Sem água, sem jardim e sem estrelas: seca na Amazônia destrói vitórias-régias e muda cenários em Santarém
Ponto turístico conhecido no canal do Jari se transformou em área praticamente isolada. Período sem chuvas assola vários setores da sociedade e preocupa ribeirinhos
Progressão da seca no Jardim das Vitórias-Régias. Fotos: Dulce Oliveira/Arquivo pessoal. Arte: Glauce Monteiro
Segundo a lenda indígena tupi-guarani, a vitória-régia, planta típica da região amazônica, surge a partir da morte de Naiá, uma indígena que era apaixonada pela lua, conhecida por Jaci e representada por um guerreiro forte e bonito que escolhia mulheres para transformá-las em estrelas. Naiá vê o reflexo de Jaci na água e acaba se afogando em um igarapé, tentando alcançar o amado. Jaci, então, transforma Naiá em vitória-régia, planta que é conhecida como “estrela das águas”.
Mas e quando não há mais água para estas estrelas?
Há dez anos, as vitórias-régias mudaram a vida de Dulce Oliveira, ex-marinheira mercante que se mudou para a comunidade do Alto Jari, no Canal do Jari, braço do Rio Amazonas, em Santarém, no oeste do Pará. Ela e o esposo, Evandro Tapajós, começaram a cultivar a planta aquática em frente à residência da família. O espaço ficou tão bonito que se transformou em um jardim de vitórias-régias muito visitado por santarenos e turistas do Brasil e do mundo, que ficavam encantados com a beleza natural e aproveitavam para tirar fotos e fazer vídeos daquele cenário.
A iniciativa deu tão certo que além do ponto turístico, a dona Dulce começou a estudar a planta e a incluí-la em receitas gastronômicas. Foi assim que surgiram as pipocas, o quiche, vinagrete, rabanada, tempurá. Tudo a base de vitória-régia. Tem até as vitórias-chips. Durante as visitas, os turistas ainda provavam as iguarias preparadas pela empreendedora.
Mas tudo começou a mudar no ano passado. O período de seca dos rios foi mais forte e mais longo do que o normal. Isso dificultou o trabalho com as plantas aquáticas. E neste ano, a situação só piorou. “Eu não consegui refazer o jardim completamente de 2023 para 2024. E esta seca agora está sendo um negócio que eu nem consigo te explicar”, lamentou Dulce.
Em 2024, a seca nos rios da Amazônia vem alcançando marcas extremas e mudando os cenários de comunidades ribeirinhas e de várzea em toda a região. O caso do Canal do Jari, um lago que liga os Rios Amazonas e Tapajós e fica a 23 quilômetros da zona urbana de Santarém, não é diferente. Uma parte do lago já secou completamente, matando todas as vitórias-régias que ali estavam. Em frente à casa dela, ainda tem água. Mas as plantas não estão mais lá e o jardim desapareceu.
O nosso lago tem 450 metros de comprimento por 70 metros de largura. Lá no início, passando um pouco a minha casa, não há mais nada que se possa fazer. Já secou, as vitórias-régias já morreram e a seca vem avançando. Eu espero em Deus que chova para que ela não atinja a frente da minha casa. Onde tem água, não temos mais vitórias-régias. E onde tem, elas estão morrendo porque não conseguem sobreviver no seco”.
Isolamento e falta de água potável
As consequências da seca vão além do jardim de vitórias-régias.
No dia 5 de setembro, o espaço da dona Dulce parou de receber a maioria dos visitantes, porque as lanchas não conseguiam mais chegar até lá. Somente as pequenas embarcações, conhecidas como rabetas atravacam e ainda levavam turistas até o canal do Jari. Cinco dias depois, em 10 de setembro, nem mesmo elas conseguiram mais chegar e as atividades foram completamente paralisadas. Além da dona Dulce, mais quatro funcionárias do Jardim das Vitórias-régias ficaram sem renda neste período.
Mas o quadro é ainda mais grave.
Com a seca do lago, os moradores do Alto Jari estão praticamente isolados. Eles precisam enfrentar longas distâncias até conseguir chegar às embarcações.
É muito distante para se locomover por aqui sem uma moto ou outro veículo. Caminhando pela enseada do Rio Tapajós ou pela enseada do Rio Arapiuns, que fica aqui por trás da minha casa, é muito longe. Então, no momento, é rezar para ninguém adoecer. Essa é a maior preocupação de todos os comunitários”.
Além disso, quem mora no Alto Jari também enfrenta a escassez de água potável por conta da seca.
Para beber água, você pega de onde conseguir. Eu pego do lago, mesmo. Coloco em um filtro com hipoclorito e tomo. É isso. Porque a água que a gente consome aqui vem da comunidade de Moacá. Só que neste momento, não tem como chegar lá para pegar nem um litro de água”.
Seca extrema
A situação no Alto Jari é a mesma de várias comunidades ribeirinhas de Santarém e de toda a Amazônia, que sofrem com a seca extrema dos rios. Dos 13 municípios que compõem a região do Baixo Amazonas, no oeste do Pará, apenas três ainda não decretaram situação de emergência. O nível do Rio Tapajós chegou a marcar -0,02 cm nos últimos dias e está cerca de 60 cm abaixo do nível marcado mesmo período de 2023.
No último dia 15 de outubro, o Governo do Pará, a Defesa Civil e o Corpo de Bombeiros iniciaram a entrega de cestas com alimentos e água potável para os ribeirinhos de Santarém. No primeiro momento, 5.500 famílias foram beneficiadas, recebendo o material no quilombo Arapemã. A entrega das cestas e da água vai atender moradores de 187 comunidades, chegando até as áreas mais distantes, em uma força-tarefa na tentativa de amenizar os efeitos da forte seca.
Além disso, técnicos da Defesa Civil Nacional estiveram na região oeste do estado fazendo o levantamento da situação dos municípios para a definição de ações que possam melhorar a vida de quem depende diretamente dos rios.
O professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), Roseilson do Vale, é doutor em Clima e Ambiente. Ele explica que o panorama extremo de 2024 é uma consequência da forte e longa seca do ano passado e das chuvas abaixo da média neste ano, que não foram capazes de recuperar os rios e toda a sua biodiversidade. Para ele, os registros recentes de secas e cheias intensas são resultados diretos da ação do homem sobre o meio ambiente, com avanço do desmatamento, queimadas, emissão de gás carbônico (CO2), entre outros.
O clima muda naturalmente. No passado, já tivemos períodos mais quentes e mais frios, mas o que estamos vivendo hoje é uma consequência direta da ação antrópica, ou seja, é o homem modificando a paisagem e o ambiente, desmatando, queimando, emitindo poluentes que vão se concentrando na atmosfera e aumentando o efeito estufa, o que aumenta também a temperatura média do planeta e interfere no padrão de circulação, tanto atmosférica quanto oceânica”.
O especialista ainda lamentou os impactos que a forte seca em 2024 tem acarretado em vários setores da sociedade. De acordo com Roseilson, não são só os ribeirinhos que sofrem, mas todos os moradores da Amazônia e e os impactos disso atingem todos que vivem no Brasil: humanos ou não.
A Agência Nacional das Águas emitiu um boletim alarmante sobre a seca em grande parte do país. É algo muito preocupante. Nós temos a geração de energia que é totalmente interligada e pode ser comprometida. A questão da atividade econômica dos ribeirinhos, com uma agricultura familiar que é regida por essa subida e descida dos rios. Quando isso se torna irregular, atinge diretamente a economia. Isso sem falar dos transportes. Os moradores precisam dos barcos de linha, de pequenas embarcações, para se locomover e levar mantimentos para as famílias. Além de quem utiliza os rios para atividades como turismo, extrativismo e colheita. Os braços dos rios e lagos que secam são berçários de peixes. Quando você vem com uma sequência de secas extremas, essas espécies não conseguem se reproduzir. Isso impacta diretamente na piracema e, posteriormente, na questão dos pescadores. Os animais também sofrem, porque precisam de água para beber. É uma tristeza”.
Para quem sente este sofrimento na pele, a tristeza pela mudança extrema de cenário é muito grande. Sem água, sem jardim e sem estrelas, à dona Dulce só resta lamentar.
Quem está desmatando, queimando, destruindo, não sabe o que está fazendo. Ele não está aqui para ter ideia do que estamos passando. Se estivesse aqui, eu tenho certeza que plantaria uma árvore. Nós estamos sofrendo aqui. Eu classifico as vitórias-régias como filhas. A gente cultiva, vê o desenvolvimento e a beleza delas. Então, acordar e se deparar com elas morrendo, pedindo socorro e eu sem poder fazer nada, é muito desesperador. Eu nem gosto de ir para aquela parte. Não consigo acreditar que há três anos aqui era o jardim mais fotografado da nossa região e agora eu nem posso dizer que tenho um jardim de vitórias-régia”.
Texto: Gustavo Campos
Revisão e edição: Glauce Monteiro
Montagem da Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón