Conto de Sandra Godinho: Em breve, serão batizados com lama

Novo conta reflete sobre a destruição da Amazônia, onde memórias de um sítio abandonado se entrelaçam na resistência solitária de Amâncio

Arte de Fabrício Vinhas com a capa do livro "O Negro Secou" e foto de Vanda Viveiros de Castro
Arte de Fabrício Vinhas com a capa do livro "O Negro Secou" e foto de Vanda Viveiros de Castro
Arte de Fabrício Vinhas com a capa do livro "O Negro Secou" e foto de Vanda Viveiros de Castro

Arte de Fabrício Vinhas com a capa do livro “O Negro Secou” e foto de Vanda Viveiros de Castro

Pode deixar que eu tomo conta de tudo. Era o que dona Jovelina gostava de ouvir a cada vez que visitava o sítio, normalmente nos fins de semana, onde descansava do chororô das mães quando recolhia suas crias – cunhãs com os seios apenas aparecendo. Eu lhe afiançava que estava tudo bem, que tinha tomado conta do sítio direitinho, piscando pra minha velha, que então se voltava aos paneiros feitos de palha de açaí, aos afazeres da casa ou à feitura dos beijus para nos adoçar a boca. Ou ao caldo de caridade, a cada vez que a maleita me atacava.

Jovelina vinha, dava uma olhada em tudo, fingindo se importar conosco, saboreando a comida caseira da minha velha e depois partia, saltando do trapiche para a voadeira, desamarrando-se das atracações que a prendiam àquele lugar, despedindo-se com um breve adeus nos lábios retocados de carmim, desaparecendo do mesmo jeito que chegou, na surdina. Isso foi há muito tempo.

Jovelina não sabia que o rio havia mudado de cor, não sabia do pitiú dos cadáveres que desciam com a correnteza, das toras de madeira cortadas clandestinamente em algum lugar rio acima, dos peixes contaminados de mercúrio, bauxita, alumínio, chumbo, soda cáustica; da solidão de todos os dias. Queria a sensação de ter tudo sob controle. Eu lhe afiançava que tudo ia bem, a horta crescia juntamente com meus calos, besuntados de suor e sol, carpindo e coivarando os gravetos que as árvores deixavam cair, uivando com o vento.

Não confie em ninguém, dizia. Jovelina era como eu, não acreditava em gente que reza. Naquelas funduras onde eu vivia, só matando a piedade dentro é que se sobrevive. E trazendo um revólver na cintura, por garantia. Um trinta e oito de coronha prateada que eu sonhava em ter um dia.

– Pode deixar, dona Jovelina, não confio nem em luz de gerador, me guio mesmo é pelas estrelas.

Preferia viver de ausências a suportar garimpeiros que viviam de cava e cova, juntando-se em acampamentos como animais dentro ou próximo dos rios, com o mesmo discurso de sempre, de cobiça e ardência, surucando paredões à procura de melhor sorte, barranco por cima de barranco, formando charcos enlameados à cata de ouro, com o orgulho bobo tomando gosto, se espalhando entre músculos e artérias até ferver o sangue por causa de álcool, diamante ou mulher. Às vezes, só um arroto de vaidade bastava para inflamar os ânimos e a discussão acabava em briga ou em morte. O gosto do orgulho por baixo da língua podia pôr tudo a perder.

Preferi juntar-me ao calvário da própria terra, pelejando para produzir, horta miúda que fosse, do nascer ao pôr do sol, todo santo dia, até que o solo começou se enfraquecer, cobrando pagamento por tanto destrato. As nascentes secavam, as águas se contaminaram, ferindo a terra de morte. Peixe que prestasse, não havia mais. Dona Jovelina não sabia de nada disso. Nem do desmonte, nem do desmoronamento do meu corpo sofrido de catarata e velhice, a vilania pior que um homem podia enfrentar.

O negócio com as meninas prosperou, de modo que dona Jovelina já não aparecia. A última vez que esteve no sítio trouxe com ela um moço espadaúdo, de braços musculosos e ombros de grande envergadura, apresentado a mim como o Filho do Boto.

Às escondidas, confessou-me ser ele o verdadeiro dono daquelas terras, ainda que o rapaz não soubesse. Tinha feito um favor à mãe dele, uma tal de Luara, tomando-o sob sua proteção e cuidados. A mulher, desguaritada e agarrada à sujeição, já não podia suportar o filho e, ao mesmo tempo, esse chorar dentro de si. Não conseguia conviver com o gosto do inferno na garganta, pior que malária, secando um pouco a cada dia, por isso tinha lhe dado a cria; agora o menino tornou seu faz-tudo.

A velha arrotou o fato com orgulho enquanto eu reparava o rapaz palmilhando o terreno com o Colt de cano longo, calibre 45 e cabo de madrepérola na cintura, as mãos coçando para fazer uso da arma.

Ele não vive sem a justiceira, ela disse. Não duvidei; o olhar do garoto, de quem não entende clemência, acompanhando o gosto de portar a arma e ter um palavrório solto: odiava esse Deus que só sabia multiplicar as desgraças. Foi assim que o divino morreu dentro dele, por revolta e indignação, confessou-me enquanto eu lhe dizia que minha velha foi derrubada pela maleita outra vez, o frio e a febre se acomodando no corpo franzino.

Bote reparo em tudo, Amâncio. E tire foto. Treine os olhos para enfrentar o que anda sobre as águas e as terras. Foi uma conversa desconjuntada; eu pranteando remédio para minha velha, o rapaz falando em tenência com os invasores enquanto me ensinava a usar a câmera. As fotos servirão de testemunha para tudo que acontecer por aqui.

Quis lhe dizer que a câmera tinha pouca serventia para quem já andava quase cego, mas aquietei. Atente aos ruídos, Amâncio, disse-me, indicando a mata com o queixo apontado para cima. Eu mal podia ver os vultos, mas sentia as árvores em revolta, o vozerio dos desconhecidos acampados próximos dali, na força de realizar um sonho, o pavio queimando à noite, o cheiro de querosene, o ruído frenético das motosserras, a sonolência do corpo, a aridez da terra. A cada odor, ajustava o foco da máquina, o instantâneo sendo registrado com precisão.

Só fui ter com o Filho do Boto tempos depois. Apareceu-me na surdina de um dia morno, com as águas em rumores e a tristeza empedrada no rosto, quando um cheiro de carne queimada me chegou às narinas. O garoto me pareceu renascido, com voz de mando e vontade de abraçar abismos.

– O que aconteceu por aqui, Amâncio?

Não lhe dei resposta. Ao invés disso, saí à cata da câmera para lhe mostrar os registros e nos surpreendemos ao notar que a câmera não trazia qualquer foto que comprovasse meu depoimento, nem da minha desconfiança de que as árvores falavam sobre grandes e futuras revoltas, uivavam com os ventos, com os assobios e os piares. Logo mais entrariam em greve. Definitivas, como o lamaçal de miseráveis acampados próximo ao sítio. Pode perguntar à minha velha, vai ver que não estou mentindo, Filho do Boto.

– Está delirando, Amâncio? Andou bebendo? Tua mulher está enterrada debaixo daquela sumaúma, a única árvore que sobrou nesse sítio. Como deixou que os grileiros devastassem tudo?

– Foi o rio. O rio me enfeitiçou, sinhozinho.

Foi a última coisa que disse antes do tiro me alcançar o peito, achando que nunca deixaria de ser o mais desprezível dos vermes.

Conto retirado do novo livro O Negro secou, publicado pela editora Litteralux.

Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com Orelha lavada, infância roubada (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com Verso do reverso (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance Tocaia do Norte (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, A morte é a promessa de algum fim, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, Memórias de uma mulher morta e A Secura dos ossos.

Montagem de página e acabamento: Alice Palmeira
Arte e Montagem do site: Fabrício Vinhas
Revisão:
Glauce Monteiro
Direção: Marcos Colón

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