Men am-ním: um chamado de Ailton Krenak à escuta ativa e a outros mundos
A Exposição "Ocupação" e os rios da memória e resistência indígena


O líder indígena, ambientalista e pensador Ailton Krenak é homenageado na exposição Ocupação. Foto: Letícia Vieira/Exposição Ocupação.
Men am-ním! Essa expressão da língua krenak resume a essência da exposição “Ocupação”, em cartaz no Itaú Cultural até 23 de novembro, em São Paulo. A mostra celebra as ideias e obras do líder indígena, ambientalista e pensador Ailton Krenak.
Em meio às ideias de Ailton Krenak para adiar o fim do mundo, está a certeza de que elas não se limitam às curvas “rio de boca grande”: o Juruá. Com seus 3.350 km de extensão, o rio é considerado um dos mais sinuosos do mundo, atravessando vastas planícies amazônicas.
Logo na entrada da exposição, o Juruá domina a paisagem com um azul celeste que convida o visitante a navegar pela profundidade de suas águas. No vai e vem das ondas, elas se encontram com a sumaúma e uma infinidade de constelações de gente que dança, canta e se faz ouvir na voz de Krenak, que, com inarredável disposição, denuncia a cegueira da nação brasileira em apagar seus povos originários.
Essa é uma gente que não tem o mesmo pertencimento com o rio que lhes serviu de berço, tampouco é capaz de reconhecê-lo como se fosse um membro da família, como é o Watu, avô de Krenak. Localizado em Minas Gerais, nas serras da Mantiqueira e do Espinhaço, o Watu percorre cerca de 850 km até atingir o Oceano Atlântico, no povoado de Regência (ES). A mostra em homenagem ao neto de Watu traz, além de um mapa com o desenho da região, registros dos Botocudos, povo que vivia à margem esquerda do Rio Doce, no Espírito Santo.

Registros dos Botocudos, povos indígenas que viviam à margem esquerda do Rio Doce, no Espírito Santo. Acervo pessoal de Ailton Krenak e Walter Garbe. Foto: Mara Régia/ Amazônia Latitude.
Em entrevista ao programa Natureza Viva, da Rádio Nacional da Amazônia, quando ocorrida a tragédia de 5 de novembro de 2015 – o rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, que despejou 50 milhões de toneladas de lama e resíduos tóxicos no Rio Doce -, Krenak afirmou que a tabela periódica inteira foi jogada na cabeceira do rio, descendo por uma extensão de mais de 600 quilômetros, arrasando a vida aquática e a fauna em suas margens.
Ele revelou que por um tempo, mesmo que de forma velada, manteve a esperança de que aquele material fosse contido pelas barragens existentes ao longo do seu rio-avô, o Watu, que por anos a fio deu peixes e saúde ao seu povo. “Mas, infelizmente, a derrama causou um impacto muito grande no cotidiano de nossa aldeia, e as pessoas ficaram abismadas, em estado de choque, assim como o pessoal de Mariana, que foi soterrado pela lama. E mesmo os sobreviventes permanecem em choque até hoje. Por isso, reverenciamos o Watu, que é um rio sagrado para o povo Krenak! E quando eu canto para ele, eu o vejo fluindo de novo como se o pesadelo tivesse chegado ao fim”.
Um pesadelo que, em 1998, inspirou uma pintura durante sua viagem ao Japão, após tomar conhecimento da pesca predatória nos oceanos. Diante da obra, é possível ouvir o próprio Krenak falar sobre seu estarrecimento, traduzido nas cores de Pesadelo Marinho (1998).

Pintura feita após uma viagem ao Japão, quando Ailton Krenak tomou conhecimento da situação local da pesca predatória nos oceanos. Acervo de Maíra Pappiani Lacerda. Foto: Mara Régia/Amazônia Latitude.
Do pesadelo ao sonho, Festa na Floresta! Obra criada por Ailton Krenak para a capa de um livro que retrata a memória de Chico Mendes e a história coletiva do movimento de resistência dos seringueiros. (Acervo de Maíra Pappiani Lacerda)
A explosão de cores também traduz o sentimento de Krenak diante do que disse ao repórter Guilherme Strozi no dia da abertura da exposição, em 4 de setembro.
“Eu fiquei homenageadíssimo, porque eles decidiram trazer uma expressão na língua krenak, que é para falar sobre a ideia de Men am-ním, que é o outro nome dessa Ocupação Ailton Krenak, que é a ideia não de ocupar um lugar, um espaço físico, mas é a ideia de trazer conteúdos, trazer ideias.
E eu fiquei muito honrado com esse privilégio de ter acrescentado ao nome tradicional dessa mostra de trabalhos que reúne diferentes materiais feitos por mim ao longo, sei lá, de 40, 50 anos, que qualquer brasileiro se sentiria homenageado. Então, imagina, na abertura esse espaço estava lotado e foi uma amostragem do que a gente vai ter nos próximos meses com muita escola, muita gente visitando.
Quer dizer, vai pôr em contato com um público muito relevante daqui dessa região do nosso país, mas também de gente que vem de outros estados para cá, uma mostra do pensamento que me inspirou até agora a acreditar que os povos indígenas têm as suas profundas raízes aqui nesse nosso continente, e que precisam ser respeitados na sua singularidade, na diversidade linguística, na perspectiva de mundo, porque, como são muitos povos, nós chegamos a uma estimativa de que sejam 305 etnias, que ainda tem gente que pode ser convocada se tiver que se representar em algum contexto, mesmo que sejam 3 pessoas, 10 pessoas, 30 pessoas, mas tem também gente como os Yanomami, que são 30 mil, os Tikuna, 40 mil, os Guarani aqui dessa região sudeste, pegando até a fronteira com a Bolívia, 40, 60 mil pessoas. Então, a gente tem pequenas tribos de 60 pessoas e algumas grandonas de 60 mil. É a diversidade de contextos, de história e também de perspectiva que esses povos apresentam.
Eu acredito que o meu trabalho é um reclamo constante de olhar para a singularidade desses povos, não tratar como genéricos. Infelizmente, durante um bom período da história do Brasil, esses povos foram tratados como os índios, genericamente. A maioria dos jovens da geração dos meus filhos, meus netos, eles reclamam que sejam tratados nas suas especificidades, nas suas identidades: Krenak , Xavante , Pataxó, Cariri, Tupi,Guarani, sou Carajá, Pankararu, Carijó, Tupinajé, Potiguar, Caeté, Ful-ni-o, Tupinambá… toda essa constelação de povos que eu costumo dizer que eles ainda cantam e dançam pra suspender o céu. Eles cogitam outros mundos. Não esse mundo estragado que nós estamos tendo que disputar ele agora à base de mísseis , mas um mundo próspero e cheio de possibilidades para os não humanos e também os humanos, porque nós chegamos ao século XXI com uma vocação à extinção. Aumentaram tanto a lista de espécies ameaçadas por nós que vão ter que acrescentar a essa lista o próprio ser humano. Parece até um poema de Drummond . Drummond é quem convoca esse humano a colocar o pé no chão! E por o pé no seu próprio chão, que é o chão do seu coração”.

Para Ailton Krenak, “a arte exige coragem. É o único lugar de descanso do espírito”. Imagem da Exposição Ocupação. Foto: Mara Régia/Amazônia Latitude.
E é justamente a obra O homem; as viagens, de Carlos Drummond de Andrade, que descreve a jornada de “pôr o pé no chão do seu coração” como uma missão interna e fundamental do ser humano. Uma ação que tem intrínseca relação com a OCUPAÇÃO Ailton Krenak, que, como Drummond, nos chama a empreender a difícil e perigosa viagem para dentro de nós mesmos!
Ouçamos o chamado de Krenak com nossos corações, na certeza de que sua voz é um convite que nasce da terra e chega ao nosso tempo como uma inspiração à escuta ativa. Ouvi-lo é mais urgente do que nunca.
Mara Régia é publicitária e jornalista, baseada em Brasília, que há mais de 40 anos dialoga com comunidades da Amazônia por meio de reportagens radiofônicas e oficinas sobre gênero, ambiente e sociedade. Vencedora por duas vezes do Prêmio Chico Mendes de Meio Ambiente.
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón