Conto de Verenilde Pereira: A luz da feira
Conto revela como um episódio súbito na feira evidencia os brilhos e ruínas que convivem entre as vidas à margem

As três meninas, com a maquiagem borrada e o riso aprendido na miséria, assistem
sem surpresa à promessa virar queda, porque já sabem que ali nunca chega milagre nenhum.
Foto: Oswaldo Forte, na Baia do Sol, Mosqueiro, 2 de junho de 2013.
Que luz seria aquela surgindo no início da feira onde quase não cabia mais nenhuma das misérias do mundo? A velha cafetina, com as faces borradas pela espalhafatosa maquiagem, fez a pergunta às três jovens ao seu redor naquele instante em que nada pareceu nublado. De repente havia desaparecido até o cheiro de peixes e frutos apodrecidos que se entranhavam nos corpos das crianças barrigudas que brincavam no barro. Aquela fulguração que surgia no meio da poeira iria passar diante de todos, iria desfilar frente às quitandas – onde também eram exibidos para venda os calçados furados, os objetos roubados ou as roupas maltrapilhas penduradas ao Deus dará.
Como ninguém lhe respondia a velha cafetina gritou seguidamente “o que vem ali”? As meninas, mais doentias que eróticas, com seus rostos sujos de maquiagem barata escorrendo na pele suada responderam: – “é só uma carroça, só uma carroça com uma mulher açoitando um cavalo… velha cega!”. A outra: – “uma carroça caindo aos pedaços, é só isso… nada demais”!.
Sim, ali vinha uma carroça com duas mulheres tão fortes à frente que mal se via o velho sentado lá atrás, na carroceria, enroscado no meio de caixotes e monturos de papelão. As duas mulheres surgiam impetuosas naquele repentino e milagroso desfile que lavava as impurezas dali. O silêncio sufocou o espanto. Até as senhoras austeras que sempre visitavam o lugar com faixas que anunciavam o fim do mundo e gritavam o medo que todos deveriam sentir dos infernos, ficaram paralisadas. Nunca obtiveram tanta atenção naquele lugar como o galopar compassado do cavalo, a cadência que instantaneamente seduzia a todos.
Mas o espetáculo foi imediatamente interrompido com o rinchar desesperado do cavalo caído de lado com a carroça tombada e os braços das duas mulheres em movimentos para o alto. O furor da mais nova, a que conduzia a carroça, parecia aumentar com a humilhação de ter seu corpo jogado no barro movediço. Seus brincos dourados e compridos relampejavam ao lado do animal que seria branco não fosse o pelo encardido e as feridas infeccionadas em muitas partes de seu corpo. O desfile tão esperado virou despojo de um encantamento instantâneo. “Alegria de pobre dura pouco” disse alarmada, surpresa e triste uma mulher que vendia restos de bananas. As três meninas ao redor da velha cafetina, riram, dessa vez desapontadas, risos nervosos de desesperanças.
A mulher que antes açoitava o cavalo com altivez segurava os brincos como se buscasse um amparo no enfeite barato. A cada tentativa de levantar-se, ela insultava o animal com descontrolada raiva como se tivesse sido traída. Já de pé, ainda cambaleante, tentava novamente açoitá-lo. Imediatamente braços erguidos com bíblias nas mãos se aproximaram dela para falar sobre salvação enquanto outros gritavam “dá água pro cavalo sua égua!”. – “o animal está morto de fome”! – “isso é coisa do satanás”!. Apenas o velho que as acompanhava, depois da demora para erguer-se do tombo, se aproximou do animal, alisou seus pelos tão sujos e tocou carinhosamente seus olhos que pareciam pedir clemência. O ancião abraçou a pouca carne do corpo esquelético do cavalo, assoprou sobre ele para espantar em vão as moscas das feridas abertas.
As parcas frutas nas bancas já estavam ainda mais murchas, as velhas e corroídas verduras não dariam sequer para matar a fome do animal que respirava lentamente, já não precisava ser saciado.
A mulher mais comedida que acompanhava a comandante da carroça olhava estupefata e envergonhada a pequena multidão que ria delas e as insultava enquanto ela tentava retirar as sandálias na poça de lama com os enfeites que se desmanchavam feito encantos desfeitos. Ofereciam à plateia a fantasia desnuda, crua e traiçoeira ali estampada. Enfim, as duas se apoiaram enquanto os olhos mornos do cavalo se abriam e fechavam lentamente, denunciando um fim. Também era fraco o olhar do velho recaindo sobre o do próprio animal.
A velha cafetina também tinha o semblante comovido mas, eram insondáveis suas fartas lágrimas. Pareciam tropeçar no caminho do animal que lentamente galopava indo embora.
Verenilde Pereira é jornalista, formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), com mestrado em Comunicação e doutorado em Jornalismo e Sociedade pela Universidade de Brasília (UnB). Indigenista e pioneira do movimento literário afro-indígena brasileiro, ela é filha de mãe negra e de pai sateré mawé, do Amazonas. Sua obra inclui o romance ‘Um Rio Sem Fim’, escrito em 1998 e recentemente reeditado após ser redescoberto em 2022, e a coletânea de contos ‘Não da Maneira Como Aconteceu’, de 2002.
Montagem de página e acabamento: Alice Palmeira
Revisão: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón

Verenilde Pereira