mundos, mas em deixar as pessoas mais alegres e mais para cima.

Este ano, eu faço parte de um bloco de pessoas de todas as cores e sabores. É um bloco libertário, se chama Mujica, que prima pela diversidade, pela pluralidade. E eu fiz uma música, a terceira que eu faço pelo bloco, que é exatamente em cima desse tema. A identidade do bloco é a diversidade. É Roraimeira.

Depois que eu fiz a música e toquei no primeiro ensaio, o que eu vejo de gente nos agradecendo por falar o que eles querem ouvir. A gente já chegou nesse ponto. É muito gratificante você ter enviado o esforço de 40 anos para chegar nesse momento e dizer que está feliz. Para construir a estética de um povo. Se isso não servir, eu não sei mais o que serve.

Eliakin Rufino: Uns constroem prédios, outros constroem estradas. A gente constrói música, constrói arte.

Para vocês, o que significa cantar e compor para o povo?

Eliakin Rufino: Isso virou nossa missão de vida, porque como não fomos tentar carreira artística no Rio de Janeiro, em São Paulo, continuamos morando aqui, então, o trabalho a fazer era esse. Tem uma coisa grandiosa no nosso trabalho: não foi por encomenda. A gente não recebeu dinheiro, a gente cantou por amor.

Até criticamos alguns eventos, como festivais que foram feitos e que era obrigatório o tema local. No Parque da Cidade, tem um muro cheio de quadros de artistas, mas, por causa da obrigatoriedade do tema local, todos os quadros são iguais, porque todo mundo tinha que pintar aquilo. Deixava cada um se expressar, o muro teria ficado lindo. Como nos expressamos sem ninguém encomendar, sem ninguém pagar, é uma coisa autêntica, genuína, legítima, bonita.

A gente começou a cantar porque viu a necessidade de fazer esse trabalho aqui. Esse é o mais bonito da história toda, não foi uma missão encomendada.

Neuber Uchôa: Hoje, a gente goza do respeito, do carinho, somos referência para essa juventude que está fazendo música. Existe uma nova geração Roraimeira. Acabamos de nos apresentar com nossos filhos, já sinalizando que eles vão continuar mesmo, não era papo.

Eliakin Rufino: Crescem os trabalhos acadêmicos, TCC, dissertações de mestrado. A academia tem se interessado também pelo tema.

Neuber Uchôa: O diálogo com a juventude que a gente mantém, isso é legal. Fortalecer o movimento significa estar sempre atento e se atualizando dia e noite, principalmente neste tempo, novos artistas surgindo, novas tendências. Nosso cuidado foi é uma coisa admirável.

Eliakin Rufino: O Trio Roraimeira foi agraciado em 2018 com a Ordem do Mérito Cultural, a maior honraria cultural do país, do Ministério da Cultura, da Presidência da República. Aomos cavaleiros da Ordem do Mérito Cultural, que é um reconhecimento, por parte do Estado, do nosso trabalho no Noroeste do Brasil.

Eliakin, você vai estar participando do lançamento do álbum “Amazônia sem garimpo – volume 1”, que foi lançado no dia 23.

Eliakin Rufino: O lançamento faz parte de um programa internacional que se chama Pint of Science, no qual se lançam trabalhos científicos em bares, para popularizar. Isso já está sendo feito em 26 países. E na nossa Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), um grupo de cientistas, dirigido pelo médico e cientista, sanitarista, professor Paulo Basta, que é amigo nosso, tem feito trabalhos científicos conectando ciência e arte. Esse é um projeto de defesa do povo Munduruku. A contaminação de mercúrio lá está extremamente alta, dos rios, dos peixes.

Foi feita uma ação da Fiocruz lá, e um dos desdobramentos do projeto foi produzir um álbum com músicas sobre essa necessidade que todos temos de pedir o fim do garimpo na Amazônia, porque todo garimpo é ilegal. Então estamos indo contra uma ilegalidade que está sendo praticada. Agora, se há condições sustentáveis de ser feito, isso tem que sentar para conversar, porque destruir a natureza, contaminar os rios para a riqueza de poucos em detrimento de muitos, não pode.

O disco está lindo. São nove faixas. Eu sou letrista de cinco delas, parcerias com o Leandro Floresta, que é um músico. E a consultoria do povo Munduruku, com a participação do próprio Daniel Munduruku, que canta uma das faixas. Tem também Cátia de França, Moreno Veloso, Dora Morelenbaum, o próprio Lelê Floresta cantando. Minha participação como letrista é de adequar essa linguagem, criar uma linguagem de música popular que fosse não panfletária contra o garimpo, mas também que quisesse sensibilizar para a vida, para a importância da floresta viva e se posicionar publicamente contra o garimpo.

É um ato contra o garimpo na Lapa, no Rio de Janeiro. Com um show com a banda Ciência e Poesia, que é formada pelo Paulo Basto, o Lelê Floresta e os músicos. O Daniel Munduruku vai estar lá para uma rodada de conversa. Eu participo também.

Vamos fazer um ato contra o garimpo no Rio de Janeiro para chamar a atenção da sociedade de um modo geral, numa cidade que tem mais visibilidade, para a necessidade de darmos um basta nisso. É para combater com música, com alegria.

