Conto de Sandra Godinho: Receita para desaparecer
Entre lágrimas e saudades de uma mãe, um filho sabia que não havia paz que se acomodasse naquele desconforto de ver tombar o verde e as aves
Tangará-do-oeste. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude
Porque a saudade morasse na casa, a velha Fabiana a regava logo pela manhã com as lágrimas, despejadas em cada cômodo. No quarto do casal, seus olhos largavam as teias de aranha no alto dos cantos e pousavam no cinto de couro do marido, pendurado num prego espetado na parede próxima ao leito, junto a faca de estimação que ela lhe havia dado para degolar os pacus que se descuidavam no quintal e achavam destino certo nas mãos calejadas do velho.
O coração dele não aguentou depois da quinta maleita. Tinha se livrado do mosquito nas águas, onde passava parte da madrugada e da manhã na canoa, puxando tarrafa para trazer algum pescado, mas o inseto o pegou na cidade. Ela sempre achou que as coisas pequenas faziam um estrago maior, minando por dentro. Agora tanto faz, já era tarde e os pingos salgados da velha ficavam pelo corredor, abundando um cadinho mais no quarto ao lado, o do filho, quando Fabiana se recostava ao umbral da porta, passando a mão pelos fios grisalhos à procura de conforto e equilíbrio, sem coragem de entrar, à procura de uma sobra do filho, cheiro que fosse. Ela se esforçava, arregimentava as forças que ainda restavam nas pernas e entrava naquele vazio que deixava sua carne mais ferida e aberta, buscando os vestígios dele, retendo na retina a imagem de quem se dedicou a salvar a mata e os bichos. Adentrava, resgatando o retrato desbotado de um tempo bom, resgatando parte de quem foi.
O menino tinha nascido para a criação. Caitetos, antas, cotias e galinhas. Calango que adoecesse era logo tratado, guariba marcado por arma de caçador logo recuperava o viço em suas mãos. Dos animais, os passarinhos eram os preferidos. O moleque conhecia de cada um o canto, uirapuru, urutau, curica ou sanhaço. Os cânticos dos pequenos quebravam o silêncio do filho, espécime raro entre os homens: se acaso jogasse semente, a terra se abria em cova, pronta para receber e retribuir suas boas mãos para o roçado. Não trazia palavras na boca, as que tinha vinham do peito, despejadas em desespero quando presenciava alguma malinação com as pequenas criaturas que circundavam a palafita na beirada do igarapé, na periferia de Manaus, onde o moleque vivia xingando e esbofeteando outros meninos em defesa das aves. As cicatrizes e os cortes profundos que ganhava a mãe cuidava, pondo-o na rede, despindo-o dos farrapos ensanguentados, rezando, chorando e aconselhando: em lugar onde é fácil encontrar a morte, todo cuidado é vento e nunca basta.
Nos ermos da cidade, a vida era uma outra vida. E os crimes que os faziam ver os mortos eram calmos, planejados e frios. Só o filho da velha Fabiana não via. E se via, não se importava, querendo salvar o que ia tombando para dar lugar a casas erguidas sem planejamento ou sustentação. Invasões, diziam uns. Milícias urbanas, diziam outros, grilavam as terras assim como grilavam os rios, eram tantos os garimpos e as rotas de tráfico, mas a polícia não aparecia para desbancar, tampouco as autoridades emprestavam os ouvidos para esses delírios de gente sem eira ou beira como ele. Não havia paz que se acomodasse naquele desconforto de ver tombar o verde e as aves, vendo seu mundo se acabar e ver morrer pedaços de sua alma. O medo de se perder era tanto que resolveu denunciar o fato ao delegado, que o encheu de porrada, abandonando-o nu e com a carne magoada, não o bastante para uma última ameaça: não quero te ver nunca mais, moleque, se aparecer de novo na delegacia vou te enterrar feito planta no fundo da terra. Foi quando o jovem tomou o rumo da Colômbia. A velha Fabiana entendeu: a alegria de sua vida tinha de fazer parte de outro mundo, ficou a ausência cada vez mais aguda pelas manhãs, fazendo-a lembrar quando o filho juntava seu canto ao dos passarinhos, engrossando o coral de pios e cicios; regava a casa, aguardava a umidade abafar o ambiente, abria as janelas para desabafar a saudade e as portas esgarçar o vazio mais depressa. Pensava no corpo ausente, enquanto alisava o leito do filho.
Naquele manhã não foi diferente, esticou a colcha, afofou o travesseiro, enxugou o rosto molhado no avental e já retornava para a cozinha quando notou o passarinho de pelagem preta e azul no dorso e vermelha na cabeça, não era uma ave qualquer, reconheceu o tangará-do-oeste, nativo das matas da Colômbia, foi quando soube que o filho tinha lhe vindo visitar, do único modo que podia.
Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com Orelha lavada, infância roubada (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com Verso do reverso (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance Tocaia do Norte (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, A morte é a promessa de algum fim, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, Memórias de uma mulher morta e A Secura dos ossos.
Montagem de página e acabamento: Yris Soares
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas
Revisão: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón