Educadores do Pará denunciam censura em aulas online sobre ditadura e escravidão
Professores de Centro de Mídias e Educação do Pará afirmam que intervenções e cortes em projetos de aulas são ideológicos


Visita ao Cemep. Foto: Agência Pará
Ditadura, escravião e artes. Estes são alguns dos temas tratados como “polêmicos” durante a produção de aulas online no Centro de Mídias da Educação Paraense (Cemep). O espaço ligado à Secretaria de Estado de Educação (Seduc) cria conteúdo para mais de 11 mil alunos da rede estadual do Pará, que vivem em pelo menos 318 localidades. Mas, agora, as aulas têm sido censuradas.
A denúncia é feita por professores experientes que procuraram a Amazônia Latitude após a cobertura da Crise na Educação paraense, intensificada após a aprovação da Lei nº 10.820/24, que levou educadores paraenses a entrarem em greve e comunidades indígenas a ocuparem a sede da Seduc, em Belém.
No centro do debate, o Cemep aparece como o lugar para onde foram alugados equipamentos cujo valor ultrapassa o preço de compra dos mesmos itens.
O contrato nº 073/2023, por exemplo, cita o aluguel por um anos de 39 microfones de ouvido por R$ 166 mil reais; 10 microfones de lapelas sem fio por R$ 123 mil reais e oito microfones bastão sem fio por R$ 98 mil reais. Uma conta que, apenas para estes equipamentos, chegaria a aproximadamente R$ 387 mil reais.
Na internet, uma pesquisa simples mostra que os equipamentos citados (embora o contrato não especifique a marca ou modelo de cada item), mesmo considerando o que há de melhor no mercado, poderiam ser comprados, ou seja, adquiridos pelo poder público para fazerem parte do patrimônio da Seduc, respectivamente, por R$ 62,5 mil; R$ 10 mil; e R$ 17.600.
Isso significa que se os mesmos objetos fossem comprados o Estado do Pará geraram uma economia de pelo menos R$ 300 mil reais, resguardada as diferenciações entre compras particulares e compras públicas.
Pode parecer pouco dinheiro, em se tratando de gestão pública, seria o suficiente para aumentar em 60% os atuais R$ 500 mil reais reservados pela Lei Orçamentária Anual deste ano para a educação indígena. Em 2024, o mesmo orçamento contava com R$ 3,5 milhões.
As principais pautas do movimento indígena que nesta quarta-feira, 12 de fevereiro, completou 30 dias ocupanto a sede da Seduc em Belém sempre foram a revogação da Lei nº 10.820/24 e a exoneração do secretário de educação paraense, Rosielli Soares. A lei foi oficialmente revogada em votação unânime na Assembleia Legislativa do Pará (Alepa), mas o gestor da educação do estado sede da COP30, ao menos por enquanto, permanece no cargo.
O controle sobre as aulas à distância

Governador Helder Barbalho e secretário de educação do Pará, Rossieli Soares, durante lançamento de projeto. Foto: Agência Pará.
O projeto de educação à distância do Pará virou o carro-chefe da gestão do secretário Rossieli Soares. Em junho de 2024, o programa “Kit Bora Estudar” foi anunciado.
Por ele,1.650 antenas Starlinkg de internet via satélite seriam instaladas em todas as, até então, 898 escolas da rede pública de ensino, garantindo, assim, acesso à internet a todos os estudantes das escolas estaduais com uma velocidade de 200 mbs. Na ocasião, o secretário de educação paraense lembrou que a conectividade era fundamental para fazer chegar a todos os estudantes do Estado as aulas produzidas pelo Cemep.
“O Centro de Mídias transmite aulas para muitas comunidades e, hoje, todos nós estamos conectados ou com celular, ou com outras tecnologias e o que não pode mais acontecer é a gente não usar a tecnologia em favor da educação”, disse Rossieli Soares durante a cerimônia de lançamento do programa.
Mas como estão sendo produzidos os conteúdos no Centro de Mídias da Educação Paraense? Docentes com anos de experiência denunciam que suas aulas estão sendo censuradas pela Secretaria de Educação do Pará (Seduc).
Planos pedagógicos sobre temas como a Ditadura Militar, a escravidão do Período Colonial ou que mencionem partidos políticos são escrutinados por um professor contratado especificamente para isso. Quando não “se encaixam” na visão de mundo da Seduc, são modificados ou suprimidos, mesmo sem a anuência dos professores.
“Sensibilista” ou censura?
A reportagem de Amazônia Latitude conversou com funcionários e ex-funcionários do Cemep (Centro de Mídias da Educação Paraense) que fizeram seus relatos sob a condição de não terem a identidade revelada, por temerem represálias da Seduc. Confirmamos os relatos com diferentes fontes e, quando possível, com registros documentais.
Antes de entrar no estúdio os professores precisam enviar para a pasta seus planos de aula, com indicação do tipo de abordagem e das imagens que serão usadas para ilustrar o conteúdo.
Quem analisa os materiais e planos é o ocupante de um cargo recém-criado: o “sensibilista”. Ele é responsável por analisar e sugerir mudanças no conteúdo pedagógico das aulas que serão produzidas. Segundo os professores, o “sensibilista” sempre parece ser alguém “cuja maioria dos colegas não conhece”.
Outras alterações podem ser feitas no estúdio, momento antes do início da transmissão. Frequentemente, as “edições” são o estopim para conflitos entre o corpo docente e os gestores durante o processo de produção de conteúdos na Cemep.
Em um dos casos, um professor de história foi proibido de mostrar a seus estudantes de Ensino Médio a ilustração de um homem escravizado sendo castigado pelo capataz, sob a justificativa de que a imagem seria “violenta demais”.
A mesma justificativa foi dada a outro docente que quis exibir ilustrações de militantes torturados após o golpe de 1964. Outros dois professores receberam a “sugestão” de borrar o nome de políticos de textos jornalísticos que pretendiam ler com os alunos.
Funcionários do estúdio relataram terem presenciado a censura até de fotos de obras de arte que mostram nudez parcial, como quadros e pinturas do Renascimento.
“Imagina você não poder mostrar o ‘Homem Vitruviano’ em uma aula só porque ele está nu, sendo que uma das características desse período histórico é justamente o naturalismo”, conta um dos professores, em referência ao desenho clássico de Leonardo da Vinci.
Muitas imagens censuradas nas aulas da Seduc são amplamente utilizadas em provas de vestibulares do Brasil.

Monumento Tortura Nunca Mais localizado na Praça Padre Henrique, em Recife. Concebido pelo arquiteto piauiense Demétrio Albuquerque, foi o primeiro monumento construído no país em homenagem aos mortos e desaparecidos políticos brasileiros durante a Ditadura Militar. A obra representa o corpo de um homem nu em posição de tortura de pau de arara. Foto: Divulgação.
Outras intervenções em materiais didáticos
A ingerência direta sobre a liberdade pedagógica do professor não é novidade na carreira do secretário de educação do Pará, Rossieli Soares. Ele que tem formação em direito e é presidente do braço educacional do Lide, o grupo de lobby liderado por João Doria, seu padrinho político.
Em um evento do Lide em São Paulo, em setembro de 2024, Rossieli elogiou a atuação do “De Olho No Material”, uma associação patrocinada por empresários do agronegócio que defendem a produção de livros didáticos livres de críticas ao setor.
Na época, Rossieli confirmou que, como secretário de Educação de São Paulo, cargo que ocupou até 2022, mudou os livros da rede pública paulistana para se adequar à proposta da associação.
“O primeiro estado que passou a adaptar os seus materiais próprios, os escritos, até por orientação do Doria, foi o estado de São Paulo junto com o movimento ‘De Olho No Material’, justamente porque a gente concorda que não dá para demonizar aquilo que nos sustenta”, afirmou.
Discursando ao lado de Rossieli, o vice-presidente do De Olho No Material, Christian Lohbauer, explicou as mudanças que a associação tenta fazer no material escolar. Ele que é ex-presidente de uma associação de fabricantes de agrotóxico, fundador do partido Novo e comentarista do canal de extrema-direita Brasil Paralelo discursou sobre a importância dos estudantes não receberem informações sobre a relação entre agropecuária e temas como escravidão, agrotóxico ou desmatamento na Amazônia.
O que a criança e o adolescente vai aprender que vai ser bom pra sua formação, no mundo do trabalho do futuro? Ela não pode aprender todos os dias, em todos os materiais, há 30 anos, que tem trabalho escravo na cana de açúcar até hoje. Ela não pode aprender que o alimento brasileiro está envenenado com agrotóxico. Ela não pode aprender que a pecuária é responsável pela destruição da Amazônia, porque não é verdade.”
O evento do Lide Educação foi patrocinado pela editora Somos, que também já mudou seus livros por orientação da De Olho no Material. Após Rossieli Soares, “migrar” da secretaria de educação paulista para a paraense, a Somos passou a produzir os livros e materiais didáticos utilizados na rede pública do Pará por meio de sua representante oficial no estado: a empresa Sudu Tecnologia Educacional.
Em janeiro deste ano, o pesquisador Felipe Garcia Passos, analisando as mudanças trazidas pela Lei nº 10.820/24, apontou em artigo publicado pela Revista Amazônia Latitude, como a relação entre a educação paraense e a iniciativa privada é grave e prejudica a qualidade do que alunos aprendem em sala de aula, destacando a forma como a educação presencial tem sido delegada à segundo plano enquanto a educação a distância, via Cemep, ganha destaque.
“É valioso perceber como as ações estão todas coordenadas: empréstimo internacional, flexibilização das leis e atuação das consultorias. Os empresários recebem o dinheiro do empréstimo via Estado, o Estado se endivida e fica refém de influências e a população do campo paraense recebe a pior educação de ensino médio do país — sem escola e sem professores próprios. Para a expansão do Cemep, a Seduc do Pará gastou mais de 340 milhões de reais desse empréstimo para acessar 1.650 antenas da Starlink em pregão vencido pela mesma empresa investigada no Amazonas”.
No estado do Amazonas, Rossieli Soares foi condenado por improbidade administrativa devido a falta de repasse de informações em uma investigação do Minsitério Público quanto a obras na Escola Estadual Ernesto Pinto Filho
À espera de respostas
A reportagem da Amazônia Latitude enviou um e-mail à Seduc com perguntas sobre a censura a seus professores e sobre a relação do secretário Rossieli Soares com a iniciativa “De Olho no Material”, mas não tivemos resposta até a publicação desta reportagem.
Questionamos a Editora Somos sobre as mudanças em seus livros didáticos durante a parceria com a De Olho no Material Escolar e se elas teriam sido feitas também na gestão de Rossieli como secretário.
Em nota, a Somos disse que “todo o material didático é atualizado anualmente, seguindo as orientações curriculares do Ministério da Educação (Base Nacional Comum Curricular e Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental), com todo o rigor técnico-pedagógico. A Somos se pauta pela pluralidade de ideias e busca manter seus materiais em constante atualização”.
Texto: Adriano Wilkson
Revisão, edição e montagem da página: Glauce Monteiro
Direção: Marcos Colón