Dom Phillips e o jornalismo que permanece
A jornalista Emily Costa homenageia Dom Phillips. Desaparecidos em 05 de junho de 2022, no Dia Mundial do Meio Ambiente, o jornalista britânico e o indigenista Bruno Pereira foram assassinados durante uma investigação sobre o avanço do garimpo e da pesca ilegal no Vale do Javari, Amazonas


Dom ensinava por meio de sua forma de apurar e escrever — com precisão, sensibilidade e escuta. Arte: Fabrício Vinhas
Escrevo este depoimento três anos após o brutal assassinato do meu colega, o jornalista Dom Phillips, na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas. Ele fazia pesquisas de campo para seu próximo livro, How To Save The Amazon (Como salvar a Amazônia), quando foi morto ao lado de Bruno Pereira.
Conheci Dom em 2018, enquanto acompanhava de perto a migração venezuelana pela fronteira em Roraima. Em setembro daquele ano, ele me escreveu pedindo ajuda. Lembro com clareza de uma tarde em que conversamos por telefone. Ao se apresentar, fez piada com seu nome e sobrenome, dizendo que eram parecidos com os de Tom Phillips, seu colega no Guardian, que eu havia conhecido recentemente.
— Tom & Dom, como uma dupla sertaneja, brincou ele, rindo.
Sorri. Depois de desligar, comentei com minha mãe, que estava me visitando. Ela achou engraçado — e nunca esqueceu o nome dele.
Em poucos minutos de conversa, combinamos uma apuração que eu faria para o Guardian em Pacaraima, na fronteira com a Venezuela. O governo Michel Temer havia acabado de criar a Operação Acolhida — uma resposta humanitária militarizada ao intenso fluxo de venezuelanos — e Dom queria entender como isso estava funcionando na ponta. Atencioso e prestativo, ele me deu algumas dicas do que buscava e sugeriu que eu escutasse com atenção as pessoas em campo. O trabalho fluiu. Na mesma semana, foi publicada a reportagem Brazil Calls In Army After Mob Attacks On Venezuelan Migrants, assinada por nós dois.
Foi a primeira de algumas colaborações que fiz para o jornal, boa parte delas por intermédio de Dom. Ele se mostrou um editor cuidadoso e colega generoso, sempre disposto a compartilhar dicas e ensinar por meio de sua forma de apurar e escrever — com precisão, sensibilidade e escuta.
A jornalista Nayara Felizardo, que também trabalhou com ele, escreveu uma frase que sintetiza perfeitamente o que senti em um texto publicado no The Intercept, durante os dias de angústia e esperança após os desaparecimentos de Dom e Bruno:
De uma forma simples e espontânea, Dom me ensinou, sem dizer que estava ensinando”.
Semanas após meu primeiro trabalho com Dom, a tensão na fronteira aumentou com a tentativa da oposição venezuelana de romper o bloqueio do governo para levar alimentos e suprimentos médicos ao país. Era o “Venezuela Aid” — o “Dia D” — que mobilizou também estrelas da música para um concerto em Cúcuta, na Colômbia. O episódio, no entanto, se revelou um fracasso.
Graças à nossa colaboração — incluindo duas colegas baseadas na Venezuela, uma em Caracas e outra em Puerto Ordaz — documentamos na reportagem “Venezuelan Blood Is Being Spilled’: Tension Flares Near Border With Brazil” o que de fato ocorreu: apenas duas caminhonetes carregando arroz, leite em pó e kits de primeiros socorros se aproximaram da fronteira com a Venezuela, mas não chegaram a cruzá-la, ao passo que a promessa da ajuda provocou tensão extrema entre militares e indígenas da região da Gran Sabana. Entre os Pemón, ao menos três pessoas foram mortas e mais de 20 ficaram feridas em dois dias de violência e desespero, em parte consequência da expectativa de envio de ajuda, inflada pela oposição.
— Atenção, Venezuela! “O primeiro carregamento de ajuda humanitária JÁ ENTROU pela fronteira brasileira”, escreveu Guaidó em 24 de fevereiro de 2019. A notícia, no entanto, era falsa: depois de horas estacionados a uma boa distância da fronteira, os caminhões voltaram ao lado brasileiro sem descarregar.
Generoso, Dom fez questão de me contar que havia informado ao seu editor que, graças à minha apuração em campo, conseguimos confirmar que as duas caminhonetes não haviam sequer cruzado a fronteira. Até o New York Times havia errado — e nós, no Guardian, não!
Poucos dias depois, encontrei Dom pessoalmente, por acaso. Eu viajava pelo g1 para cobrir uma assembleia de lideranças na Terra Indígena Raposa Serra do Sol — e ele também estava lá. Conversamos brevemente, e ele me aconselhou. Era um repórter calmo e experiente, falando com generosidade a uma jornalista ansiosa e iniciante.
Bolsonaro havia sido eleito em outubro de 2018, e já vivíamos o prenúncio do que seriam os quatro anos seguintes. Dom me disse que era fundamental que jornalistas locais fizessem uma boa cobertura da Amazônia — e que era importante nos prepararmos para isso.
— O mundo vai querer saber sobre a Amazônia, me disse, com gentileza, para me encorajar.
Alguns dias depois, publicou a reportagem ‘“We are fighting’: Brazil’s indigenous groups unite to protect their land”, sobre a visita ao território Macuxi. É um texto que dá uma aula de jornalismo — de escuta, de sensibilidade, de compromisso.
Nos anos seguintes, mantivemos contato pontual. Em 2020, colaborei como fixer numa viagem que ele fez ao território Yanomami, o que resultou na reportagem “‘Like a Bomb Going Off’: Why Brazil’s Largest Reserve Is Facing Destruction”. O texto capturou a retomada do garimpo ilegal na região, impulsionada sob o governo Bolsonaro.
Em 2022, pouco antes de Dom viajar ao Vale do Javari, nos falamos rapidamente pela última vez. Ele me pediu o contato da assessoria de imprensa do Comando Militar da Amazônia, baseado em Manaus. Consegui e repassei para ele.
Não muito tempo depois, a notícia avassaladora do seu desaparecimento me atingiu em cheio. Foram dias de angústia e revolta, embora às vezes ainda houvesse esperança. Em 17 de junho de 2022, as mortes de Bruno e Dom foram confirmadas.
Por muito tempo, não conseguia pensar em Dom sem chorar. Hoje, ainda me emociono. Assim como me emociono todas as vezes que vejo o vídeo de Bruno Pereira participando de um canto Kanamari, em plena floresta — uma das imagens mais tocantes deste século, eu diria.
Aqui onde moro agora, em Belém, há poucas quadras de casa, tem um grafite com os rostos de Bruno e Dom. Sempre que passo por ali, vejo Dom anotando em seu bloquinho — como se ainda estivesse reportando. É mais do que um lembrete: é um chamado para construirmos outro futuro. Um futuro em que ainda seja possível dizer e sonhar: Amazônia, sua linda.

Mural em Belém homenageia o jornalista, Dom Phillips, e o indigenista Bruno Pereira. Foto: Emily Costa / Arquivo Pessoal.

Post de Dom nas redes sociais. Foto: Emily Costa / Arquivo Pessoal.
Texto: Emily Costa
Revisão e Edição: Juliana Carvalho
Montagem da Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón