A Amazônia no prato da Europa
A decisão de adiar a lei antidesmatamento transforma os europeus em cúmplices da violência contra os defensores da natureza
Gado em área de pasto encoberta pela fumaça de queimadas florestais, na margem da BR-230 (Transamazônica), próximo da cidade de Lábrea (AM), sexta-feira, 06 de setembro de 2024. Foto: Edmar Barros / Amazônia Latitude
A vergonhosa decisão da Comissão Europeia de adiar por pelo menos 1 ano a lei antidesmatamento significa o seguinte: no seu prato vai ter carne de boi do desmatamento; os porcos e frangos que você come foram alimentados com a soja do desmatamento; o café que você toma, o azeite de palma que você usa e o cacau do seu chocolate são natureza destruída e, com muita frequência, há também sangue humano. Há mais. Móveis e outras peças e estruturas de madeira foram árvores na floresta ou em outro bioma, seres vivos que antes criavam chuvas e agora, mortas, foram reduzidas, entre outras coisas, a uma cadeira de design para alguém descansar seu traseiro. A decisão converte todos os europeus em cúmplices das mortes de defensores da natureza em países como o Brasil. Já é assim, mas agora será assim por pelo menos mais um ano. E um ano, em meio a um colapso climático, é tempo que não temos.
A decisão, que ainda precisa ser referendada pelos Estados- membros e pelo parlamento europeu, mas já é dada como certa, é uma das provas mais eloquentes de que, no momento mais grave da trajetória humana, o mundo está muito mal servido de líderes. A Comissão Europeia liderada por Ursula von der Leyen cedeu às pressões das grandes corporações e dos governos e parlamentos que as servem. Cedeu também à pressões de líderes como Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil, que faz discursos em defesa do enfrentamento do aquecimento global e da conservação da Amazônia, mas a prática de parte do seu governo tem sido outra. Não fosse a resistência de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, uma voz cada vez mais solitária no ministério de Lula e sob constante ataque no predatório Congresso brasileiro, a situação da Amazônia estaria muito pior. A afirmação de que os pequenos agricultores serão prejudicados é só mais uma mentira. O adiamento serve às corporações, parte delas com bandeira de países da Europa, e aos grandes latifundiários, às elites extrativistas locais.
A ideia de que é possível adiar uma medida urgente, que deveria ter sido tomada décadas atrás para evitar algo que nunca deveria ter acontecido, a destruição da natureza, é a prova de que estamos perdidos nas mãos desses líderes globais. É também uma ilusão de que o tempo das negociações dos humanos será referendado por uma natureza obediente. É, principalmente, tanto uma ignorância quanto uma arrogância monumental de gente que não tem o direito de ser ignorante e está acostumada demais a ser arrogante.
O desmatamento é uma das principais causas do aquecimento global, que por sua vez causa mudanças sistêmicas e em cadeia que sequer conseguimos alcançar, mas cujos efeitos são cada vez mais sentidos na vida cotidiana. Estamos em grande perigo, e nossos líderes agem como se adiar em um ano a lei antidesmatamento fosse uma escolha possível – e não uma escolha por comprometer talvez irreversivelmente a vida das novas gerações.
Só nós podemos barrar os líderes que nos colocam em risco de extinção. É imperativo que a população se levante e impeça seus representantes de aprovar o adiamento da lei antidesmatamento. Esta também não é uma escolha. Lutamos pela vida.
Publicada originalmente no jornal espanhol El País, em 16/10/2024.
Eliane Brum é a jornalista mais premiada do Brasil, segundo levantamento anual feito pelo site Jornalistas & Cia. Fundadora e diretora da plataforma de jornalismo Sumaúma, publicou nove livros, e é diretora ou codiretora de quatro documentários. Em 2021, recebeu o prêmio Maria Moors Cabot, da Columbia University, pelo conjunto de sua obra.
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Tradução para o inglês: Edward Layland
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