Um breve e enérgico compêndio do cinema amazônico

A pesquisadora, cineasta e jornalista portuguesa Anabela Roque analisa e dialoga com mais de 50 filmes sobre a floresta no livro “Virá que eu vi - Amazónia no Cinema”

“Virá que eu vi – Amazónia no Cinema”: O livro de Anabela Roque analisa mais de 50 filmes que definem o cinema amazônico como um movimento ético e transformador. Arte: Isabela Leite/Amazônia Latitude.
“Virá que eu vi – Amazónia no Cinema”: O livro de Anabela Roque analisa mais de 50 filmes que definem o cinema amazônico como um movimento ético e transformador. Arte: Isabela Leite/Amazônia Latitude.
“Virá que eu vi – Amazónia no Cinema”: O livro de Anabela Roque analisa mais de 50 filmes que definem o cinema amazônico como um movimento ético e transformador. Arte: Isabela Leite/Amazônia Latitude.

“Virá que eu vi – Amazónia no Cinema”: O livro de Anabela Roque analisa mais de 50 filmes que definem o cinema amazônico como
um movimento ético e transformador. Arte: Isabela Leite/Amazônia Latitude.

Desde as filmagens que Silvino Santos (1886-1970), o “Cineasta da Selva”, realizou documentando o ciclo da borracha no Norte do Brasil ainda na primeira década do século 20, já é possível identificar hoje um Cinema Amazônico na produção audiovisual brasileira. Se havia dúvidas, elas se dissipam na leitura do livro Virá que eu vi – Amazónia no Cinema, (Buala e Livraria Tigre de Papel, 2025), que a diretora, pesquisadora e diretora de cinema portuguesa Anabela Roque lançou em outubro em Lisboa, Portugal.

Anabela, que viveu na Espanha e no Brasil, onde se formou pela Academia Internacional de Cinema, no Rio, e realizou filmes como os curtas Piano Forte (2017) e Sempre Verei Cores no Seu Cinza (2018), debruçou-se sobre mais de 50 produções brasileiras que abordam – de maneira direta ou indireta – as questões da floresta, filmes de Txai Suruí a Jorge Bodanzky, de Luiz Bolognesi a Hyjnõ Krahô. Seu livro, além de um inventário precioso das problemáticas da Amazônia (sociais, políticas, ambientais, antropológicas), também dá conta de abarcar teoricamente as linguagens audiovisuais que se desenvolveram ao redor das narrativas dessas problemáticas. Anabela Roque escreve, em Portugal, para o portal Buala.org, e é colaboradora de Amazônia Latitude.

O Cinema Amazônico, no mostruário de Anabela Roque, é feito primordialmente de “filmes que combatem estereótipos, tentam descolonizar o olhar e afirmam um cinema ético, comprometido e transformador”. Não é um cinema de milhões de espectadores, mas de bilhões de responsabilidades. Como, para se compreender o cinema, é preciso também entender os contextos em que ele é produzido, exibido e interpretado, na concepção da autora, Anabela se debruça sobre temas candentes que têm sido abordados na produção mais relevante registrada, especialmente nos últimos 30 anos. E não somente recorrendo a películas de ativismo, mas também a filmes de outras naturezas, como Fitzcarraldo, de Werner Herzog, e Priscila, a Rainha do Deserto, de Stephan Elliott.

"Fitzcarraldo", filme de Werner Herzog. Foto: Divulgação.

“Fitzcarraldo”, filme de Werner Herzog. Foto: Divulgação.

O impacto da evangelização, abordado nos filmes Ex-Pajé (2018), de Luiz Bolognesi, e O Avesso do Céu (2023, de Maurício Dias e Walter Riedweg, se desdobra em uma análise que vai além do domínio das igrejas evangélicas e recorre a um estudioso da Universidade de Coimbra, que identifica “uma correspondência direta entre o princípio religioso-espiritual do xamanismo com o pentecostalismo”. Ambos os sistemas têm apoio em espíritos, praticam curas, têm êxtases, transes e sonhos e alguns povos indígenas são propensos ao messianismo. A similitude simbólica facilita o trabalho de evangelização, não obstante os métodos de violência, para inserir as culturas indígenas num “novo contexto cristão, insalubre e miserável, que de fato beira a loucura”.

“A força indígena feminina foi poucas vezes celebrada de modo tão eloquente e justo como no filme a Flor do Buriti”, assinala Anabela. Assim, o filme de 2024, dirigido por Renée Nader Messora e João Salaviza, abre um capítulo não apenas sobre as possibilidades dos recursos cinematográficos, mas também de interesse antropológico para a compreensão do povo Krahô, formado por cerca de 4 mil indígenas que vivem no Tocantins cercados por madeireiros, fazendeiros e pecuaristas. “A Febre deixou uma sólida contribuição para o cinema brasileiro ao trazer o universo indígena urbano para o centro da narrativa cinematográfica”, escreve ela, sobre o filme de Maya Da-Rin, de 2020.

O livro tem um forte componente crítico, de análise e correlações que vão do rastro deixado por Chico Mendes no Acre às estratégias de luta dos Ashaninka do Peru. Assim, Roger Casement, protagonista do filme Segredos do Putumayo (2020), de Aurélio Michiles, tem suas motivações contestadas no ensaio O que fica por revelar no filme Segredos do Putumayo. “Seria Casement um agente ao serviço dos interesses comerciais britânicos?”, escreve a pesquisadora. “Ambas as viagens – a do Congo e a da Amazônia – tiveram como destino lugares de onde se extraía essa matéria-prima. Depois da sua estadia no Peru, o declínio do boom da borracha precipitou-se nos diversos territórios amazônicos. Esta questão fundamental continua em aberto e a narrativa do filme de Michiles não a contempla”.

A interlocução com Jorge Bodanzky, cujos filmes praticamente inauguram o ativismo do Cinema Amazônico, é de fundamental apoio à organização dos temas e da abordagem da autora. Talvez por isso, a produção de Bodanzky seja analisada até com mais fôlego no volume. É muito interessante a recuperação das influências do longa-metragem Iracema, uma Transa Amazônica (dirigido por Bodanzky e Orlando Senna) e as correlações com o clássico do romantismo literário Iracema, de José de Alencar. No livro, Anabela já analisa o mais recente filme do diretor brasileiro a estrear nas telas, Amazônia, uma nova Minamata?, sobre a tragédia da mineração com uso do mercúrio. “O brilho do ouro obscurece e move toda uma cadeia, cuja base assenta na mão de obra precarizada”.

Poster "Amazônia, A Nova Minamata?", de Jorge Bodanzky. Foto: Divulgação.

Poster “Amazônia, A Nova Minamata?”, de Jorge Bodanzky. Foto: Divulgação.

Com alma de repórter, Anabela Roque muitas vezes registra as circunstâncias em que as exibições dos filmes se dão, e os fatos que derivam desse contato com o espectador. Na Cinemateca Portuguesa, quando foi exibido Flor de Buriti, o pajé Krahô se deslocou para o centro do palco, numa estratégia indígena, e fez uma breve intervenção, mas nela ele lembrou também da centralidade da questão indígena no mundo: “Nós temos que lutar por vocês!”, discursou, lembrando das decorrências do aquecimento global, emergências que colocam o clima de ponta-cabeça em todo o mundo.

A antiga oposição entre povos originários e o “inexorável” avanço do progresso também ganha um capítulo importante, que tem como foco central a construção da Hidrelétrica de Belo Monte. São seis filmes analisados em torno desse tema, esclarecendo para além da análise as consequências diretas de uma obra desse porte no coração preservado da floresta não apenas na paisagem, mas na saúde das populações. “A navegação no rio foi alterada, vastas áreas de floresta inundadas e grandes extensões de água parada passaram a contribuir para a propagação de doenças”, escreve Anabela. “Por outro lado, os ciclos naturais de alagamento, essenciais para a manutenção dos ecossistemas aquáticos, foram interrompidos. As árvores que ficaram submersas apodreceram, deixando de produzir os frutos que alimentam os animais, especialmente os peixes – principal fonte de alimentação das populações ribeirinhas. Com o desaparecimento dos peixes e de outros seres da floresta, acabam também por desaparecer as pessoas”.

A política brasileira atravessa tudo, pela multiplicidade de enfrentamentos que se dão nesse momento no Congresso Nacional, como a Lei do Marco Temporal. “Se aprovada (…), abrirá caminho à mineração, à construção de estradas e outras atividades predatórias, sem autorização nem consulta prévia dos povos indígenas. A medida é considerada um grave retrocesso civilizatório e uma ameaça acrescida ao meio ambiente”. Em tempos de COP30, essa publicação é praticamente um holofote a iluminar o debate sobre os temas da Amazônia – para muito além da sua plasticidade e atratividade “greenwashing”.

Amazonía no cinema

Autora: Anabela Roque

Ano: 2025

Idioma: Português

Editora: Buala

 

 

 

Texto: Jotabê Medeiros
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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