Das salas de aula para a ocupação da BR-163: a resistência indígena pela educação no Pará

Estudantes e professores indígenas protestaram sob sol e chuva em rodovia paraense contra Lei nº 10.820/24 e pela exoneração do atual secretário de educação do Pará

Ocupação na BR-163 foi encerrada após três semanas. Foto: Walter Kumaruara / Divulgação.
Ocupação na BR-163 foi encerrada após três semanas. Foto: Walter Kumaruara / Divulgação.

Ocupação na BR-163 foi encerrada após três semanas. Foto: Walter Kumaruara / Divulgação.

O meu povo estuda no Somei, então, quando eu soube da ocupação eu fiquei agoniada. Indignada. A minha mãe, que é pedagoga, ficou com o coração partido quando soube que eu viria para cá [BR-163]. Ela chorou, eu chorei. Mas, eu não vim para ‘me aparecer’, eu vim porque é por uma educação de qualidade que a gente está lutando. Essa lei pode tirar o sonho de muita gente!” 

Aline Cardoso Arapiuns é da Aldeia Anã Arumã, do Território Arapuin, em Santarém. Entre os dias 16 de janeiro e 6 de fevereiro, ela e dezenas de outros indígenas ocuparam a BR-163, no quilômetro 922, perto da cidade de Belterra, em protesto contra a Lei nº 10.820/24, considerada a maior ameaça atual à educação indígena e paraense ao fragilizar a garantia de professores para dar aulas nas aldeias. 

O movimento instalado próximo ao Território Indígena Munduruku Takauara e Bragança, 48 horas após outra parte dos manifestantes ocupar a sede da Secretaria de Estado de Educação (Seduc), em Belém, agora se reuniu aos parentes e, juntos, seguem acampados no prédio da Seduc. Eles reivindicam a revogação da Lei nº 10.820 e exoneração do Secretário de Educação do Estado do Pará, Rossieli Soares.

Aline Arapiun é aluna do Sistema de Organização Modular de Ensino (Some) e está cursando o 2º ano do Ensino Médio. Foi a indignação e o medo de perder seus professores que a fez sair de casa e decidir passar dias no sol e na chuva lutando por uma educação melhor para ela e para todos os paraenses. Ela lembra que a irmã mais nova vai começar a cursar o Ensino Médio este ano e teme que a experiência educacional da caçula seja afetada pelas mudanças na política de educação no Pará.

A aluna também lembra que o ensino remoto foi “experimentado” pelos povos indígenas durante a Pandemia da Covid-19. Na ocasião, o ensino à distância era a única opção para assegurar a saúde e a educação das pessoas, devido aos riscos de infecção. Mas privilegiar o ensino televisionado em detrimento do presencial em comunidades tradicionais e aldeias agora é um grave erro.

A pandemia teve afetou os alunos pelo ensino remoto. Hoje [há quem esteja] com aprendizado lento e com dificuldade em tudo. A educação presencial é muito importante porque a gente precisa dialogar com os nossos professores. A gente precisa tirar as nossas dúvidas. E quando a gente descobriu sobre essa Lei eu fiquei, sinceramente, indignada porque é uma coisa que é muito injusta”.

É o futuro que está em jogo

Liberdade para sonhar com a Universidade

Jovens estudantes do Somei fazem parte da Ocupação na BR-163. Foto Leige Costa / Amazônia Latitude.

Jovens estudantes do Somei fizeram parte da Ocupação na BR-163. Foto Liege Costa / Amazônia Latitude.

Outro jovem indígena que esteve por três semanas na ocupação da BR-163 é João Vittor Cardoso. Mais conhecido como Vitinho Tupinambá, ele vive na Aldeia Muratuba, na região do Tapajós e conta que o Sistema Modular de Ensino Indígena (Somei) leva mais que professores para as comunidades. Traz janelas e vislumbres de um futuro que começa, para muitos, na universidade.

“Durante o meu tempo, que eu estava estudando pelo Sistema, tive muitos conhecimentos, muitos aprendizados, os professores me ensinavam como que é a porta da universidade, eles me ensinavam como que a gente deve atuar dentro da universidade, então esse sistema é importante para mim e para os moradores da minha Aldeia”.

Vitinho Tupinambá passou entre os primeiros lugares do curso de Informática da Educação na seleção da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e já está contando os dias para que seu sonho comece a virar realidade pelo poder da educação. 

A minha área que escolhi foi informática educacional, que tem muita importância na minha região porque temos muita precariedade nessa área de informática. Então ficar entre os primeiros foi uma coisa muito incentivadora. E estar ingressando hoje numa universidade é algo muito importante. Como dizem os nossos mais velhos, estamos ocupando espaços que eles conquistaram para nós”.

Estar perto de começar a viver essa nova fase fortaleceu a decisão de estar na ocupação da BR-163 contra a Lei nº 10.820 e pela exoneração do atual secretário de educação paraense.

Foi uma coisa que deixou a gente caído mesmo, porque é algo que entristece muito. É muito importante ter professores dentro da sala de aula, porque é algo ali que é único, as experiências que a gente vai trocando entre os alunos e professores. É importante também estar nesse manifesto hoje com os parentes passando a força e a ancestralidade do nosso povo. Tupã vai estar nos protegendo e vai dar tudo certo. Essa revogação vai sair e a exoneração do secretário também vai acontecer”.

Gerações na luta em ocupação da BR-163

Lucas Tupinambá, vice-coordenador do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA), foi aluno do Somei e tem certeza de que a ocupação da BR-163 e da sede da Seduc, em Belém, é uma luta importante e histórica e, por isso, é vital que esta experiência esteja sendo compartilhada desde já com as futuras gerações de seu povo. 

Para a educação do Pará, o que nós estamos vivendo aqui vai ser uma coisa que a gente vai falar para os nossos filhos e para os nossos netos. O que nós estamos presenciando a cada dia, cada impasse e manobra que o governo tenta dar e [a forma como] a gente está conseguindo reagir sobre essas manobras, mesmo estando aqui…Não é fácil para ocupar uma BR, um rodovia, é bom que se diga, a gente, como ser humano, a gente sente. Porém vamos continuar na luta o tempo que for necessário até que essa lei seja revogada”.

Ele lembra que a educação à distância no Pará enfrenta outro desafio que vai além de se adaptar ao multiculturalismo e à distância: A falta de infraestrutura nas comunidades tradicionais, inclusive nas Aldeias. 

“Muitas aldeias não têm energia elétrica, não têm internet. E muito menos espaço para ter essa vídeo aula. A gente sabe muito bem da dificuldade que será se isso ocorrer. Tem etnias aqui que entendem só 10% do que se fala em Português. Professores em sala de aula já têm dificuldades, imagina o profissional que está em Belém para praticar este tipo de ensino? Ensino que é inconstitucional, por não respeitar os acordos internacionais de consulta e por não conversar com as lideranças [antes de ser implantado]”. 

Durante Ocupação da BR-163 apenas ambulâncias e veículos ligados à emegências têm permissão de passar durante os bloqueiros. Foto: Walter Kumaruara.

Durante Ocupação da BR-163 apenas ambulâncias e veículos ligados à emegências têm permissão de passar durante os bloqueiros. Foto: Walter Kumaruara/Divulgação.

No estado paraense, o Sistema de Organização Modular de Ensino (SOME) e o Sistema de Organização Modular de Ensino Indígena (SOMEI), foram criados há mais de 40 anos para levar o ensino médio às aldeias e comunidades ribeirinhas da Amazônia, respeitando suas especificidades culturais e geográficas. 

Atualmente, são 45 professores indígenas atuando em 47 aldeias da região do Baixo Tapajós, em municípios como Santarém, Belterra e Aveiro.

O professor George Borari, do povo Borari, de Alter do Chão, em Santarém, é um deles. O docente que é especialista na Língua Nheengatu participou do protesto em Belém na ocupação da sede da Secretaria de Estado de Educação (Seduc), foi até a ocupação da BR-163 e, agora, está de volta à capital paraense. 

George Borari explica que a chamada “Nova Lei do magistério” viola direitos trabalhistas de professores e afeta a carga horária e até mesmo tem efeitos na futura aposentadoria dos educadores. 

“A gente quer a revogação da Lei para que os direitos possam voltar e a gente possa negociar uma lei específica para a educação escolar indígena, uma vez que a maioria dos direitos, nós como professores, como profissionais de educação, [sabemos que estes direitos] são totalmente pulverizados no sentido de a gente vai perder muito [se a lei não for revogada]”.

A ocupação da BR-163 ocorreu dentro do Território Indígena Munduruku Takauara e Bragança, onde uma aula sobre como lutar e proteger a educação e, com ela, cuidar do futuro foi ministrada todos os dias durante três semanas.

Reunindo etnias e gerações, os indígenas compartilharam os desafios e ganhos que o Somei trouxe e também o que precisa melhorar para que a educação seja um dos pilares a favor da perpetuação dos povos indígenas do Pará e, em cada um deles, um salto na proteção da maior floresta tropical do mundo. 

O especialista na Língua Nheengatu reforça que os saberes ancestrais dos povos originários e sua forma de ver o mundo, expressa por meio de seus idiomas, precisam fazer parte do processo de educação. 

“A gente espera que dentro das aldeias esse ensino funcione valorizando a cultura daquele povo, nós temos uma diversidade muito grande de povos: 14 povos e mais de 100 aldeias [no Baixo Tapajós, onde ocorreu a ocupação da BR-163]. Então essas 100 aldeias precisam que sua cultura, que seus costumes, que sua língua seja valorizada e, através da escola, seja potencializada essa valorização do ensino”.

À espera de dias melhores…

No dia 5 de fevereiro, informações do compromisso assumido pelo Governo do Estado com o movimento de professores, quilombolas e indígenas para a revogação da Lei nº 10.820 chegaram aos ocupantes da BR-163. No dia 6 de fevereiro, eles decidiram sair da rodovia e ir à Belém fortalecer o movimento na capital paraense. 

Com a sabedoria de quem luta por cada avanço [e contra toda tentativa de retrocesso] há mais de 500 anos, todos sabem que a resitência termina apenas quando suas reivindicações forem atendidas. 

Até lá, seguem os rituais, os cantos, as palavras de ordem e as faixas. Segue a mobilização para conversar com todos sobre a importância da educação para cada criança e jovem, especialmente, aqueles que precisam do Somei para sonhar com um futuro melhor para si e para suas comunidades. 

Uma luta que é possível compreender nas palavras e nos olhos lacrimejantes da Aline Arapiuns ao saber que o desafio está mais perto do fim.

“Quando eu soube que possivelmente a lei seria revogada, chorei bastante porque eu saí da minha casa com o objetivo de sair daqui [BR-163] somente quando essa Lei for revogada e quando o secretário for exonerado. Porque a gente sabe que nossa educação vai estar perdida com televisão dentro da sala de aula, vai tirar a nossa liberdade”.

Aline agora está acampada na sede da Seduc, em Belém, onde centenas de indígenas continuam a resistência em prol da educação indígena.

Texto: Daniela Pantoja
Fotografia: Liege Costa e Walter Kumaruara
Edição e revisão: Glauce Monteiro
Montagem de Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

Você pode gostar...

Translate »