Falta de transparência sobre a BR-319 ameaça mais de 18 mil indígenas
Escavadeira na BR-319. Foto: Ben Sutherland/ Flicker
A BR-319, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO), há tempos é alvo de controvérsias ligadas a questões sociais e ambientais. Recentemente, foi divulgado que a transparência de contratos para obras na rodovia é baixa em quase todas as etapas. Esse desempenho afeta mais de 18 mil indígenas em 63 terras indígenas, cinco comunidades não demarcadas e uma população isolada, segundo o biólogo, pesquisador e doutor Lucas Ferrante.
“A falta de transparência esbarra em tudo, principalmente porque agências de fiscalização têm sido coniventes e até facilitado as ações de grileiros e madeireiros ilegais na rodovia. Nenhuma população indígena foi consultada. E o mais preocupante é que nós, pesquisadores, vimos autoridades em audiência públicas mentindo que as consultas teriam sido feitas”, pontou.
No levantamento produzido pela Transparência Internacional, as consultas livres, prévias e informadas aos povos da floresta e a todos os demais afetados pela construção da rodovia foram avaliadas com o pior desempenho, recebendo nota zero — em uma escala de zero a 100 pontos.
Vale lembrar que os povos da floresta devem ser consultados antes da decisão de pavimentar a BR-319, como estabelece a convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a declaração sobre os direitos dos povos indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU).
Um dos exemplos da falta de consulta prévia foi feita pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), que publicou uma portaria liberando o Projeto Básico destinado ao reasfaltamento do Lote C na rodovia. A decisão, publicada no último dia 9 de abril, contraria a deliberação judicial e um parecer técnico do Ministério Público Federal que classificou as ações do Dnit como de “má-fé” e uma “afronta ao Judiciário”.
Em nota à Amazônia Latitude, o órgão de infraestrutura informou que há quatro investimentos voltados à BR-319 em 2024, incluindo o início da repavimentação do Lote C, entre os km 198 e 218, que, segundo o órgão, já possui autorização ambiental.
O Tribunal de Contas da União (TCU) informou que possui mais de 100 processos que citam a BR-319. Por outro lado, não localizou um que trate especificamente da transparência dos contratos de obras. Já o Ibama declarou que atua na análise e emissão de licenças ambientais, garantindo que os “empreendimentos estejam em conformidade com as normas e regulamentos ambientais vigentes” e salientou que o acompanhamento de obras é uma atribuição do empreendedor responsável, no caso, o Dnit.
Governo deve rever a pavimentação da BR-319
Os periódicos científicos Science e Nature, conhecidos por publicações de pesquisas mundiais, apontaram categoricamente que o governo brasileiro deve rever a pavimentação da rodovia, seja pelo risco de colapso da Amazônia, agravamento da crise climática ou pela região abrigar o maior estoque de organismos capazes de causar doenças no mundo.
Originalmente construída pelo regime militar brasileiro na década de 1970, a estrada rapidamente se tornou obsoleta devido às severas condições da Floresta Amazônica. Durante a estação das chuvas, que dura cerca de seis meses, a maior parte da estrada se transforma em um trecho de lama praticamente intransitável. Além disso, em estudos recentes, os especialistas ambientais Ferrante e Philip Fearnside alertaram que a pavimentação facilitaria o acesso de madeireiros ilegais e invasores de terra.
A reconstrução da via está em pauta há cerca de 15 anos. No entanto, sua licença sempre foi barrada pela falta de um Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima) que comprovasse sua viabilidade. Em 2019, o governo Bolsonaro encomendou um novo estudo, que foi aprovado, permitindo que o Ibama emitisse uma licença prévia em 28 de março de 2024.
“A situação é gravíssima. O governo Lula será responsável por essas catástrofes, incluindo a violação dos direitos dos povos indígenas, se prosseguir com os planos de pavimentação da rodovia. É importante deixar claro que qualquer representante do governo que afirmar que ambos foram feitos, consultas e estudos ambientais adequados, incidirá nos artigos 66 e 67 da lei nº 9.605/98”, analisou Ferrante.
Questionado sobre a ausência de informações como parecer técnico dos órgãos envolvidos quanto ao licenciamento ambiental, o Dnit considera que os contratos referentes à BR-319 são relativos “à execução de serviços de manutenção rodoviária, bem como a execução de obras emergenciais, para as quais não há exigência de consulta prévia à população ou licenciamento ambiental específico”.