A quantidade de lama que o garimpo jogou no Rio Tapajós, a pérola da Amazônia, o caribe da Amazônia, é duas vezes maior do que a lama de Brumadinho, eu ouvi. Então não estamos falando de uma coisa localizada, é um desastre geral. E qualquer pessoa tem que se voltar contra. Primeiro, pela ilegalidade da prática.

Como vocês veem a cena cultural da música na Amazônia? Que artistas vocês indicam entre esses novos que têm despontado na música da região?

Neuber Uchôa: Eu faço parte dos que são do presente. E tenho um orgulho danado de fazer parte desse time de artistas que conseguiram romper a barreira do sistema e fazer um novo destino para a música produzida no Norte. Estamos aí há 40 anos, antes tinha a gente fazendo, daí o brega, daí a indústria dos discos, dos estúdios em Belém, tudo centenário. Existe um movimento. É que o próprio país virou de costas para a nossa região durante a vida toda, até hoje. Quando se fala em Belém, já pensam que é o mato.

Eliakin Rufino: Para citar nomes, em Roraima, temos Anne Louise Sanfoneira, uma menina de 17 anos que está se destacando muito no forró. Temos Ana Lu, voz feminina do reggae e do pop. Ela tem um trabalho bem frequente de produção de clipes, de shows, e uma atuação bem grande. Os meninos do Bodó Valorizado, da antiga John Rock.

Neuber Uchôa: E tem também os Hermanos, que estão fazendo música com a gente. Tem dois rapazes da Venezuela, o Israel. Acabamos de contratá-los para fazer um sopro no nosso Carnaval.

Eliakin Rufino: Outra mudança digna de ser colocada é que antigamente a fronteira era na cidade de Pacaraima, na linha de fronteira. Do outro lado, tem Santa Helena, lá era a fronteira. Aqui tinham alguns venezuelanos, que vinham como turismo, um outro morava aqui. Mas hoje 15% da população de Boa Vista é formada por venezuelanos. Agora, a cidade de fronteira é aqui.

Hoje, é muito comum você ouvir música venezuelana andando na rua ou venda de comida venezuelana na rua. E veio também essa parte musical. Os maestros das orquestras são todos venezuelanos, bandas venezuelanas tocando. Estamos vivendo um auge de uma fusão cultural em Boa Vista. Um fenômeno bem atual. São quase 100 mil venezuelanos que se mudaram para cá.

Inclusive, fomos os primeiros a fazer um discurso de acolhida, porque, num primeiro momento, houve reações de xenofobia. Neuber compôs uma música sobre isso, eu compus um poema. Demos muitas declarações na imprensa sobre a necessidade de acolher. Tenho até um poema que diz que um dos nossos costumes é acolher nossos vizinhos aqui:

“Quem deixou seu país | encontra aqui nosso amor | e a chance de ser feliz”.

Nós nos colocamos na linha de frente quando houve algumas reações xenofóbicas ou de bairrismo aos venezuelanos. E ainda há, mas agora me parece que as coisas estão se acomodando.

Qual a importância de pensarmos a Amazônia pela música?

Eliakin Rufino: Eu tive a honra de participar de um encontro nacional de geógrafos da cultura, que são professores de Geografia que ensinam tendo a cultura como a coluna vertebral da sua metodologia. Então eu penso que a importância é que não só por meio da música como da cultura da Amazônia, é possível conhecer a Amazônia de perto, pelo olhar de quem tenta traduzir, que é a questão do artista.

Se a gente pegar a cultura que é produzida aqui na região que se chama Amazônia, é possível termos uma ideia real. Claro que não é toda a música que é produzida aqui, tem música de entretenimento. Mas a música popular, de modo geral, feita pelos compositores da Amazônia é, sim, um caminho de conhecimento e de reflexão sobre a nossa região.

Neuber Uchôa: A importância é imensa. Primeiro, pela continuidade. O que tem de mais antigo aqui é a nossa cidade que tem 133 anos. Belém acabou de fazer 408. Muita história. O que a gente está fazendo é escrever as primeiras letras da nossa história, junto com todo mundo que está com a gente. Como eu e o Zeca dizemos numa música: “nossa história é feita de pajés e corações de cada canto do país”. Nesse caso, do mundo todo, a gente vive outro tempo.

Mas como somos um povo muito jovem, a gente tem essa vantagem de ser contemporâneo. Não somos da época da flautinha de urso. Nossa história é toda nova. Fora essa história dos fazendeiros, do garimpo, nossa história, de fato, tem 40, 50 anos. É a idade do Roraimeira. Antes disso, o que havia era um ajuntamento. A gente não tinha nenhuma cara em particular. Eram muitas identidades.

Então acho que é a importância da gente continuar fazendo esse trabalho, produzindo os filhotes disso tudo. Com toda sinceridade, meu maior orgulho é esse. Tenho cinco filhos, todos artistas. Temos feito arte juntos. Família que faz arte unida, permanece unida.

Produção: Marcos Colón & Vanessa Moraes
Edição do podcast: Vanessa Moraes
Edição de texto: Isabella Galante
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón

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