Desintrusão como política de vida: a luta pela permanência em Terras Indígenas
Tragédia Guarani Kaiowá expõe a urgência da proteção territorial enquanto líderes e autoridades reunidos na COP30 debatem os desafios para proteger territórios, vidas e o futuro da floresta.

Enquanto líderes e autoridades debatiam a proteção territorial na COP30, o luto pela morte de Vicente Fernandes Vilhalva (Guarani Kaiowá)
reforçava a urgência de uma política de desintrusão permanente. Imagem: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.
No domingo, 16, enquanto a Cúpula dos Povos celebrava seu encerramento, o Mato Grosso do Sul assistia a mais um capítulo trágico da violência contra povos originários. Cerca de vinte homens armados invadiram a Terra Indígena Guarani Kaiowá, efetuaram disparos, destruíram barracos e deixaram quatro feridos e um morto. Vicente Fernandes Vilhalva, de 36 anos, foi atingido na cabeça e morreu ali mesmo, na terra que lhe pertencia por direito. A roça que plantava para sustentar a mulher e os dois filhos fica órfã.
No dia seguinte, 17, enquanto protestos expressavam a revolta pela morte de Vicente, no Pavilhão Brasil da Zona Azul da COP30 acontecia o painel já previamente agendado para discutir “Proteção das terras indígenas e operações de desintrusão e governança territorial: avanços, desafios e interfaces com a crise climática”.
Estiveram presentes Joenia Wapichana, presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI); Marcos Kaingang, secretário nacional de Direitos Territoriais do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) do Brasil; Janete Carvalho, diretora de Proteção Territorial da FUNAI; Patkore Kayapó, liderança indígena e presidente da Associação Floresta Protegida; e Marcela Ulhoa, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Reunidos para tratar exatamente do tema que havia levado milhares de indígenas às ruas clamando por proteção e justiça.
A área dos povos Kaiowá Guarani permanece em processo de demarcação e, desde outubro deste ano, também em desintrusão. Só em novembro, já sofreu outros três ataques semelhantes. A presença de invasores tem causas bem conhecidas e interligadas: expansão do garimpo, desmatamento, pecuária irregular e grilagem. Essas práticas não só geram violência direta contra comunidades, como no assassinato de Vicente, mas também contaminam rios com mercúrio e degradam ecossistemas inteiros, alimentando ciclos de pobreza e conflito que perpetuam a atração e o retorno de novos invasores.
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Dados de organizações indigenistas reforçam essa gravidade. O relatório mais recente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) confirma que a violência contra os povos indígenas se intensificou em todas as regiões do país ao longo de 2024. Em apenas um ano, foram registrados 1.241 casos de violência contra o patrimônio indígena, dos quais 230 envolveram invasões, exploração ilegal de recursos e outros danos, além de 154 conflitos fundiários em 114 Terras Indígenas de 19 estados. Cerca de 61% dessas invasões ocorreram em áreas já regularizadas.
Os números também mostram que terras em processo de retomada ou com demarcação pendente estão ainda mais expostas: dois terços dos territórios que registraram conflitos em 2024 não são regularizados. Essa conjuntura, somada ao incentivo à exploração irregular durante o governo anterior, alimenta o ciclo de violência que hoje recai sobre os territórios.
Desintrusão e proteção territorial
Nesse cenário, operações de desintrusão tornaram-se uma resposta urgente do Estado brasileiro. Desintrusão é o processo oficial de retirada de invasores de uma Terra Indígena para devolver a posse plena aos povos originários. As ações são planejadas e executadas por uma força-tarefa que costuma envolver FUNAI, Ministério dos Povos Indígenas, Polícia Federal, Força Nacional, IBAMA e, em alguns casos, as Forças Armadas.
Durante o painel no Pavilhão Brasil, Marcos Kaingang explicou que “a grande missão é entregar, através de uma operação, a posse da terra indígena de volta aos povos indígenas, retirando todos os invasores”. Ele alertou, porém, que “não é só chegar e fazer uma operação”, descrevendo o planejamento conjunto entre órgãos federais e lideranças indígenas.
Destacou, ainda, que o país já chegou à 12ª terra indígena com operações de retirada de invasores, muitas delas áreas extensas e ambientalmente estratégicas que exigem atuação contínua. No entanto, Janete Carvalho alertou que, apesar das ações de fiscalização, “o grande desafio é manter esses riscos [de invasão] baixos e uma posse plena dos povos indígenas. Porque todos os dias esses invasores querem retornar”.

Janete Carvalho, diretora de Proteção Territorial da FUNAI, destaca o desafio de “manter esses riscos [de invasão] baixos e uma posse plena dos povos indígenas. Porque todos os dias esses invasores querem retornar”. Foto: Douglas Pingituro/MMA.
A Funai, desde 2007, tem tentado demarcar as terras indígenas e tem sido impedida por uma série de territórios. Desde judiciais, até falta de orçamento, falta de equipe. Enfim, a gente está contornando tudo isso. Mas há uma resistência política e legislativa e, muitas vezes, judiciária muito grande na continuidade da demarcação.”
A parte mais difícil
Para serem efetivas, as desintrusões exigem planejamento logístico e jurídico, acompanhamento permanente e uma estratégia de longo prazo que envolva tanto a retirada dos invasores quanto medidas para impedir seu retorno. Do contrário, a operação vira apenas um recuo temporário do conflito. Como apontam os painelistas, isso passa por integrar ações de fiscalização com políticas de fortalecimento das organizações indígenas e investimento em infraestrutura de monitoramento e proteção.
Marcos sublinhou que existem casos em que a retirada é apenas o começo. A Terra Indígena Yanomami, por exemplo, segue sendo um desafio gigantesco: “A gente nunca terminou as operações, começamos em 2023 e até hoje tem operação lá nessa TI, permanente. E nós vamos continuar enquanto o garimpo continuar ali também. Porque é uma TI de 9 bilhões de hectares, maior que Portugal. O acesso só é meio fluvial e aéreo.” Trata-se de um território onde a desintrusão se torna uma missão incessante.
Ao mesmo tempo, há fatos que mostram que a combinação de desintrusão, apoio institucional e protagonismo indígena pode gerar resultados concretos. Janete citou a Apyterewa como caso emblemático:
A Terra Indígena Apyterewa, em 2022, era a TI mais desmatada do Brasil. Em 2024, a gente praticamente zerou o desmatamento, porque a terra foi devolvida aos Abaeté Parakanã. Falaram que não íamos conseguir, que o governo brasileiro não ia fazer isso e que a terra indígena ia ser diminuída. E, com a força tanto dos Parakanã e com essa articulação da FUNAI, MPI e os demais órgãos do estado brasileiro, que são parceiros, a Terra Indígena tá de novo sob a posse dos Parakanã. E a gente está trabalhando muito para que isso continue.”
O exemplo da TI Kayapó, também mencionado por Janete, reforça que a mobilização comunitária e a força das organizações internas são cruciais para manter a integridade territorial. Afinal, como Janete ressaltou: “porque sejamos muito sinceros, tirar os invasores não é a parte mais difícil. A parte mais difícil é manter a terra indígena íntegra e na posse plena dos indígenas”.
Esses desafios estão ligados a limitações estruturais da própria Funai, que lida com: 61 sentenças pendentes para execução de desintrusão ou fiscalização; apenas 7 servidores na Coordenação-Geral de Fiscalização; infraestrutura tecnológica insuficiente; e a necessidade urgente de implementar plenamente o poder de polícia da Funai, processo que já está em regulamentação. Esses pontos, citados no painel, evidenciam como o subfinanciamento e a falta de estrutura dificultam a continuidade das ações.

Durante debate na COP30, Joenia Wapichana, presidenta da FUNAI, defendeu que operações de desintrusão são, antes de tudo, “uma questão de humanidade”. Foto: Douglas Pingituro/MMA.
Uma questão de humanidade
No entanto, mesmo com as dificuldades, o esforço precisa ser contínuo. Porque uma terra indígena protegida não garante apenas a segurança de um povo e sua cultura, mas também do meio ambiente. Territórios indígenas atuam como barreiras contra o desmatamento, preservam estoques de carbono e mantêm bacias hidrográficas e biodiversidade. Proteger essas terras é, portanto, uma agenda integrada de segurança pública, saúde pública e preservação ambiental, que demanda cooperação técnica e diplomática com países vizinhos para frear fluxos transnacionais de garimpo, madeireiros e outras redes ilícitas.
Para a presidenta da FUNAI, operações de desintrusão são, antes de tudo, uma defesa da vida. Joenia Wapichana alega que se trata “de uma questão de humanidade”, um processo que exige não apenas retirar invasores, mas garantir que os direitos existentes nas terras sejam respeitados. “É necessário não apenas demarcar, mas principalmente proteger e fazer respeitar os direitos que ali existem”, assegurando “os direitos de ter a floresta em pé mas principalmente proteger a vida de quem protege a floresta em pé, mananciais e o manejo sustentável que já exercem há milhares de anos”, complementa.
Segundo a presidenta, esse trabalho só é possível com participação direta dos povos indígenas, porque “é um processo contínuo: manter a proteção, mas também ampliar a gestão territorial”.
Quando uma desintrusão funciona de fato, a diferença para as comunidades é imediata, como contou Patkore Kayapó. Ele relatou os impactos do garimpo: “Nosso rio estava contaminado, nosso rio estava poluído. Então não tinha como consumir. Então, os parentes tinham que sair da aldeia para caçar, para pegar o peixe no outro rio.” Após a operação, a transformação foi rápida: “O rio voltou limpo. Nossos parentes voltaram a pescar. Ficaram muito felizes. No passado, não tava igual como hoje”, relata.

Para Patkore Kayapó, a mobilização e a força das organizações internas são cruciais para manter a TI íntegra. Foto: Douglas Pingituro/MMA.
Para que esses avanços sejam duradouros, Patkore reforçou a necessidade de fortalecer as organizações indígenas e criar alternativas de renda seguras e sustentáveis: “Projetos comunitários, como turismo comunitário, artesanato, geração de renda… isso é muito importante para todos nós”. Destacou ainda que essas iniciativas são essenciais para evitar que jovens sejam atraídos pelo garimpo ou outras atividades ilícitas devido à falta de oportunidades.
A morte de Vicente Fernandes Vilhalva e os ataques à Terra Indígena Guarani Kaiowá lembram que, enquanto o trabalho não for permanente e integrado, a violência seguirá cobrando vidas. Cada homicídio é um alerta sobre as falhas institucionais e sobre a necessidade de políticas que combinem força de atuação, proteção jurídica e alternativas econômicas para as comunidades. Sem isso, operações pontuais ficam pela metade e as terras voltam à mira dos invasores.
Texto e montagem da página:Alice Palmeira
Arte: Fabrício Vinhas
Revisão: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón
