Caubóis e Índios: Leonard Peltier, o mais famoso preso político do qual você nunca ouviu falar
Nesta "Caubóis e Índios", Blanchette conta a história de Leonard Peltier, membro do Movimento Indígena Americano (AIM) preso injustamente
Leonard Peltier. Arte: Fabrício Vinhas
Em 2 de Julho de 2020, ao meio dia, Leonard Peltier (Turtle Mountain Chippewa — Mikinaakwajiw-ininiwag) teve sua liberdade negada após de quase meio século preso pela sua participação no Movimento Indígena Americano (AIM – American Indian Movement).
Originalmente, queria discutir o caso Peltier com uma maior contextualização do AIM para os leitores brasileiros. O impacto do Movimento nos indígenas da América do Norte pode ser largamente comparado com o das Panteras Negras na população afrodescendente, mas, como tantas outras realidades indígenas, ele é quase absolutamente desconhecido em terras brasilis. Todavia, a negação da liberdade de Peltier merece ser comentada em tempo real, uma vez que esta foi a última chance prática do velho militante sair da prisão.
Peltier nasceu na Reserve Turtle Mountain, membro da Band Chippewa de Turtle Mountain (os Mikinaakwajiw-ininiwag, em sua língua nativa, ojibwe), em 1944 (ironicamente, um mês antes do nascimento da minha mãe). Como jovem, foi sujeito às práticas educacionais da época, que enfatizavam a assimilação forçada.
Como muitos outros militantes de sua geração, foi educado na escola do internato da BIA (a FUNAI americana), isolado de sua família e povo, proibido de falar a sua língua materna ou de aprender sobre os costumes e tradições Chippewa.
Suas experiências dentro da “barriga do monstro” deixaram forte impressão no jovem Peltier e, na década de 1960 ele – como muitos outros de sua geração – ficou atraído pelo crescente movimento indígena em sua luta para proteger seus direitos e territórios tradicionais.
Em 1972, Peltier se juntou ao AIM (fundado em Minneapolis em 1968) e foi, junto com o Movimento à reserva Oglala Lakota de Pine Ridge, em Dakota do Sul, onde um conflito armado estava eclodindo entre os residentes tradicionais da Reserva e o governo tribal ditatorial liderado por Richard “Dickie” Wilson.
Wilson, que era apoiado por rancheiros brancos, tinha indicado sua intenção de abandonar terras tradicionais dos Lakota ao Governo Federal. Este projeto foi amplamente resistido pelos chefes tradicionais da Reserva, que começaram a militar para o impeachment de Wilson como Presidente Tribal.
“Dickie” reagiu organizando esquadrões de morte entre e em torno da polícia tribal, os rotulando, sarcasticamente de GOONs (“capangas” em inglês), ou Guardiões da Nação Oglala (Guardians of the Oglala Nation). Nos anos a seguir, dúzias de militantes tradicionais foram assassinados a sangue frio pelos GOONs de Wilson, com o apoio ativo do FBI, que armou os esquadrões e se recusou a investigar os assassinatos cometidos pelos capangas.
Reagindo à violência, a aliança de chefes tradicionais no Pine Ridge pediu proteção ao AIM, que chegou armado na reserva para defender os líderes e famílias tradicionais contra os GOONs. O FBI, que considerava o Movimento (como considerava os Panteras Negras) uma ameaça revolucionária, começou a trabalhar cada vez mais próximo a Wilson e o GOONs para enquadrar os membros do AIM em crimes, os removendo da Reserva e os eliminando como defensores e oponentes tradicionais do regime de “Dickie”.
Em 26 de Junho de 1975, dois agentes do FBI invadiram um complexo no interior da Reserva e imediatamente abriram fogo contra o acampamento AIM que estava montado lá, onde várias mulheres, crianças e velhos tradicionais tinham procurado abrigo.
Tudo indica que a ação dos agentes do FBI foi motivada pelo desejo de provocar um confronto armado para prender os membros do Movimento e seus aliados Oglala, como era a práxis da agência em seu trato das organizações taxadas, na época, como “militantes e violentas” (mais notoriamente os Panteras Negras).
Infelizmente para dois agentes, o FBI e os GOONs subestimaram a capacidade de resistência do AIM. Presumiram que tinham, talvez, meia dúzia de pessoas armadas no acampamento mas, nas noites anteriores à invasão, cerca de 25 guerreiros do AIM tinham chegado para proteger o complexo. Em um eco irônico da destruição do regimento de cavalaria de General Custer, feita pelos Lakota exatamente 99 anos antes, os agentes do FBI foram rapidamente paralisados no fogo cruzado contra os guerreiros do AIM. Após um tiroteio que durou 10 minutos, ambos os homens foram executados a queima roupa. Só então é que os defensores do campo descobriram que os atacantes não eram membros da milícia extra-judicial de Wilson e sim agentes do FBI.
Os guerreiros dispersaram pelas colinas da Reserva mas, numa das maiores operações policiais de todos os tempos, vários foram presos nos meses seguintes. Três – Leonard Peltier, Robert Robideau, e Darrelle “Dino” Butler – foram julgados pelas mortes dos agentes.
O tribunal original só incluía Butler e Roubideau como acusados e foi marcado por várias irregularidades e violações de procedimentos. Mesmo assim, os dois foram inocentados pelos jurados, que decidiram que, dada a enorme quantidade de atiradores presentes na batalha, era impossível julgar quem era responsável pela matança. Os ataques mortais contra os líderes tradicionais na Reserva por parte dos GOONs também entraram no julgamento e muitos jurados entenderam a reação armada do AIM como justificada, dado o histórico de violência na Reserva.
Enquanto isto, Peltier tinha fugido para o Canadá e, portanto, não podia participar como réu no julgamento. No final de 1976, usando evidências falsificadas, o FBI convenceu o governo canadense a prender e extraditar Peltier para os Estados Unidos. (O Promotor Público Geral do Canadá mais tarde acusaria o FBI de ter mentido sobre o caso para forçar uma extradição ilegal).
Peltier começou seu julgamento em 1977 e o FBI usou todos os métodos possíveis (inclusive, alega-se, o assassinato de testemunhas) para condená-lo, fato consumado em abril daquele ano. No tribunal, as evidências apresentadas no caso de Butler e Robideau foram proibidas e a agência modificou outras provas, aparentemente mentindo sobre sua procedência.
Nos últimos 47 anos, Leonard Peltier tem sido, sem dúvida alguma, o preso político mais famoso dos EUA. Existe um consenso entre as pessoas que estudam o caso de que ele foi extremamente manipulado pelo FBI, de forma ilegal, para garantir uma condenação a qualquer custo como forma de “recuperar a honra do Bureau”, maculada pela morte de seus dois agentes numa operação mal concebida, de legalidade dúbia.
Entra governo, sai governo e, com cada novo presidente, o movimento indígena dos EUA pressiona para uma anistia executiva (notoriamente concedida por Presidente Donald Trump a dúzias de seus comparsas e aliados, alguns condenados de crimes mais graves que Peltier).
Esses esforços, porém, são sempre bloqueados pelo FBI, que parece ter decidido que alguém tem que ser responsabilizado pelo morte de seus agentes, seja quem for. Caso contrário, uma investigação das atividades do Bureau em Pine Ridge entre 1970 e 1975 teria que ser feita e isso a polícia federal americana quer evitar a qualquer custo.
Leonard Peltier tem 79 anos. Ele é diabético, quase cego por causa de um derrame cerebral e passou por várias incidências de COVID-19. Ele tem sido um prisioneiro modelo e não-violento. A negação de sua liberdade agora, em 7 de julho de 2024, demonstra para o mundo inteiro como os Estados Unidos ainda consideram sua população indígena como inimigos. Peltier é mais um numa longa lista de líderes indígenas que têm sido mantidos presos por expediência política no decorrer dos últimos 248 anos.
Afinal de contas, nada assusta mais a imaginação americana, mesmo após de dois séculos e meio, que a resistência indígena armada.
Um documentário excelente do caso Peltier – Incidente em Oglala — foi dirigido por Michael Apted e lançado em 1992. Por um milagre, foi traduzido para português e está disponível na internet. Como sempre, quem não conseguir uma cópia, pode entrar em contato comigo no [email protected] e eu compartilharei, com prazer, meu exemplar!
Edição: Yris Soares e Alice Palmeira
Montagem da Página e acabamento: Alice Palmeira
Revisão: Glauce Monteiro
Direção: Marcos Colón