Por que as leis ambientais bolivianas não funcionam?
Este ano, a Bolívia registra sua maior perda de cobertura florestal com 10 milhões de hectares perdidos. A devastação é intensificada pela agricultura de roça, pelas queimadas e pelas mudanças climáticas que põem em perigo a vida e a cultura dos povos indígenas da região


Bombeiros chegam para lutar contro o incêndio florestal que ameaça aldeias em Concepción, Bolívia. Foto: Katie Surma/Inside Climate News

Dario Mamio Serato lembra que não podia respirar no dia em que o fogo chegou. A floresta amazônica era um inferno. Uma fumaça ocre envolvia Darío enquanto ele usava o machado na espessa vegetação para fazer um “corta fogo” e evitar que as chamas alcançassem três aldeias indígenas tacanas de onde dezenas de mulheres e crianças ainda não haviam sido evacuadas.
O pedaço de selva tropical que eles chamam de lar nunca havia queimado. Mas a região estava sofrendo com uma atípica estação seca prolongada. Os rios e afluentes, a seiva da selva, estavam secos. A tão esperada temporada de chuvas não havia chegado e, agora, o fogo avançava a uma velocidade vertiginosa se aproximando cada vez mais da aldeia.
Com os pulmões ardendo e os braços cansados, Darío sentiu que sucumbiria ao castigo físico das últimas 12 horas. Aos seus 30 anos, ele era o único líder tacana que sobrava entre o fogo e as aldeias. Isso porque os anciãos das comunidades haviam sido retirados da área. Ao ver como as chamas laranjas se apoderaram das casas mais remotas, ele pensou: “Perdemos”.
Foi então que apareceram os bombeiros de um povo próximo que vieram lutar contra outro incêndio. Juntos, organizaram uma “queima de expansão”, técnica com o uso controlado de fogo para delimitar o incêndio florestal e evitar que ele se estenda.
As principais aldeias se salvaram, mas acabava de começar uma nova era de incêndios na Amazônia boliviana. Cerca de um ano depois, a Amazônia e a região das terras baixas voltaram a estar em chamas.
Darío Mamio Serato, em uma mensagem de texto que me enviou em setembro, me explicou que o ar nas cidades gêmeas de Rurrenabaque e de San Buenaventura e nos seus arredores estava tomado por uma fumaça nociva e que o dia parecia noite, um presságio sobre o que poderia chegar novamente até a aldeia tacana nas semanas seguintes.
E as leis que deveriam ajudar, se mostram bem menos poderosas que as chamas.
O novo normal
Entre 2010 e 2012, a Bolívia fez algo audaz: promulgou leis nacionais que reconheciam os direitos da “Pachamama”: a Mãe Terra. Leis sobre direitos da natureza supõem uma mudança radical em relação ao status quo em que os sistemas jurídicos tratam todas as formas de vida não humanas – como bens móveis, como propriedades dos humanos.
Nestes marcos legais, um ecossistema que sustenta a vida não é diferente de um microondas ou de um carro. Essa forma de pensar, segundo os ambientalistas, é o que provoca os problemas ambientais que põem em risco o mundo e todos os seus habitantes.
As leis bolivianas sobre a Mãe Terra, no entanto, são apáticas e inaplicáveis. Mais de uma década depois de sua criação, não estão ajudando pessoas como Darío Mamio Serato em sua luta pela Amazônia que é a luta por toda a vida na Terra.
Não é raro que ardam partes da selva tropical. É normal que alguns incêndios naturais surjam na estação seca, que vai de maio até o final de outubro de cada ano. Mas o que está acontecendo agora na Bolívia não é normal.
A temporada de incêndios este ano é a pior já registrada no país. O fogo devorou uma extensão de floresta cinco vezes maior que nos últimos 20 anos. Segundo o boletim da Fundacion Tierra, uma organização não governamental boliviana, mais de 10 milhões de hectares de selva tropical, zonas úmidas e pastagens queimaram até o dia 30 de setembro deste ano. Uma superfície maior que o território de Portugal.Este ano, conclui o boletim, “permanecerá na memória dos bolivianos como o ano do pior desastre ambiental da história do país”.
O problema dos incêndios transpassa as fronteiras da Bolívia. Outros países da América Latina – onde se encontram as selvas tropicais mais extensas do mundo com cinco milhões de espécies e centenas de comunidades tradicionais – também estão registrando temporadas recordes de incêndios.
A floresta amazônica está cada vez mais suscetível ao fogo após décadas de desflorestamento massivo, que impediram que o meio ambiente realizasse seu ciclo natural da água, no que os cientistas chamam de transpiração: as árvores usam as raízes para extrair a água do solo e a liberam na atmosfera como umidade por meio das folhas, o que faz surgir precipitações.
Mas o desflorestamento altera o equilíbrio e provoca condições mais propensas de seca, agravadas ainda mais pelas mudanças climáticas e padrões meteorológicos naturais como o El Niño. E, quanto mais a selva queima, mais dióxido de carbono é liberado na atmosfera, em um ciclo que piora cada vez mais as condições que desencadeiam os incêndios.
A situação criada por nós humanos é ainda mais extrema quando analisada do ponto de vista histórico. Durante 65 milhões de anos, os ciclos naturais da Amazônia seguiram se organizando e mantendo inúmeras formas de vida abaixo da copa de suas árvores. Atualmente, por culpa dos humanos – para sermos mais precisos, dos consumidores que fomentam a destruição da floresta e das pessoas que se beneficiam dela – já se destruiu 18% da Amazônia e uma área ainda maior foi degradada. Tudo isso nos últimos 50 anos. A perda de cobertura vegetal na Polícia só fica atrás da registrada no Brasil.
Os devastadores da Amazônia Boliviana são bem conhecidos: a expansão das plantações e dos pastos para gado, a mineração – tanto legal, quanto ilegal; o desmatamento e outras formas de extração de recursos e o “desenvolvimento”. O Governo boliviano incentivou em grande medida toda essa destruição com leis e políticas permissivas que têm mais peso que as leis ambientais e os direitos da natureza. A maioria dos materiais que foram arrancados da floresta foram exportados e consumidos em outros lugares do mundo, principalmente nos Estados Unidos.
Darío Mamio Serato e outros habitantes da região percebem perfeitamente essa desvalorização das leis ambientais e o papel que as mudanças climáticas desempenham na intensificação do problema, nada melhor que os habitantes da floresta para perceber a crescente imprevisibilidade das chuvas ou a mudança nas temperaturas. Mas quando estivemos em sua aldeia no mês de junho deste ano, Darío apontou um terceiro culpado que comumente passa despercebido: um pensamento equivocado.
Enfrentando um gigante
Bella Altura, uma aldeia com menos de 100 moradores fica no final de um sinuoso caminho de terra que serpenteia o rio Beni. Até onde a vista alcança, a exuberante vegetação envolve tudo, desde as casas de ladrilho de uma só planta até as falésias das montanhas que ficam à distância.
Darío nasceu e cresceu aqui. E só esteve fora por um tempo quando foi cursar a universidade no Departamento de Beni. Como outros indígenas de sua geração, recebeu duas formas de educação: uma no mundo exterior e outra com os anciãos tacanas. Com os mais velhos de sua comunidade aprendeu leis que passam de pai para filho, como caçar e pescar, identificar e utilizar plantas e encontrar onde os animais se alimentam e se reproduzem. Esse conhecimento é um pilar angular na cultura e meio de vida tucanos e não se pode transmitir a gerações futuras sem um território são e próspero.

Entrada de Belle Altura, povo Tacana na Florestal Amazônica boliviana. Cartaz pede: “Protejam a vida silvestre. Território Tacana livre do tráfico ilegal”. Foto: Katie Surma/Inside Climate News

Dario Mamio Serato em frente a multudão durante reunião panamazônica realizada em 15 de junho de 2024, em Rurrenabaque, Bolivia. Foto: Katie Surma/Inside Climate News
Mas hoje, Bella Altura é uma das 22 comunidades tacanas que se encontram na fronteira com plantações intensivas de dendê e cana de açúcar, que ameaçam avançar sobre suas terras. Uma visão panorâmica, mostra que a região está doente e fragmentada, rasgada por carretas, colonizadores e plantações que se propagam como vírus.
Em junho, Belle Altura recebeu representantes de comunidades tradicionais de toda a América Latina e que enfrentam ameaças similares. Eles se reuniram para compartilhar experiências e táticas para defender seus territórios. Apesar de serem de culturas distintas, o grupo composto por cerca de 50 pessoas tinha algo em comum: suas comunidades humanas são interdependentes das comunidades naturais onde vivem. “Formamos parte da natureza”, explica Dario. “Nós indígenas sabemos. Se não nós, quem defenderá a natureza?”
Darío plantava os direitos imutáveis. Em primeiro lugar, que o ser humano é parte da natureza e depende dela para sobreviver. Não importa quantas histórias sobre a excepcionalidade humana nos sejam contadas na sociedade dominante ou quantos arranha-céus e muros possamos erguer para nos afastar da natureza. A existência da humanidade sempre dependerá da Terra. E outro direito: sem os indígenas que protegem a floresta dos violentos ladrões de terras públicas, empresas mineradoras e outras forças destrutivas, a Amazônia hoje seria muito menor.
Muitas vezes, os indígenas e outros povos tradicionais pagam um preço alto por negar-se a renunciar seu modo de vida e suas terras ancestrais durante de pessoas que desejam tratá-las como mercadoria. A cada ano, centenas de defensores do meio ambiente são assassinados, assediados e ameaçados. Eles eles está Darío, que no ano passado começou uma campanha nas redes sociais para deter a expansão das plantações de dendê próximas de Bella Altura. Quase imediatamente ele recebeu chamadas anônimas que ameaçavam sua família e sua comunidade caso ele não pusesse fim a campanha. “Tive medo, claro que tive”, confessa. “Sou eu sozinho contra um gigante”.
Hoje, mais do que nunca, está claro que os sacrifícios dos defensores da terra com Darío beneficiam pessoas de todo o mundo, desde os pequenos agricultores da América Central até os pescadores do Sudeste asiático. A floresta viva armazena grandes quantidades de dióxido de carbono, por isso, ameniza a piora das mudanças climáticas. Se os humanos seguirem destruindo-a, nós e as próximas gerações viveremos em um mundo muito mais volátil e com menos maravilhas, na medida em que levaremos à extinção espécies como onças, macacos, preguiças, botos cor de rosa e outros seres. Os povos da floresta, ao defender seus territórios, defendem também o mundo.

Dario Mamio Serato, ao centro da foto, sauda visitantes de várias partes da Amazônia em sua cidade natal, Bella Altura, em 13 de junho. Foto: Katie Surma/Inside Climate News
Ao contrário de muitos de nós que, por circunstâncias ou por decisão, sabemos pouco sobre o caleidoscópio das culturas indígenas, pessoas como Darío Mamio Serato aprenderam a navegar, tanto por seu mundo, como pelo nosso e, nos últimos anos, têm utilizado esse conhecimento bicultural para incorporar aos sistemas jurídicas sua compreensão da interconexão entre a humanidade e a natureza.
No encontro de Bella Altura, comunidades do Peru, Brasil e Equador compartilharam histórias de como, contra todo prognóstico, transformaram em lei os direitos da natureza. Eles foram parte de um movimento pouco coordenado que conseguiu que uma dezena de países reconheçam, de alguma forma, que a natureza tem direito.
Os sistemas jurídicos dominantes reconhecem há muito tempo que as instituições, não apenas os humanos, têm direito jurídicos, em particular as instituições econômicas como empresas e consórcios. Nos Estados Unidos, por exemplo, os direitos de liberdade de expressão concedidos às empresas lhes permite doar somas ilimitadas de dinheiro a candidatos políticos.
Mas conseguir que os governos reconheçam os direitos da natureza não é a solução para todos os males ambientais de um país. No encontro, Darío deixou claro esse ponto quando falou sobre as leis bolivianas: “O resultado final foi muito diferente do que esperávamos”.
A Mãe Terra
Darío tinha 12 anos quando os grupos indígenas bolivianos se reuniram em Cochabamba, em 2010, para redigir coletivamente uma proposta de lei nacional sobre os direitos da Natureza. Foi, claramente, um momento importante para os indígenas das terras baixas do país. Anos antes, esses grupos, junto com uma coligação de trabalhadores, indígenas das terras altas e pobre das zonas rurais haviam catapultado Evo Morales para a presidência. De etnia aimara, foi o primeiro indígena boliviano a dirigir o país após séculos de governo de uma elite de descendentes europeus.
Pouco depois de assumir o cargo, em 2006, Morales cumpriu sua promessa eleitoral de levar a cabo um processo de “descolonização”. Graças aos recursos da produção de gás natural , seu partido, o Movimiento al Socialismo (MAS), financiou generosos programas sociais que tiraram milhões de pessoas da pobreza. Também levou a cabo uma série de reformas, como a redistribuição de terras, a nacionalização de empresas energéticas e o aumento da representação de indígenas e de mulheres no Governo. Em 2009, a reforma constitucional que promoveu converteu a Bolívia em um Estado plurinacional que reconhece os 39 grupos indígenas que vivem nele.
Morales levou seu ecossocialismo à cena internacional. Na primavera de 2009, pronunciou um duro discurso frente à Assembleia Geral das Nações Unidas em que acusou o capitalismo de ser uma força sedutora e destrutiva e defendeu o reconhecimento universal dos direitos da natureza.
“Estamos asfixiando pouco a pouco nosso planeta e a todos os seres humanos e a nós mesmos”, disse aos diplomáticos, enfatizando que “a Terra não nos pertence, nós pertencemos à ela”.
Um ano depois, em abril de 2010, Morales contrariou a decepcionante Conferência Sobre o Clima de 2009 organizando uma Conferência Mundial de los Pueblos en Cochabamba. Ali, 30 mil participantes de mais de 100 países – , entre os quais bolivianos que caminharam dezenas de quilômetros para assistir ao evento – redigiram a Declaración Universal de los Derechos de la Madre Tierra, não vinculante. Durante meses, os bolivianos elaboraram uma proposta de lei nacional sobre os Direitos da Natureza.
Mas logo ficou claro que o modelo econômico e a coligação política de Morales eram insustentáveis. Quando explodiu o boom mundial de matérias primas, impulsionado pela crescente demanda das economias emergentes como a China, e os recursos das exportações bolivianas despencaram, Moraes redobrou a exportação intensiva de recursos e a expansão agrícola para custear seu programa de justiça social.
Essa estratégia criou tensões com os ecologistas e com as comunidades indígenas das terras baixas. Em 2011. um anos depois de que foi aprovada a primeira lei de direitos da Natureza, Morales ordenou que as forças armadas bolivianas dispensasse os grupos indígenas que protestavam contra a construção de uma estrada que passaria através do Territorio Indigena y Parque Nacional Isiboro-Sécure (TIPNIS), uma zona protegida da Amazônia.
Vários líderes indígenas e expoentes partidários de Morales romperam publicamente com o presidente neste momento. Entre eles, o então embaixador nos Estados Unidos, Pablo Solón, que havia sido um dos maiores defensores dos direitos ambientais e indígenas no Governo.
“A maior preocupação para o Governo passou a ser como conservar o poder”, declarou Pablo. E, para isso, Morales incorporou alguns líderes indígenas no Governo e favoreceu certos projetos com financiamento público. O resultado foi uma sociedade civil menos independente, grupos indígenas divididos e um enfraquecimento do movimento indígena na Bolívia, segundo Solón. Por sua vez, o Governo se aproximou do setor agroindustrial e de mineração.
No livro, “The Politics of Rights of Nature (The MIT Press, 2021), os especialistas em política ambiental Craig Kauffman e Pamela Martin decorrem sobre as diferenças entre as leis da “Madre Tierra” na Bolívia e o reconhecimento constitucional dos direitos da natureza no Equador, em 2008. Este último havia sido invocado em dezenas de casos para defender os direitos dos ecossistemas, enquanto as leis bolivianas seguiam sem aplicação.
Os autores atribuem ao cenário com o movimento indígena dividido, as leis sem força jurídica e representativa e ao extrativismo do governo de Morales as causas da redistribuição social. Em uma entrevista recente, Kauffman ofereceu uma explicação para as decisões políticas de Morales: o ex-presidente, vindo do altiplano boliviano, tem uma maneira de se relacionar com a terra profundamente distinta da praticada pelos grupos indígenas das terras baixas. Para ilustrar seu ponto de vista, o especialista ressaltou os termos que os diferentes grupos usam para se referir à terra: os indígenas das terra baixas a chamam de “territorio”, que expressa a relação e reciprocidade entre humanos e a terra; os indígenas das terras altas a chamam de “tierra”, por considerá-la uma fonte de recursos.
Os povos das terras altas, segundo Kauffman, também preferiram identificar-se usando o termo “povos originários” ou invés da palavra “indígenas”, utilizada para descrever pessoas das terras baixas, como Darío Mamio Serato. Muitos dos originários vivem agora nas cidades como parte das classes média ou pobre urbana e têm uma visão da natureza distinta da compartilhada pelas comunidades indígenas em que viviam na floresta, explica o autor.
A Inside Climate News entrou em contato com a embaixada da Bolívia em Washington, com o Ministerio de Medio Ambiente y Agua boliviano e com o ex-presidente, Evo Morales, mas nenhum quis comentar o tema.
Em junho, em um café perto da praça central de Rurrenabaque, Darío me contou a decepção que sentiu ao ver como a proposta original para defender a Mãe Natureza se transformou em algo irreconhecível. “O Governo foi muito inteligente em como fez isso”, disse ele. Bebendo uma raspadinha de uva enquanto as pessoas passeavam de charrete, ele me explicou sobre os inúmeros obstáculos que precisa enfrentar para fazer valer os direitos da natureza na Bolívia. Além de driblar a legislação, o Governo pressiona as comunidades que carecem de alternativas econômicas para aceitar o desenvolvimento, conta. Não se aplicam as leis de proteção existentes, afirma. E leis contraditórias foram aprovadas para permitir e incentivar a retirada de árvores, a mineração e a agricultura de queima e roça.

Comunidade de Rurrenabaque, Bolivia, rodeada pela Floresta Amazônica em 12 de junho. Foto: Katie Surma/Inside Climate News
Na Bolívia, por exemplo, as multas pelo desmatamento ilegal da floresta com fogo são de menos de U$ 20 dólares por hectare, o equiavalente a aproximadamente, 2% do que cobra o Brasil em leis ambientais similares. A terra desmatada tem mais valor econômico que a floresta em pé e as multas são muito pequenas para mudar essa equação. “O Governo disse ao mundo que temos leis para proteger a Mãe Terra, mas aqui dentro fazem todo o possível para impedir que as utilizemos”, lamenta Darío.
Impulso para fazer valer os direitos da Natureza
Atualmente, a Bolívia se encontra à beira de uma crise econômica. Suas políticas de desenvolvimento desenfreado não compensaram a queda da produção de gás natural. A dívida pública mais que duplicou desde 2014 e, hoje, 36% da população vive abaixo da linha da pobreza. Além disso, a falta de fiscalização ambiental fez com que a Bolívia se tornasse um dos países que mais desmata e degrada o meio ambiente. O atual presidente boliviano, Luis Arce, continuou em grande parte das políticas de seu predecessor. Enquanto isso, Darío Mamio Serato e pessoas como ele são os mais afetados.
Ultimamente, a comunidade de Bella Altura observou a morte de peixes e animais, além de outros sinais de desequilíbrios nos ecossistemas. A população de plagas negras – termo local para se referir aos ratos – está crescendo, segundo Darío. Logo chegarão os incêndios: Além do risco de morrer entre as chamas descontroladas, a fumaça pode causar e agravar uma série de problemas de saúde, especialmente para crianças e idosos. Situação especialmente perigosa em regiões remotas com escassez ou completamente sem acesso à atenção sanitária.
A perda do bem-estar mental não é menos real. Quase tínhamos terminado as raspadinhas de uva quando pedi ao Darío que me falasse sobre o dia do incêndio. Quando o tradutor lhe transmitiu a pergunta, o rosto ovalado e infantil se desfigurou e empalideceu, os olhos escuros se enrijeceram. O sofrimento daquele dia ficou gravado em seu rosto.
Demos uma pausa antes de continuar. Titubeando, falou do dia depois, quando ele e os outros indígenas caminharam pela terra enegrecida em que se converteu seu território. Ao ver os restos carbonizados de macacos, tartarugas, antas e as gigantescas castanheiras caídas e sem vida, tremeram nas bases.
