Marianne Schmink: 50 anos dedicados à pesquisa sobre a Amazônia
A pesquisadora estadunidense se tornou um dos maiores nomes na pesquisa sobre a Amazônia, a floresta e seus povos
Marianne Schmink na UFPA durante o V Sialat. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude
A Amazônia é um grande mosaico, cuja complexidade tem sido estudada e desvendada por mentes brilhantes ao longo dos anos. Uma das mais proeminentes é a entrevistada deste episódio do LatitudeCast.
Marianne Schmink é uma renomada antropóloga, pesquisadora e professora emérita do Centro Latino-Americano da Universidade da Flórida. Com uma carreira dedicada ao estudo de temas como sustentabilidade, questões ambientais e as dinâmicas socioeconômicas das populações indígenas e rurais na Amazônia, ela é reconhecida por suas significativas contribuições ao campo da antropologia ambiental.
Autora de várias publicações influentes, como o livro Conflitos sociais e a formação da Amazônia, coescrito por Charles Wood, Schmink é responsável por colaborar com diversas organizações e projetos voltados para a promoção do desenvolvimento sustentável na região amazônica.
Confira agora o episódio do LatitudeCast com Marianne Schmink:
Marcos Colón: Queria começar este bate-papo pedindo que você se apresentasse, falasse um pouco quem é a Marianne e como tem sido os dias pós-academia.
Marianne Schmink: Em primeiro lugar, muito obrigada pelo convite. Eu tenho muito carinho por Belém, é meu lugar favorito do Brasil. São quase 50 anos que venho aqui, e é sempre um prazer.
Sou professora aposentada da Universidade da Flórida, do Centro de Estudos Latino-americanos, e ex-diretora de um programa grande chamado Conservação e Desenvolvimento Tropical, no mesmo Centro. Passei quase 40 anos dirigindo esse programa. E há cinco anos, me aposentei totalmente.
Hoje, estou muito feliz de poder me dedicar mais à atividade em minha própria comunidade de Gainesville, na Flórida, fazendo o mesmo tipo de trabalho apoiando as comunidades de lá, como a gente tentava fazer aqui no Brasil, na Amazônia.
O núcleo do qual você fez parte por tanto tempo continua ativo e desempenha um papel fundamental para as novas gerações de estudiosos da Amazônia. Poderia nos contar mais sobre esse núcleo e como ele se destaca? Parece ser uma instituição única na preparação dos alunos para entenderem a região.
Isso começou já nos anos 80. O Centro de Estudos Latino-americanos é uma unidade interdisciplinar, dentro da estrutura universitária, o que foi uma grande vantagem, porque a gente podia trabalhar e juntar pessoas, estudantes e professores, das diversas áreas da universidade, algo que era pouco comum.
E havia um pessoal da área de ciências biológicas que começou na mesma época com um programa de bolsas de estudo para estudantes da América Latina, em geral. Então a gente começou a juntar as áreas biológicas e sociais, tentando criar um espaço de aprendizagem interdisciplinar e de reconhecimento das ligações entre o meio ambiente, a vida e o bem-estar das pessoas.
A gente começou com um grupo de professores, tentando entender quais seriam as pontes, as diferenças teóricas e metodológicas para poder orientar os estudantes. E criamos um tipo de laboratório interdisciplinar de um curso sobre a Amazônia, em que era possível discutir geologia, biologia, ecologia da Amazônia, o desenvolvimento econômico-social, questões políticas, movimentos sociais, e reunir estudantes e professores dessas áreas numa mesma sala de aula. Foi a grande inovação que tivemos.
Sua pesquisa surge do diálogo com o núcleo de várias formas. Seu livro “Conflitos sociais e a formação da Amazônia” é fundamental para compreender a fronteira da região, oferecendo uma visão longitudinal das mudanças ao longo do tempo e revelando diferentes “Amazônias”. Como esse estudo se torna seminal para entender e perceber outras possibilidades na região?
No começo, a gente foi para o sul do Pará no final dos anos 70, uma época militar de muita repressão política. Ou seja, a região até da guerrilha do Araguaia. Só que não era publicamente conhecido, fomos aprendendo com o decorrer do tempo, como a coisa foi se complicando.
Depois da primeira experiência, decidimos criar um estudo longitudinal sobre o antes e depois da chegada da estrada numa cidade de beira-rio, São Félix do Xingu. Era algo simples, só que essa estrada demorou dez anos para chegar no povoado.
Nesses tempo, foram evoluindo de forma muito dramática as fronteiras. Primeiro, os conflitos pela terra, que já estavam muito acirrados, e foram evoluindo, exatamente com a transição para a democracia, inclusive.
A gente começou a relacionar a política nacional do Brasil com o que estava acontecendo. Ao mesmo tempo, foram surgindo outros elementos da expansão da fronteira. Com isso, tivemos novos povoados na beira da estrada… Foi a extração de madeira, as serrarias que fundaram povoados. Depois, [houve] a migração massiva para esses povoados, que surgiram de um dia para o outro. O surgimento, nos anos 80, dos garimpos de ouro, com o aumento do preço global.
Vendo essas ligações todas, a gente percebeu como o global, nacional e regional foram interagindo de formas muito complicadas.
Não era possível prever esses fenômenos. Foram surgindo com o decorrer do tempo. E a gente conseguiu acompanhar todas essas mudanças e tentar entender como a história maior interagia com os acontecimentos locais.
Você mapeou algo inovador, que ninguém havia feito antes, permitindo-nos acessar informações cruciais para entender as transformações significativas da região. Em 2014, você retornou ao Brasil para realizar um novo estudo com alguns de seus ex-alunos. O que mais surpreendeu você ao regressar, em termos de mudanças em São Félix?
Foi um choque muito grande. A gente conhecia São Félix como um povoado pacato de seringueiros, castanheiros, de duas mil pessoas. Em 2014, já era uma cidade de dezenas de milhares de pessoas. A parte da perda da estrada estava totalmente esquecida. Tudo se voltava para a estrada, que já tinha chegado há tempos.
Parecia qualquer cidade de fronteira. E haviam helicópteros saindo e chegando. Nessa época, foi chamada a capital do gado do Brasil. Um dos municípios que tinha o maior número de gado. Nunca havíamos imaginado esse futuro para São Félix.
Naquele momento, poucas pessoas tinham acesso aos achados da pesquisa. Então, houve a tradução. Como foi essa descoberta em português para a comunidade? De que maneira você acha que a chegada do resultado ao Brasil contribuiu não só para os pesquisadores olharem a região, mas também para verem a progressão das transformações locais? Como foi a recepção do livro?
O livro foi publicado em 1992. Somente 20 anos mais tarde, em 2012, conseguimos traduzi-lo e publicá-lo. Levamos uma caixa de livros para a região, para distribuir.
Já tinha passado 20 anos, então poucas pessoas lembravam da gente. Achamos algumas, mas para a maioria era uma novidade. E foi uma alegria muito grande ver as pessoas lendo o livro, fazendo pesquisa sobre sua própria história. Hoje é um livro de História.
O prefácio da edição em português do livro foi escrito por Lúcio Flávio Pinto. Qual foi a importância desse prefácio? E, poderia também compartilhar a história sobre a parada do avião?
O Lúcio foi fundamental em toda a história. Ele foi nosso orientador sobre todas as coisas amazônicas. E a gente criou uma grande amizade. Então foi uma pessoa muito importante para mim, pessoalmente e profissionalmente. Fiquei muito feliz que ele concordou em fazer a apresentação do livro.
A história do avião é de 1976. A gente estava viajando pela região num avião pequeno, porque eles circulavam por conta dos garimpos. Como era pequeno, tinha que parar para abastecer no caminho. E essa parada foi em São Félix do Xingu. Aproveitamos para conhecer a cidadezinha, e foi quando descobrimos que era muito pequena. Mas que o povo estava esperando a chegada de uma estrada, com muita esperança e ansiedade. E isso inspirou nossa ideia de estudar o impacto da estrada.
Após seu trabalho em São Félix, você começou a trabalhar no Acre. Por que decidiu mais tarde mudar do Acre para o outro lado da Amazônia brasileira? Como foi essa mudança, digamos, epistemológica?
Depois da experiência de 15 anos de pesquisa de campo no sul do Pará — onde quase não se via mais paraense, era uma migração muito grande, mudanças dramáticas —, e muitos anos tentando entender as coisas e colocar no papel, eu fiquei um pouco frustrada por ter registrado as mudanças sem fazer nenhuma contribuição para os problemas que a gente viu acontecer em nossa frente.
E coincidiu, em 1980, fomos convidados pela Universidade Federal do Acre. O reitor Moacir Fecury nos convidou para começar a trabalhar no estado. Eu já conhecia lá pelo movimento de seringueiros, pelo Chico Mendes. E para mim, foi outra possibilidade de poder ajudar no impacto. Aí a gente começou a fazer visita ao Acre e a parceria com a universidade.
Ajudamos a fundar uma ONG chamada Pesacre, que foi criada com essa perspectiva de trabalho de campo com produtores para ajudar a melhorar suas formas de vida sem destruir a floresta.
Você lembra desse encontro que teve com o Chico Mendes? Como foi?
Eu estive com o Chico várias vezes, mas a primeira foi muito interessante, porque a gente ia de um lugar para o outro, entrava em outro carro. Era na clandestinidade. A gente foi convidado a conhecê-lo no seringal, no primeiro aniversário do filho dele.
Nesse processo, Marianne, você cocriou outros projetos e iniciativas com a Universidade da Flórida, possibilitando que alunos brasileiros, especialistas na Amazônia, fossem aos Estados Unidos para fazer pós-graduação. Por que você decidiu focar nesse diálogo de saberes entre os Estados Unidos e o Brasil?
Isso foi um objetivo desde o começo, a partir de nosso grande professor Charles Wagley, que era antropólogo, e já tinha relações com a Naea [Núcleo de Altos Estudos Amazônicos], com o Museu [Paraense Emílio] Goeldi, e estava levando pessoas do Brasil para os Estados Unidos.
O que a gente fez foi procurar formas de financiamento para expandir isso. Conseguimos batalhar um fundo permanente para a Bolsa de Estudantes da América Latina. E, com isso, pudemos institucionalizar nosso programa, não era mais um projeto.
Então, a gente passou a ter na sala de aula pessoas de vários países e várias áreas de estudo trabalhando em conjunto. Eu, como antropóloga também, nunca achei que a gente pudesse trabalhar sozinho sem ter esse tipo de parceria com as pessoas do local. Assim, os brasileiros puderam interagir com pessoas de outros países, reconhecendo os mesmos problemas e vendo formas diferentes de enfrentá-los. Foi muito enriquecedor e continua sendo.
Além de seu trabalho em/nas fronteiras e na formação de brasileiros, você também se concentrou na questão de gênero ao longo de sua carreira. Na América Latina, seu trabalho sobre gênero é considerado uma contribuição extremamente importante. Por que você acha que essa faceta do seu trabalho tem sido tão influente? Como você vê sua contribuição como pesquisadora nessa área?
Não sei se foi um sucesso tão grande, porque vejo que ainda não conquistamos o espaço para ter, digamos, um tipo de oportunidade igual na hora de colocar ideias, de propor soluções.
Tem uma longa caminhada. Mas na época, era um tema novo e a gente começou a tentar incorporar. Fizemos um projeto com o Brasil, o Peru e o Equador, em que a gente juntava pessoas nos vários países e criava espaços para que as mulheres pudessem falar, criar confiança, para também poder participar dos grupos mistos e entender melhor como o trabalho da mulher muitas vezes era invisível, não contabilizava no mercado.
Como o homem era mais o ganha-pão, seu trabalho era muito visível. A mulher não tanto, somente o trabalho doméstico, mas também os trabalhos para a subsistência familiar, o cuidado da natureza, plantas medicinais, uma série de atividades que eram fundamentais para o bem-estar das famílias. Foram mais ou menos nesses princípios que a gente procurou aumentar a visibilidade e a possibilidade das mulheres terem incidência nas decisões.
Considerando a crise climática em curso e a realização da COP em Belém, quais são as perspectivas para a pesquisa na Amazônia? Diante dos desafios e incertezas em relação ao futuro da região, onde você encontra motivos para esperança?
Às vezes, a gente se desespera ao ver o que está acontecendo, mas eu sou uma pessoa otimista e o fato, por exemplo, dos grupos indígenas estarem na linha de frente hoje é um bom sinal. Porque um dos problemas é a evolução da pesquisa para um nível tão agregado que não se enxerga mais as pessoas na paisagem.
Os indígenas estão numa luta pela vida. E não pela vida somente deles, mas da região como um todo. A região amazônica é um dos locais críticos para a mudança climática. Algo que hoje está começando a ser entendido é como a questão da água afeta a agricultura no continente com as secas.
Isso é um grande mosaico de diversidade, não é uma coisa só. A gente tem que entender, reconhecer, trabalhar e apoiar.
Produção, roteiro e locução: Marcos Colón
Edição sonora: Júlio César Geraldo
Edição de texto: Alice Palmeira e Isabela Galante
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón