Olho d’Água: Ailton Krenak, o indígena imortal
Filósofo, poeta e ambientalista toma posse da cadeira nº 5 e abre nova frente de diversidade na Academia Brasileira de Letras
Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude
Em setembro de 1987, Ailton Krenak fez história. A cena aconteceu na tribuna da Assembleia Nacional Constituinte, onde discursavam algumas das pessoas mais poderosas do Brasil. Quem ocupava aquele espaço costumava defender projetos, ideais ou interesses pessoais, com o objetivo de influenciar na redação da Constituição Federal — que seria promulgada no ano seguinte.
Mas naquele dia 4 de setembro de 1987, as câmeras registraram um rosto diferente do que costumavam registrar, e os microfones captaram uma voz que não soava como a dos homens brancos que dominavam a tribuna da Assembleia.
Naquele dia, Ailton Krenak ocupou um lugar simbólico. Ele mostrou que os diversos povos indígenas brasileiros estavam lá, e que eles exigiam estar também na nova Constituição.
Esse processo de luta de interesses, que tem se manifestado extremamente aéticos. E eu espero não agredir, com a minha manifestação, o protocolo desta casa.
Conforme ia discursando, Ailton Krenak pintava, sem pressa, o próprio rosto com uma tinta escura e espessa. Ele tinha 33 anos. Ao final do discurso, a face e as mãos pretas contrastavam com o terno e a camisa brancos que ele usava. E seu discurso contrastava, claro, com o pensamento branco que predominava nos debates da Constituinte.
Os senhores não poderão ficar omissos. Os senhores não terão como ficar alheios a mais a essa agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância do que significa ser um povo indígena. Povo indígena tem um jeito de pensar, tem um jeito de viver, tem condições fundamentais para sua existência e para a manifestação da sua tradição, da sua vida, da sua cultura, que não coloca em risco e nunca colocaram a existência, sequer, dos animais que vivem ao redor das áreas indígenas, quanto mais de outros seres humanos.
Nesta sexta-feira, 5 de abril de 2024, Ailton Krenak volta a subir numa tribuna e a ocupar um lugar simbólico. Neste dia, com 70 anos, Ailton Krenak toma posse na Academia Brasileira de Letras e se torna, oficialmente, o primeiro indígena a ocupar uma cadeira na instituição que existe há mais de 120 anos.
A eleição e posse do Krenak têm um significado imenso na Academia Brasileira de Letras e para o Brasil também. Eu digo na Academia Brasileira de Letras porque ele é o primeiro indígena que entra na Academia. Academia essa que ainda, como a sociedade brasileira, é muito marcada pelo predomínio branco e masculino.
Essa é Lilia Schwartz, antropóloga e historiadora, que foi eleita em março de 2024 para ocupar a cadeira número 9 da Academia.
Durante muito tempo, a branquitude se escondeu na ideia de que a universalidade era só ocidental e branca. E agora nós vemos que a universalidade tem a ver com ser cosmopolita, no sentido de se alterar em função das relações que nós estabelecemos com os outros e com os nossos outros. Então eu acho que Krenak é o outro do outro, o outro da outra. E ele vai dar um nó na Academia, assim como tem dado um nó no Brasil também.
Para homenagear o ambientalista, poeta e filósofo, que agora é o imortal da cadeira número 5 da ABL, a Amazônia Latitude ouviu acadêmicos, escritores, amigos e parceiros de luta. O depoimento de cada uma dessas pessoas ajuda a entender a grandeza de Ailton Krenak e por que sua obra foi reconhecida pela Academia Brasileira de Letras.
Este é o Olho d’Água, podcast produzido pela Amazônia Latitude e que propõe um mergulho nos assuntos profundos da maior floresta do mundo.
Ouça abaixo o terceiro episódio completo:
Ailton Alves Lacerda Krenak nasceu em Itabirinha, Minas Gerais, na região do Vale do Rio Doce. É um indígena do povo Krenak. Ainda adolescente, morou no Paraná, onde trabalhou como produtor gráfico e jornalista.
Desde jovem, abraçou a militância política. Ele participou da fundação da União das Nações Indígenas nos anos 70, organização de alcance nacional que batia de frente com a ditadura.
Foi representando essa organização que Ailton Krenak fez o histórico discurso na Assembleia Constituinte. Sua intervenção na tribuna é mesmo muito marcante, como destaca a antropóloga Marina Kahn, vice-presidente do Instituto Socioambiental (ISA).
Falar desse Ailton Krenak, é difícil saber por onde a gente começa. Logo ele que vive abrindo frentes. Mas, enfim, correndo risco de generalizar e de não ser muito original, eu creio que todas as pessoas da minha geração — leia-se metade do século passado para cá — não consegue dissociar o Ailton Krenak daquela imagem no Congresso, passando o recado para os constituintes que queriam derrubar o Capítulo dos Índios que constava da redação original do projeto de nova Constituição para o Brasil. O Ailton estava lá, impecável, de gravata e palito branquíssimo, mostrando sua cara a escancarar verdades. Verdades de pessoa indígena, que todos ali sentados na frente dele queriam acreditar que nem existissem mais. Não existiam mais esses índios. De lá para cá, passaram-se todos esses anos.
E agora meu recado é para quem não viu a cena, ou não lembra da cena, ou quem não associa aquela pessoa ao Ailton de hoje. Para os jovens que sabem quem é o Ailton Krenak, que está no YouTube, que escreve livros, que desafia as ideias de todo mundo com suas ponderações sempre atualizadas. Essas pessoas provavelmente devem achar muito estranho, muito anacrônico, um Ailton de fardão na Academia Brasileira de Letras. Devem ter até um pouco de censura. Pois é, mas é o mesmo Ailton impecável que está agora, de fardão, na Academia Brasileira de Letras, a reiterar sua lucidez de sempre. Aquela lucidez é a lucidez de hoje. E com sua galhardia impecável, ele vem para nos alertar mais uma vez que o Brasil Tupinambá pode mostrar sua cara de Brasil Krenak. Viva Ailton Krenak. Parabéns Ailton Krenak!
Krenak é conhecido não apenas pelo ativismo político, mas também por sua produção literária, que o levou a se tornar um imortal da Academia.
Entre suas principais obras está Ideias para Adiar o Fim do Mundo, publicado em 2019 pela Companhia das Letras — um best-seller com mais de 50 mil cópias vendidas e traduzido para diversos idiomas. Nesse livro, Krenak trata de questões para a sobrevivência do planeta, como a relação entre o homem e a natureza, os impactos do desenvolvimento desenfreado e a urgência de se repensar o nosso modo de vida.
Outros livros de destaque são A Vida Não É Útil, O Amanhã Não Está à Venda e Um Rio, Um Pássaro.
A obra literária de Ailton Krenak tem, acima de tudo, um tom de alerta para a humanidade, que insiste em caminhar para a autodestruição. Como ele diz em A Vida Não É Útil: “Estamos a tal ponto dopados por essa realidade nefasta de consumo e entretenimento que nos desconectamos do organismo vivo da Terra”.
A gente só existe porque a Terra deixa a gente viver. Ela dá vida pra gente. Não tem outra coisa que dá vida. É por isso que a gente chama ela de Mãe Terra.
Esse trecho é do documentário Pisar Suavemente na Terra, dirigido por Marcos Colón. No filme, a voz e as reflexões de Ailton Krenak conduzem a narrativa e conectam as histórias de três lideranças indígenas da Amazônia que lutam para sobreviver no mundo sem destruí-lo.
Uma dessas lideranças é José Pepe Manuyama, indígena Kukama, do Peru, que lida com a contaminação do rio Nanay pelo garimpo e pelo petróleo. Ele fez questão de enviar um áudio parabenizando nosso novo imortal.
A justiça cultural. Mais vale tarde do que nunca. Em momentos em que essa ideia equivocada da história de que o mundo ocidental era superior aos nossos mundos originários. Em momentos em que precisamente estamos a ponto de um colapso climático mundial, quando estamos sempre em perigo de guerras nucleares, não sei se cabe a dúvida de que essa forma de viver, o progresso em si, traz bem-estar à humanidade. E precisamente nossas visões indígenas valorizam uma forma de viver simples, que comporta o futuro que precisamos.
O diretor do filme Pisar Suavemente na Terra e fundador da Amazônia Latitude, Marcos Colón, também mandou seu recado.
A chegada do Krenak na ABL provoca muitas rupturas, e talvez a mais significativa delas seja com a do colonialismo do saber. Nasce nesse momento um novo sopro, talvez, na vida da intelectualidade brasileira, das elites, porque o Krenak, se torna uma referência que o Brasil tanto devia à sabedoria dos povos tradicionais. Seja triste, mas as nossas bibliotecas, escolas públicas, nosso ensino, tem uma hegemonia de determinadas línguas, uma hegemonia de lugares de enunciação, e isso forjou uma colonialidade do saber.
A gente sabe a parte dos outros, não da gente mesmo, da cultura dos povos originários, das raízes culturais, dos saberes ancestrais, ou mesmo daqueles que estão aqui, próximos da gente. Há uma mudança de paradigma, e o Krenak representa essa mudança. O Krenak é floresta, e floresta é papel. Ele é um totem que chega, inclusive, para dar voz a essas comunidades por tanto tempo silenciadas. Então eu espero que, quem sabe agora, com a chegada do Krenak, não só os imortais da Academia, mas o mundo comece a pisar suavemente na terra, como ele mesmo declara no filme. Que todos nós possamos aprender dessa sabedoria ancestral do Ailton Krenak, e com ele, juntos, possamos pisar suavemente na terra.
Apesar de ser um grande escritor, Ailton Krenak não tem o hábito da escrita. Seguindo a tradição indígena, seu conhecimento é transmitido principalmente pela oralidade. A maior parte de sua obra é baseada em transcrições de discursos, conversas e entrevistas.
Isso reforça a importância da nomeação de Krenak para a Academia, como destaca Adriana Ramos, especialista em políticas ambientais e coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA.
Já não era sem tempo a Academia Brasileira de Letras ter um membro indígena de forma a representar a diversidade que conforma nossa sociedade e contribuir para essa tão necessária troca de sistemas de conhecimento. Krenak tem sido um autor fundamental para apresentar uma cosmovisão indígena numa perspectiva de olhar o mundo e o futuro pela ótica de povos que estão aí há milênios e que já passaram por tanta coisa, para ajudar a inspirar nossa sociedade que está passando por várias crises ao mesmo tempo e que necessita de um olhar criativo, diverso, amplo para esse enfrentamento. A obra dele tem aberto esses caminhos para nossa sociedade aprender com os povos indígenas e poder refletir melhor sobre o futuro.
A nomeação de Ailton Krenak para ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras é um marco na representatividade indígena na cultura brasileira. Ela é a conquista de um espaço que abre lugar para que a voz dos povos originários seja ouvida.
Eu sou João Paulo Tukano, do povo Yepamahsã. Quero manifestar nossa alegria e celebrar a entrada do Ailton Krenak para a Academia Brasileira de Letras. Ailton Krenak, para nós, povos indígenas, representa nossos conhecimentos, nossas filosofias, nossos pensamentos e nossa luta. Assim, Krenak, lhe desejo muita paz, muita saúde e muito sucesso.
Produção e direção do podcast: Marcos Colón
Roteiro, locução e edição sonora: Filipe Andretta
Revisão de texto: Isabella Galante
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas