Traços Amazônicos reafirmam o protagonismo das mulheres quadrinistas

Artistas gráficas amazônidas experimentam, desenham e revelam os desafios cotidianos de mulheres que produzem arte na região

Fabiana, Helô e Mandy. Arte: Fabrício Vinhas
Fabiana, Helô e Mandy. Arte: Fabrício Vinhas
Fabiana, Helô e Mandy. Arte: Fabrício Vinhas

Fabiana, Helô e Mandy: mulheres, ilustradoras e amazônidas. Arte: Fabrício Vinhas

Dos super-heróis à Turma da Mônica, as histórias em quadrinho estão entre as formas de Literatura contemporânea mais acessíveis para a maioria das pessoas. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil mostra que Maurício de Sousa, o “pai da Mônica” é o sexto autor considerado mais importante para os mais de cinco mil entrevistados pelo Instituto Pró-livro, durante o levantamento realizado em 2019, ficando à frente de “clássicos” como José de Alencar (7º colocado) e Vinicius de Moraes (8º colocado).

Há pouca informação sobre quanto esse mercado que movimenta mais de U$ 2 bilhões de dolares no mundo gera anualmente no Brasil. Nos mais de 150 anos de produção de HQs no Brasil, há uma ascensão iniciada por volta de 2011. Estima-se que as publicações deste gênero tenham subido de cerca de 1.861 para 2.262 obras a cada ano. E, destas, 452 seriam “100% tupiniquim”. Neste conjunto, a maior parte das vendas está ligada às produções da Turma da Mônica, de Maurício de Sousa. 

 N“O Relatório Quadrinhopédia do Mercado Editorial Brasleiro de Quadrinhos”, que analisou os número de publicações entre 2021 e 2022, os títulos produzidos no Brasil correspondem a 20% do que circula no país com uma média de 2.150 obras anuais e um destaque impossível de ignorar para a “Turma da Mônica”.

Mesmo nas pesquisas, o mercado competitivo aparece centralizado no Sudeste do país, onde estão sediadas as editoras, brasileiras ou não, que publicam por aqui. E, nos estudos, há pouca informação sobre produtos que sejam criados e publicados fora do “Eixo-São Paulo” e quase nenhum dado que contabilize a presença e papel feminino no desenho, planejamento ou execução de projetos comerciais nessa área.

Essa “ausência” mostra a importância de pesquisas como o trabalho “Representações de mulheres gordas em quadrinhos de autoria feminina da/na Amazônia, de Fabiana Gillet, que mapeou 55 ilustradoras e uma pessoa não-binária atuando como quadrinistas na Região Amazônica, em 2023. O mapeamento foi feito cruzando dados e informações de redes sociais, portais e perfis de coletivos e aponta que “elas” atuam principalmente nos estados do Amazonas (30), Pará (20), Amapá (02), Rondônia (01), Roraima (01) e Maranhão (01).

“É importante lembrar que esse levantamento não mostra todas as quadrinistas mulheres da Amazônia, mas apenas o que conseguimos encontrar durante a pesquisa. Como focamos nas representações visuais, buscamos quadrinistas que trabalham como ilustradoras, coloristas e arte-finalistas, excluindo aquelas que atuam apenas como roteiristas ou produtoras, por exemplo”.

Mandy Modesto. Foto: Arquivo Pessoal

Mandy Modesto. Foto: Arquivo Pessoal

Mulheres Amazônidas nos Quadrinhos

Mandy Modesto, uma das quadrinistas paraenses destacadas por Fabiana, trabalha com cartuns há seis anos. Por meio de seus quadrinhos, a artista busca dar visibilidade às mulheres da região, representando suas histórias de maneira autêntica e empoderada.

A influência da Amazônia em suas criações é evidente. Segundo ela, as narrativas femininas que estão centradas na cultura amazônica estão voltadas para temas mais diversos. “São narrativas que buscam força nas identidades, trazendo o cotidiano, os conflitos internos, críticas sociais, emancipação, biografias, fantasias, entre outros assuntos que evocam a regionalidade pela vida que conhecemos”. Para Mandy, seu trabalho vai além de simples representações visuais; é um meio de fortalecer as identidades culturais das mulheres amazônidas.

“Meu trabalho é dar visibilidade à vida pela perspectiva das mulheres, para que as nossas vozes fortaleçam nossas identidades culturais, ao invés de ter nossas histórias contadas por curiosos com experiências superficiais”.