A comunidade teve e tem que superar sozinha essas perdas. Darío pediu que as autoridades locais fornecessem mochilas extintoras com bomba manual para permitir borrifar água, que custam entre U$ 200 e 300 dólares cada uma. Por hora, seu pedido não foi atendido.
Em um país em desenvolvimento como a Bolívia, o preço das mochilas pode parecer elevado, mas é pouco quando comparado ao arrecadado, por exemplo, após a destruição da catedral de Notre Dame, em Paris, por pessoas de todo o mundo, quando milhões de dólares foram doados para restaurar o edifício.
Fátima Monasterio Mercado, advogada e ativista boliviana, afirma que as comunidades locais se vêem abandonadas à própria sorte para lidar com os problemas ambientais, inclusive os incêndios florestais. Ela explica que a crise econômica deixou os bombeiros sem recursos suficientes e acusa o Governo de não aplicar as leis que proíbem a agricultura de roça e queima durante a estação seca. “A partir de julho, ninguém deveria queimar a floresta, mas o Estado não faz nada”, protesta.
Monasterio trabalha com diferentes comunidades indígenas e locais das terras baixas para reconstruir os fortes movimentos sociais que ajudaram a lançar Morales na presidência. Desta vez, sem dúvida, com o objetivo de reivindicar os direitos da natureza e, ao mesmo tempo, encontrar uma maneira de aproveitar as leis existentes e de criar novas, com base nas experiências de comunidades indígenas de outros países, como o Equador e o Peru, que criaram movimentos de base por direitos ambientais.
“Acredito que a solução está em lembrar que os direitos da Mãe Terra não são do Governo”, afirma. “A proposta surgiu da sociedade civil e, agora, a gente quer exigir que esses direitos se convertam em realidade”.
No começo deste ano, as câmaras municipais de Alto Beni e Palos Blancos, duas cidades assoladas pela mineração e extração de ouro legal e ilegal aprovaram uma normativa que evoca os direitos de la Madre Tierra para defender de áreas protegidas contra atividades minerais. Estas normativas, disse Monasterio, são o primeiro passo. Por outro lado, alguns grupos da sociedade civil boliviana, “indignados pelo ecocídio que provoca incêndios e desmatamento”, convocaram entre os dias 7 a 13 de outubro, um referendo próprio para que a população opine sobre as leis ambientais do Governo. Segundo os organizadores, os incêndios violam os direitos dos povos indígenas e da Madre Tierra.
Darío Mamio Serato e sua comunidade formam parte do renovado impulso para reclamar os direitos da Natureza. O líder tacana participou das assembleias cidadãs que elaboraram propostas para o Governo sobre alternativas econômicas para a atividade extrativa, como a agroecologia e o reflorestamento. O encontro de junho renovou a determinação de Darío de encontrar um modo de fazer valer os direitos da natureza. “Essa conexão que temos com a natureza, nossos animais, nosso ecossistema faz com que seja impossível deixar de tentarmos”.
Este texto foi publicado em colaboração com Inside Climate News. Clique aqui para acessar a versão em inglês e aqui para ler o texto em espanhol.
Katie Surma é repórter do Inside Climate News, focando em direito e justiça ambiental internacional. Antes de se juntar ao ICN, ela exerceu a advocacia, especializando-se em litígios comerciais. Ela também escreveu para diversas publicações, e suas histórias apareceram no Washington Post, USA Today, Chicago Tribune, Seattle Times e The Associated Press, entre outros. Katie tem um mestrado em jornalismo investigativo da Escola de Jornalismo Walter Cronkite da Universidade Estadual do Arizona, um LLM em direito internacional e segurança da Faculdade de Direito Sandra Day O’Connor da mesma universidade, um JD da Universidade de Duquesne, e foi licenciada em História da Arte e Arquitetura na Universidade de Pittsburgh. Katie vive em Pittsburgh, Pensilvânia, com seu marido, Jim Crowell.
Tradução: Glauce Monteiro
Montagem da página e acabamento: Alice Palmeira
Revisão: Glauce Monteiro
Direção: Marcos Colón