Lideranças indígenas afirmam que não houve consulta prévia
No levantamento da Transparência Internacional, a segunda pior nota atribuída foi à fase contratual (5,5 na escala de zero a 100). A avaliação mostrou que não há transparência sobre relatórios de auditoria de fiscalizações efetuadas, bem como cronogramas, agências financiadoras e registros de reuniões com grupos e comunidades impactadas pela obra após a fase de contratação.
Apesar de não sentir os efeitos direitos da falta de transparência dos contratos e as consequências da pavimentação, Nilcélio Jiahui, um dos principais líderes de sua etnia, contou que “o impacto para quem vive no raio da rodovia será grande”, e que os povos indígenas ainda estão discutindo de que maneira será garantida a compensação ou indenização devido aos efeitos relacionados à BR-319.
Além disso, Jiahui relatou que as comunidades tradicionais não foram ouvidas: “Não houve consulta. O Ibama aprovou a licença sem uma prévia anuência dos povos indígenas. Não somos a favor desse empreendimento, até porque são vários os impactos: social, cultural e ambiental”.
O cacique Zé Bajaga, coordenador geral da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus na BR-319, também apresentou o mesmo posicionamento em entrevista à Folha de S.Paulo. “Não teve um estudo do componente indígena diretamente com meu povo, apenas uma apresentação rápida na Terra Indígena São João e Tauamirim. Não nos sentimos [consultados]. Não houve consulta livre, prévia e informada”, alegou.
Troca de farpas entre governos
Cabe citar que a rodovia foi definida como inviável “economicamente e ambientalmente” pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em sessão da CPI das ONGs do Senado, em novembro de 2023. “Serão milhões investidos apenas para pessoas passearem com seus carros, já que nesses trechos não há atividade produtiva. É melhor subsidiar uma passagem de avião”, declarou.
Por outro lado, o senador Eduardo Braga (MDB) criticou a fala da ministra e disse que a estrada “fará a diferença entre o futuro de desenvolvimento, geração de emprego e renda ou o isolamento do Amazonas e de Manaus em momentos de crise climática”.
Como adiantado por Braga ao jornal A Crítica, a recuperação da BR-319 custaria R$ 2 bilhões aos cofres públicos e não seria um problema para o Dnit. Segundo ele, a não repavimentação do local está ligada a uma questão “mais política do que de orçamento”.
A reforma da rodovia tem como principal entusiasta o governador do Amazonas, Wilson Lima (União). Em janeiro deste ano, o político criticou o Governo Federal pela maneira como lida com as obras de recuperação. “Isso não é justo. Não pode tolher um direito que é essencial ao cidadão, o direito de ir e vir. Porque o cidadão que mora no Amazonas é tão brasileiro quanto o que mora em qualquer outro lugar do Brasil”, ressaltou.
Em nota, o Governo do Amazonas defende a pavimentação da BR-319 como forma de tirar o estado do “isolamento em relação ao restante do Brasil”, com o compromisso de que a obra atenda o escoamento da produção local, por exemplo, a industrial. De acordo com o órgão, isso tornaria o estado mais “competitivo economicamente”.
Órgãos públicos devem divulgar dados mesmo sem solicitação
André Marcilio, presidente da Associação dos Amigos e Defensores da BR-319, explica que a falta de transparência sobre a rodovia afeta várias pessoas. “Os recursos e as informações sobre a obra dizem respeito a todos nós. Os órgãos federais não podem demonstrar boa vontade sobre esses dados apenas quando a sociedade civil solicita, mas sim de forma contínua”, reflete.
À reportagem, Amanda Faria Lima, analista de integridade e governança pública da Transparência Internacional – Brasil, detalha que o caminho ideal seria priorizar a publicação de todas as informações sobre a contratação e execução contratual de obras, incluindo as questões ambientais e de licenciamento ambiental, em um portal único e acessível a toda população.
“É urgente que as informações sejam divulgadas da forma mais célere e atualizada possível — permitindo o controle social constante —, além de ações de aproximação e diálogo com as organizações da sociedade civil e movimentos locais sobre quais são as informações prioritárias e como elas devem estar acessíveis”, analisou.
A Amazônia Latitude solicitou um posicionamento da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e da Funai sobre a falta de transparência diante dos contratos da BR-319 e o caso da repavimentação. Mas até o fechamento desta reportagem, não obteve retorno.
Produção: Elanny Vlaxio
Edição: Alice Palmeira
Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón