Flávia Marinho: Língua indígena e antirracismo

A professora teve uma jornada dedicada à valorização da língua indígena e à luta contra o racismo linguístico

Flávia Marinho
Flávia Marinho Lisbôa, Doutora em Letras Estudos Linguísticos
Flávia Marinho

Flávia Marinho Lisbôa, doutora em Letras e Estudos Linguísticos. Foto: Arquivo pessoal

Nascida no Espírito Santo, mas com o coração marabaense, a professora e doutora em Letras e Estudos Linguísticos Flávia Marinho Lisbôa, relembra com muito carinho de sua chegada no sudeste do Pará.

Em busca de uma vida melhor e influenciada pela colonização amazônica que carregava o efeito do chamado “homem sem terra, para terra sem homem”, a família de Flávia chegou em Marabá no ano de 2002. E é nesse lugar, cercado de lutas e resistências, que durante 22 anos a capixaba se construiu como pesquisadora.

Infelizmente, as regiões Sul e Sudeste do estado são marcadas pelos conflitos agrários, lutas por territórios e mineração. E os movimentos sociais sempre foram uma presença constante, realizando mudanças significativas no território, como a criação do campus da Universidade Federal do Pará (UFPA). Essas questões e movimentos chamaram a atenção de Flávia logo em sua entrada na vida acadêmica.

Como estudante de Letras, trabalhou como correspondente do jornal Diário do Pará com o foco nas lutas sociais e questões que ela via e vivia na universidade. Sua graduação, mestrado e doutorado foram todos na UFPA, que mais tarde se tornou na região Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Ali, a acadêmica foi pioneira como uma das primeiras mestras.

A pesquisadora adquiriu experiência na área de Linguística e Análise do Discurso, na interface com a decolonialidade e estudos interseccionais, relações étnico-raciais e políticas de acesso e permanência para indígenas e quilombolas no Ensino Superior. Entre seus diversos trabalhos, destaca-se o livro Racismo Linguístico e os Indígenas Gavião na Universidade: Língua como Linha de Força do Dispositivo Colonial, que foi fruto de seu doutorado em 2019 e publicado pela Edufba-Salvador em 2022.

“Acho que minha trajetória vai ser muito marcada por estar aqui nesse lugar, que é uma ebulição de tantas coisas, de tantas questões ruins. Mas que também tem muita coisa boa, no sentido de ter uma diversidade de sujeitos, de lutas, que é tão importante para construir uma nova realidade no nosso país”, contou Flávia.

Amazônia Latitude: Quando você entrou na vida acadêmica, já tinha ideia de qual seria sua linha de pesquisa? Ou foi de acordo com suas experiências dentro da instituição que percebeu que iria se debruçar sobre a linguística e o racismo linguístico?

Flávia Marinho: Na graduação, eu já trabalhava sobre as questões étnicos-raciais de alguma forma, mas pensando a problematização da América Latina a partir dos estudos culturais. Então me vinculei a isso e fui seduzida por essas teorias, essas linhas de pensamento que tentam explicar o que somos enquanto sociedade, dentro da diversidade que constituímos, especialmente sob a perspectiva étnico-racial.

Aí no mestrado, trabalhei com a análise do discurso. Acho que minha vinculação à análise do discurso se torna uma demonstração da minha dificuldade de trabalhar disciplinarmente. Apesar de escolher a área da Letras — sempre vi a potencialidade dos estudos da linguagem —, tive muita dificuldade nos encontros, na forma de pensar disciplinar e nos próprios encontros da Letras, onde eu acabava ficando meio perdida. Não conseguia me encontrar naquelas áreas.

A análise do discurso foi um escape, porque é uma área de estudo interdisciplinar em sua constituição, e foi o que eu acionei para trabalhar no mestrado e no doutorado. Só que no doutorado, trabalhei com a análise do discurso foucaultiana, com Foucault na verdade, misturando com os estudos decoloniais.

No livro Racismo Linguístico e os Indígenas Gavião, tem uma crise em relação a esse vínculo, mas a gente tenta dialogar. Essa história do racismo linguístico se deu no processo mesmo da tese.

Eu começo a pensar: “O que me leva a estudar os indígenas?” É ver que é um corpo segregado dentro da universidade, por meio de sua língua, de suas dificuldades. Como são várias etnias, cada um tem uma relação com a língua portuguesa e com sua língua ancestral. Uns têm mais dificuldade, outros têm menos. E a evasão — na verdade, a gente fala que é a expulsão desses alunos — era muito grande. Desde 2009, quando foi criada a política de reserva de vagas, em que eram duas vagas para os indígenas e duas para os quilombolas, só quatro alunos tinham defendido o TCC quando eu comecei a fazer a tese, em 2016.

Então esse era um dado que me chamava a atenção e já tinha a hipótese de que era por conta da língua. Mas amadurecer a ideia de que isso apontava para uma interpretação, para uma leitura das relações sociais, de como a língua é uma agente para a efetivação do racismo, isso, de fato, se deu no processo dos dados, de ouvir os alunos contando suas experiências, de como ninguém queria fazer trabalho com eles. Porque ao falarem sua língua, os outros alunos entendiam que o não domínio do português era uma evidência de não racionalidade e levariam a nota do grupo para baixo. Ou seja, é o racismo, como se ativa em outros corpos também.

Falando de linguagem, qual é seu papel no que diz respeito à proteção do território e à conservação do saber ancestral que os povos trazem para a instituição?

O Governo da Língua, do qual sou organizadora, tem um capítulo chamado Línguas, Cosmologias e Corpos Racializados. É uma tríade que eu proponho para a gente entender que não tem como separar a língua da forma de ver o mundo, que seria a cosmologia. No caso dos indígenas, como o mundo é visto por eles, em suas relações com a natureza nesse sentido cosmológico.

Então quando a gente fala que os corpos são racializados hierarquicamente, a gente está entendendo que não é só o corpo em si, mas também a língua e os saberes desses sujeitos. Ou seja, é a completude desse mundo que está sendo excluído. E aí nessa discussão que eu faço, vou dizer que essa exclusão tem um fim, que é a deslegitimação da propriedade dos territórios. A colonização deslegitima os sujeitos como donos, não reconhece os sujeitos como donos desse chão, que hoje a gente chama Brasil, como diz Ailton Krenak.

O território é o grande objetivo da colonização, o domínio territorial. E a racialização do corpo, que significa sua desumanização, é a estratégia de deslegitimação da propriedade desse território. Então se você não é uma pessoa, não é um grupo, uma nação, eu não tenho por que respeitar você como dono desse território. E automaticamente ocorre a escravidão desses corpos.

Como esses corpos vão ser hierarquizados racialmente? Na perspectiva da desumanização. E isso significa o que? Negar sua racionalidade, seus conhecimentos. E eles só existem e são materializados pela língua.

A linguagem tem uma centralidade sobre nossa constituição de humanidade e na diversidade dos grupos humanos. Todos eles, etnicamente espraiados pelo globo, expressam e materializam sua forma de ver o mundo. Além disso, retroalimentam esse mundo por meio de uma língua, de um código que expressa essa forma de se relacionar com o espaço geográfico.

Você abordou a questão das reservas de vagas. Como o Estado potencializa as desigualdades socioculturais entre os territórios diversos?

É importante a gente destacar que nenhum direito conquistado é de boa vontade do governo. Então quando a gente fala dessa política de reservas de vagas, não foi a universidade que foi boazinha, ou tal governo que se atentou para esse problema. Sempre é fruto de muita luta. E ao adquirir esse direito, a gente passa por outro processo, que é continuar lutando por sua manutenção. A gente não descansa nunca.

Não é só criar a vaga, é também garantir a permanência. As lutas continuam nesse sentido de garantir a permanência. E garantir isso envolve uma complexidade de fatores. Por isso, o Estado precisa estar permanentemente tensionado pelos coletivos, pelos alunos indígenas, quilombolas, LGBTQIA+. Todos eles precisam ter uma força muito grande dentro da instituição.

Eu, professora, sou uma mulher negra que estuda as questões étnico-raciais de uma forma mais ampla, envolvendo também as questões indígenas. Por exemplo, quando estava na Ufra [Universidade Federal Rural da Amazônia], ainda estava terminando o doutorado, e essa era a única Universidade Federal que não tinha política de reserva de vagas. E eu estava estudando sobre o que envolve essa política. A UFPA, a Unifesspa, a Ufopa [Universidade Federal do Oeste do Pará] tinham, e a Ufra não tinha.

Então eu tenho muito orgulho de falar do protagonismo que eu assumo nesse sentido, para perturbar mesmo, cotidianamente, a vida de pessoas durante uns dois anos para que essa política fosse reconhecida. Eu presidi a comissão que criou essa política na Ufra.

E falando um pouco de governos, é importante destacar que há governos e governos. Quando a gente fala de uma política de Estado, sabe que ela pode ser mantida, garantida, reforçada, dependendo do governo que estiver ativo. É inegável a importância dos avanços das políticas de Estado nos governos do Lula e da Dilma, das políticas afirmativas em nosso país e especialmente nas universidades.

Considerando sua participação no pré-lançamento do Utopias Amazônicas e seu capítulo na obra, o machismo se encontra em várias esferas da sociedade. Mas como ele se dá e como atua na construção feminina na Amazônia?

Minha fala no pré-lançamento da obra aconteceu no sentido de destacar o protagonismo da mulher racializada na Amazônia, dentro da luta por direitos. Somos muitas Amazônias. E nessas diversas Amazônias que existimos, tem um padrão comum a combater. Isso vem de uma discussão do livro Vozes Afro-Amazônicas, que é escrito apenas por mulheres negras. E elas trazem esses diversos olhares que o título propõe.

Minha escrita do capítulo [Corpo-Utópico: Território e Dimensões de Gênero na Amazônia] é para problematizar o fato de que somos diversas, diversos. Temos uma diversidade étnica na Amazônia, não só étnico-racial, mas uma diversidade de corpos que são hierarquizados, subjugados nesse espaço. Então está aí a importância da nossa união e dessa diversidade de lutas. Na Amazônia, tem essa figura muito forte como inimigo comum, a exploração do capital, que performa dentro da perspectiva da reprodução do padrão europeu, eurocêntrico e neoliberal que agride a todos e todas, seja qual for a diversidade que se coloca.

Trazendo outra discussão do livro, organizado pelo professor Marcos Colón, a gente fala que essas lutas que buscam, que estão concretizando mesmo esse chão de uma utopia para a Amazônia, tem um protagonismo de mulheres muito importante. A gente não está desvalorizando o papel dos homens, obviamente. Mas são as mulheres que são responsáveis pela preservação e garantia de que outras gerações tenham acesso ao patrimônio cultural negro, ou das mulheres indígenas, de suas homologias preservando para os filhos e as próximas gerações.

São as mulheres que, majoritariamente, estão entrando na política, estão se candidatando. Mulheres negras, indígenas, trans. São as mulheres que estão organizando as marchas, indo para as ruas. É inegável o protagonismo da mulher para construir as utopias amazônicas.

Para além do machismo, tomando o referencial da interseccionalidade, não tem como a gente tirar a racialidade da luta das mulheres na Amazônia. Então acho que é preciso pensar não só no gênero, mas também na sexualidade e étnico-racialidade.

 

Produção: Yris Soares
Edição: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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