Ilustração de Mandy Modesto. Fonte: Mandy Modesto Arquivo pessoal

Ilustração de Mandy Modesto. Fonte: Mandy Modesto Arquivo pessoal

A quadrinista também reflete sobre a evolução do protagonismo feminino no cenário dos quadrinhos, um meio historicamente dominado por homens. Ela revela que o mercado era frágil quando dependia exclusivamente do ‘descobrimento do talento’ a partir de grandes editoras. No entanto, com o surgimento do mercado independente e autoral, a interação com o público ampliou consideravelmente as possibilidades de produção e a formação de coletivos tem sido uma estratégia eficaz para fortalecer o movimento das mulheres nos quadrinhos. “[Os coletivos vêm] oportunizando projetos e formando uma rede de apoio em circunstâncias que precisamos nos defender”.

“Há um protagonismo crescendo não somente no mundo da ficção das histórias em quadrinhos, mas também nos bastidores da criação dessas narrativas. E isso tem um potencial transformador muito rico para nossa sociedade. Fico feliz de ver essa mudança acontecer, apesar da resistência de alguns”.

Ilustração de Helô Rodrigues. Fonte: Helô Rodrigues / Arquivo pessoal

Ilustração de Helô Rodrigues. Fonte: Helô Rodrigues / Arquivo pessoal

Mãe onça: quadrinhos, maternidade e cotidiano

A artista paraense Helô Rodrigues encontrou inspiração em sua própria experiência para criar ilustrações que retratam a realidade da maternidade, muitas vezes romantizada. “O que me motivou a focar foi justamente o que não me contaram sobre a maternidade. Existe toda uma romantização de que tudo vai ser incrível e maravilhoso, a realidade é que não é bem assim”.

Helô Rodrigues. Foto: Helô Rodrigues / Arquivo pessoal

Helô Rodrigues. Foto: Helô Rodrigues / Arquivo pessoal

Ela destaca em suas obras os desafios que ela mesma enfrenta e enfrentou como as noites em claro, os medos e as dúvidas, além de ter de lidar com as inúmeras opiniões e julgamentos alheios. “Eu fui e anunciei a minha gravidez em forma de quadrinhos, e a recepção da galera foi muito boa. Falo dentro dessas tiras, desses quadrinhos, sobre a opinião alheia e as minhas experiências”, explica Helô.

Ilustração por Helô Rodrigues. Fonte: Helô Rodriguês / Arquivo pessoal

Ilustração por Helô Rodrigues. Fonte: Helô Rodriguês / Arquivo pessoal

Para ela, suas ilustrações servem como uma forma de apoio e empatia para outras mães, criando uma rede de suporte e compartilhamento de sentimentos.

“Existem muitos perrengues, muitas noites em claro, com medo, com vontade de chorar e a gente se questiona muito sobre muitas coisas. Trazer isso artisticamente para debate e mostrar que não é fácil essa jornada da maternidade foi essencial para que se levantasse várias questões com outras mães”.

A artista trabalha com quadrinhos há cerca de cinco anos. Além dos temas como maternidade, ela também aborda o cotidiano paraense, retratando a partir de suas próprias vivências, sobre como enxerga a cidade em que mora, destacando a mulher como protagonista nas suas histórias.

“A gente tende a enxergar dentro dos quadrinhos só a visão dos homens, por que não das mulheres? Ainda mais dentro do nosso contexto”. Um livro com suas tirinhas sobre maternidade deve ser lançado até o final de 2024, compartilhando suas descobertas e reflexões com um público cada vez maior.

Mulheres gordas nos quadrinhos amazônicos

A pesquisa de Fabiana Gillet analisa, dentre a produção de mulheres da Região Norte do Brasil, “figuras” femininas caracterizadas como “gordas”. Foram encontradas 46 imagens com representações de corpos “acima do peso”, em personagens e ilustrações. A designer considerou que, dada a obra de cada uma, “as representações feitas pelas quadrinistas são majoritariamente representações femininas, destas, uma minoria de mulheres gordas”.

Apesar da maioria das quadrinistas da Amazônia ser do Estado do Amazonas e de este lugar, especialmente, sua capital Manaus, estar na liderança de rankings que analizam a obesidade no Brasil, foi no Pará  que “a mulher gorda” esteve mais presente nas produções artísticas.

Ilustração de Mandy Modesto. Fonte: Mandy Modesto Arquivo pessoal

Ilustração por Mandy Modesto. Fonte: Mandy Modesto Arquivo pessoal

Em solo paraense foram localizadas 32 representações – 60% do total mapeado – nas obras de Mandy Barros, Mandie Gil, Tai Silva, Karipola, Helô Rodrigues e Maria Liddell. No Amazonas foram localizadas nove representações de Laura Athayde, Rayane Cardoso e Sarah Vox; e outras quatro representações foram encontradas pela produção da amapaense Natália Muniz; entre outras.

Também foi mapeada a presença de signos amazônicos em oito das 46 representações sem que fosse estabelecida um correlação obrigatória entre o “obeso” e o “amazônico”.

Capa da pesquisa de Fabiana Gillet. Foto: Fabiana Gillet / Arquivo Pessoal

Capa da pesquisa de Fabiana Gillet. Foto: Fabiana Gillet / Arquivo Pessoal

“De um modo geral, independente das representações de mulheres gordas, é comum que em seus trabalhos as quadrinistas abordem temas relativos à culinária, música, dança, tradições e lendas regionais e ao cotidiano urbano ou interiorano e ribeirinho”.

A autora estabeleceu ainda uma diferenciação entre as “gordas menores” aquelas que “vestiriam” até, aproximadamente, o tamanho 46, o chamado “GG”; e as acima deste tamanho, já alcançando o conjunto de tamanhos identificados em lojas especializadas de Plus Size. Sendo mais raro o aparecimento de mulheres “gordas maiores”, em detrimento das “gordas menores” nos quadrinhos produzidos na Amazônia.

“Tal observação pode ser relacionada a […] inspiração das quadrinistas em pessoas do seu cotidiano ou em si mesmas, a questões técnicas referentes à dificuldade de se representar corpos maiores e pela ausência de modelos gordos maiores também nas representações midiáticas”.

Para a pesquisadora, há um afastamento nos quadrinhos produzidos por mulheres da Amazônia da “gordofobia” em detrimento de temas que envolvem e promovem o “amor-próprio e a autoestima”. Mostrando que “o corpo gordo pode ser aceito, desde que seja um corpo (aparentemente) saudável”.

Invisibilidade Vs Diversidade nos quadrinhos brasileiros

A pesquisadora Fabiana Gillet aponta que, “atualmente, o quadrinho nacional é caracterizado por uma produção independente, tanto de autores, quanto de editoras, além de ocorrer um boom em plataformas de financiamento coletivo online. O que se deve, em grande medida, às dificuldades da produção nacional devido a preponderância de comics estadunidenses, que chegam junto com outros produtos culturais”, mas, “a centralização da produção mainstream por editoras do sudeste e de autoria ‘cis hétero branca masculina’ provocam discussões e críticas por parte de autores independentes”.

As quadrinistas da Amazônia relatam suas várias invisibilidades. Mulheres, negras (pardas, preta e indígenas), LGBTQIA+ e nortistas, elas apontam as dificuldades em conseguir reconhecimento e exposição para o trabalho produzido fora das grandes editoras. A falta de eventos e de premiações importantes para além dos São Paulo e Rio de Janeiro é um problema recorrente.

Fabiana Gillet. Foto: Fabiana Gillet / Arquivo pessoal

Fabiana Gillet. Foto: Fabiana Gillet / Arquivo pessoal

Em 2022, a ilustradora, Mandie Gil, falou sobre a diferença de tratamento para os artistas da Amazônia. Ela cita como exemplo o valor de R$ 800 reais que cobrou por um trabalho que, depois, descobriu ter sido orçado entre R$ 3 e 6 mil reais por colegas ilustradoras do Sudeste. A resposta que recebeu de sua proposta foi que “o valor estava fora do mercado” E estava, de fato, fora de mercado: muito abaixo dele. Mas ela não foi contratada porque, desabafa, “para [os contratantes] os artistas nortistas, na verdade, não valem o preço de mercado”.

Para ela, uma das maneiras de contornar isso é cobrar mais diversidade em painéis e eventos nacionais da área e ampliar a participação dos amazônidas para além de nichos de invisibilidade. Ou seja: que as quadrinistas da Amazônia falem nestes eventos e falem sobre vários temas e não apenas sobre “como é ser mulher quadrinistas” ou como é “produzir quadrinhos no Norte do país”. E sejam, de fato, reconhecidas pelo excelente trabalho que produzem sob pena de exterminar novos talentos antes que seja reconhecidos, como lembra Helô Rodrigues:

“As pessoas deveriam prestar mais atenção. Acho que o Norte acaba de certa forma sendo calado. Eu conheço muita gente que desistiu de trabalhar com quadrinhos, aqui no Norte. Ou de pessoas que foram para fora para poderem ser reconhecidas e trabalhar com isso. […] Mas, infelizmente, aqui o mercado é muito escasso e as pessoas não olham muito”.

Se depender do talento, essas quadrinistas certamente merecem cada vez mais espaço. Elas que falam de si e representam umas às outras por meio da arte gráfica; desafiam estereótipos; promovem discussões importantes sobre o “viver na Amazônia”; e acrescentam diversidade a esse cenário já marcado pela imaginação.

Texto: Lucas Duarte
Revisão e edição: Glauce Monteiro
Arte: Fabrício Vinhas
Montagem da Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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