Mulheres na linha de frente: gênero, território e a luta pela justiça climática

Como a emergência climática aprofunda desigualdades e expõe a centralidade das mulheres na resposta ao colapso ambiental

Durante a Cúpula dos Povos, realizada em Belém, o tema ganhou relevância no Eixo 6 – Feminismo popular e resistências das mulheres nos territórios. Foto: @rudegalvenus/Cúpula dos Povos/Divulgação.
Durante a Cúpula dos Povos, realizada em Belém, o tema ganhou relevância no Eixo 6 – Feminismo popular e resistências das mulheres nos territórios. Foto: @rudegalvenus/Cúpula dos Povos/Divulgação.
Durante a Cúpula dos Povos, realizada em Belém, o tema ganhou relevância no Eixo 6 – Feminismo popular e resistências das mulheres nos territórios. Foto: @rudegalvenus/Cúpula dos Povos/Divulgação.

Durante a Cúpula dos Povos, realizada em Belém, o tema ganhou relevância no Eixo 6 –
Feminismo popular e resistências das mulheres nos territórios. Foto: @rudegalvenus/Cúpula dos Povos/Divulgação.

“É a ancestralidade que me faz mulher”. Esse reconhecimento de Melissandra, mulher trans representante da Rede Casa Cura, sintetiza a ligação política, social e espiritual que une mulheres quilombolas, indígenas, ribeirinhas, extrativistas, camponesas e LGBTQIAPN+ na luta pela justiça climática.

A emergência climática, diferentemente do que muitas vezes aparece no debate público, não é apenas a soma de ondas de calor, enchentes recordes, secas extremas ou perda de biodiversidade. Ela se organiza sobre desigualdades pré-existentes.

No mundo, estimativas da ONU Mulheres indicam que entre 309,7 milhões e 422 milhões mulheres e meninas poderão ser afetadas pela crise climática, um número que supera em até 16,1 milhões o total previsto para homens e meninos. Essa disparidade se agrava porque, socialmente responsabilizadas pelo cuidado da casa e da família, mulheres têm mais chances de morrer em desastres naturais e representam cerca de 80% das pessoas deslocadas. O órgão também projeta que, até 2050, 158 milhões podem ser empurradas para a pobreza e 236 milhões podem enfrentar insegurança alimentar em decorrência direta do aquecimento global.

Isso de forma geral, mas dentro do grupo “mulheres”, as desigualdades se aprofundam e se especificam ainda mais. Segundo o sumário executivo “Crise Ambiental e Climática: Mulheres Negras na Linha de Frente” – da Gênero e Número, em parceria com a Oxfam Brasil e o Observatório da Branquitude – 20% das vítimas fatais de inundações no Brasil foram mulheres negras, duas vezes mais que mulheres brancas. Elas, junto a indígenas e periféricas, também sofrem mais impactos desproporcionais em eventos extremos, não só pelo risco físico, mas porque são elas que carregam a sobrecarga de cuidado, buscando água, alimentando famílias, mantendo modos de vida.

Mulheres indígenas são as mais atingidas com a contaminação de rios e florestas por mercúrio, desmatamento e invasões. Mulheres ribeirinhas enfrentam a redução dos peixes por mudanças térmicas e por grandes barragens. E mulheres trans e travestis estão entre as mais afetadas por ondas de calor, inundações e precariedade de moradia, já que a população trans é a mais afetada pela falta de acesso a direitos e serviços públicos, sobretudo em meio a tragédias.

Mulheres do Mundo

Ainda assim, nenhuma dessas estatísticas impede ou desanima a organização e a luta feminina. Eunice Guedes, da Marcha Mundial das Mulheres, relembra que essa mobilização não nasce agora: “Quilombolas, pescadoras, extrativistas, mulheres do mundo. Nossos passos vêm de longe. Esse aqui é mais um passo nosso, mais um momento. E não vai parar. Nós vamos continuar. O que nós conversarmos e dialogarmos aqui, nós vamos levar e dar continuidade no pós-COP”. Suas memórias ressaltam como a luta ambiental é, há décadas, sustentada por mulheres que enfrentam simultaneamente racismo, pobreza, violência e destruição ambiental.

A violência, aliás, é agravada pela crise climática. Um novo relatório da Iniciativa Spotlight das Nações Unidas alerta que as mudanças climáticas podem ser responsáveis, até o final do século, por um em cada dez casos de violência de gênero cometida por parceiros íntimos. A cada aumento de 1°C na temperatura global, estima-se um acréscimo de 4,7% nesses casos. Os dados reforçam que eventos climáticos extremos, deslocamentos, insegurança alimentar e instabilidade econômica ampliam a prevalência e a gravidade da violência de gênero, especialmente em comunidades já vulnerabilizadas.

Dentro do grupo “mulheres”, as desigualdades se aprofundam e se especificam ainda mais. Foto: @rudegalvenus/Cúpula dos Povos/Divulgação.

Dentro do grupo “mulheres”, as desigualdades se aprofundam e se especificam ainda mais. Foto: @rudegalvenus/Cúpula dos Povos/Divulgação.

Esse agravamento de violências estruturais se soma àquelas que emergem de modelos econômicos destrutivos. Nos municípios dominados pelo garimpo ilegal, é comum encontrar uma explosão de casos de exploração sexual de meninas, estupros, tráfico de pessoas, gravidez precoce e contaminação por mercúrio que afeta fetos e mulheres gestantes. Segundo o mapeamento da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam-Brasil) e do Instituto Conviva, há um padrão sistemático de tráfico e exploração de meninas entre 12 e 14 anos, levadas para áreas de garimpo em condições subumanas. Não é coincidência: onde há mineração ilegal, há presença maciça de homens armados, ausência de Estado, fluxo de dinheiro irregular e estruturas de comando violentas que recaem sobre corpos femininos.

É nesse contexto que a pesquisadora e ativista venezuelana Liliana Buitriago, integrante do coletivo Mujeres Cuerpos y Territorios, alerta para a relação intrínseca entre exploração ambiental e opressão de gênero. Para ela, os ecofeminismos revelam que a lógica que devasta florestas, águas e solos é a mesma que controla e explora corpos feminizados:

A exploração da natureza é gêmea a exploração dos corpos feminizados. Exploram a terra porque exploram nossos corpos. Por quê? Porque não estamos desconectadas, querem nos fazer acreditar que estamos desconectadas da terra, que há uma cisão, que há uma fratura e não é verdade. Assim como no oceano há microplásticos, em nossos corpos há microplásticos. Assim como as selvas se queimam, nossos cérebros se queimam com as tecnologias. Assim como lá fora os rios se contaminam, nós por dentro estamos contaminadas e cheias de substâncias químicas, agrotóxicos produzindo cânceres.”

Avaldenira Huni Kuin, da Terra Indígena Igarapé do Caucho, também denuncia impactos diretos. Ela descreve como mulheres indígenas sofrem com inundações, mudanças climáticas repentinas e ameaças territoriais que afetam crianças e comunidades inteiras. Para Avaldenira, participar dos debates climáticos é um marco histórico: “Nós, mulheres indígenas, sofremos no nosso território, nós não participamos. Pela primeira vez, as lideranças mulheres, homens, participam e dizem sobre essa crise climática que está acontecendo neste mundo inteiro, não é só no Brasil, que vem nos afetando”.

Para confirmar a fala de Alvenira, Lourdes Huanca, peruana e representante da Via Campesina, amplia o diagnóstico ao abordar a perseguição política, religiosa e estatal contra mulheres latino-americanas:

No Peru, na América Latina e no mundo somos perseguidas politicamente, somos assediadas politicamente, não somente pelos Estados dos governos machistas, patriarcalistas, sexistas, mas também da sociedade civil, também das igrejas que acreditam em Deus, mas no entanto nos discriminam, atropelam nossos direitos quando se metem a tomar a decisão pelo território do nosso corpo. Como mulheres, como cidadãs, temos a liberdade de tomar a decisão.”

A exclusão também atinge as mulheres trans, muitas vezes ausentes dos debates climáticos. Melissandra expõe essa ausência ao questionar quantas pessoas trans estão presentes nos espaços decisórios: “Quantas travestis vocês veem nesse espaço? Quantas pessoas trans estão aqui presentes para falar sobre diversidade junto conosco?”

Melissandra expõe essa ausência ao questionar quantas pessoas trans estão presentes nos espaços decisórios: “Quantas travestis vocês veem nesse espaço?". Foto:

Melissandra expõe essa ausência ao questionar quantas pessoas trans estão presentes nos espaços decisórios: “Quantas travestis vocês veem nesse espaço?”. Foto: @rudegalvenus/Cúpula dos Povos/Divulgação.

Ela explica que as transições energética e climática não podem ocorrer sem a participação de travestis e transexuais, pois suas vidas já são marcadas por uma “transição” desde cedo, imposta por uma sociedade transfóbica. Para ela, ondas de calor afetam homens trans que usam roupas apertadas para esconder seus corpos por medo da violência, enquanto chuvas intensas deixam travestis sem abrigo seguro. “Quando falamos de chuva, pensamos nas travestis e nas pessoas trans que não têm onde morar”, diz. Segundo ela, por sofrerem mais com precariedade habitacional e violações de direitos, pessoas trans estão na linha de frentee da emergência climática e por isso devem estar no centro das políticas de adaptação e de uma transição verdadeiramente justa.

O Histórico das COPs

Apesar dessas vozes, a presença feminina nas COPs ainda está longe do ideal. Dados da ONU Mulheres mostram que, entre 2012 e 2022, a participação de mulheres nas delegações nacionais subiu de 30% para 35%, mas o número de delegações lideradas por mulheres caiu de 21% para 20%.

Há dados consolidados sobre a participação feminina na COP30, mas o histórico revela uma lenta incorporação do tema: a pauta de gênero só entrou oficialmente nas negociações climáticas em 2001, mesmo o evento existindo desde 1995. Embora 97,5% dos Planos Nacionais de Adaptação citem igualdade de gênero, essa formalidade não tem se convertido em representatividade. Dessa vez, por exemplo, embora mulheres negras componham 28% da população brasileira, apenas Jurema Werneck foi nomeada entre os 22 enviados nacionais, grupo que atua voluntariamente como ponte entre diferentes setores da sociedade e a Presidência da COP30.

No entanto, o Ministério das Mulheres instituiu o Grupo de Trabalho Mulheres na COP30, e a primeira-dama Rosângela Lula da Silva, Janja, foi designada enviada especial para garantir articulação, participação e visibilidade de mulheres nos espaços oficiais. O texto final da Conferência reconheceu o papel central de povos indígenas, comunidades locais, pessoas de ascendência africana, juventudes e mulheres no avanço do Acordo de Paris. Ainda assim, o reconhecimento só ganha força quando acompanhado de transformações estruturais e ainda falta muito.

Durante a Cúpula dos Povos, realizada em Belém, o tema ganhou relevância no Eixo 6 – Feminismo Popular, espaço que reconheceu que a crise climática é expressão de um sistema que explora corpos, territórios, espiritualidades e modos de vida. As mulheres citadas nesta reportagem estiveram reunidas na plenária desse eixo, mas suas reflexões vão muito além do momento: são parte de lutas de longa duração que moldam, há décadas, o pensamento e a prática dos feminismos comunitários, territoriais e populares.

Estimativas da ONU Mulheres indicam que entre 309,7 milhões e 422 milhões mulheres e meninas poderão ser afetadas pela crise climática. Foto: @rudegalvenus/Cúpula dos Povos/Divulgação.

Estimativas da ONU Mulheres indicam que entre 309,7 milhões e 422 milhões mulheres e meninas poderão ser afetadas pela crise climática. Foto: @rudegalvenus/Cúpula dos Povos/Divulgação.

Transição para quem?

A discussão sobre justiça climática também revela que até as soluções propostas para enfrentar a crise podem repetir os mesmos padrões machistas e extrativistas que sustentam o problema. A transição energética — tratada na COP como essencial, mas adiada para um futuro indefinido nos planos concretos — é um dos exemplos mais evidentes. Mesmo apresentada como resposta ao colapso ambiental, ela vem sendo implementada sem enfrentar desigualdades de gênero, raça e território, reproduzindo estruturas que historicamente colocam as mulheres em posições de maior vulnerabilidade.

A educadora popular e ativista Andrea Camurça, do Instituto Terramar, reforça esse diagnóstico ao relacionar a crise climática a um modelo econômico que transforma tudo em mercadoria, inclusive os corpos: “É uma sociedade que nos impõe e que explora a natureza, os bens comuns, os corpos, principalmente os corpos das mulheres, das comunidades tradicionais, dos povos indígenas”. Para ela, o discurso internacional sobre transição energética não corresponde à prática: “Nós estamos na trigésima COP, em que se negocia direitos. Se negocia direitos, e não se tem, de fato, ênfases climáticas”.

Andrea critica o contraste entre a retórica e o que se vê nos territórios: “O que nós estamos vendo é a ampliação de energia como mercadoria, de produção de energia. E a gente vê a perfuração de poços aqui na foz do Amazonas, nós não estamos transitando, deixando de usar petróleo, para usar outras fontes. Não, nós estamos ampliando e agravando, inclusive, essa crise climática. Não pode ser só dessa forma, porque se for, inclusive, a gente sabe que é mais exploração de mineração, mais exploração de água, é mais exploração dos ventos, de toda a natureza e dos territórios”.

A desigualdade também aparece nas estruturas de trabalho criadas ou ampliadas pela transição energética. Segundo o relatório “Empregos Verdes e Sustentáveis no Brasil”, do Dieese, 55% dos postos de trabalho verdes se concentram no Sudeste, reforçando disparidades regionais. Esses empregos pagam salários menores que a média nacional, 90% deles são ocupados por homens e, mesmo dentro desse universo reduzido, as mulheres recebem apenas 89% da remuneração masculina. Ou seja, até os setores considerados fundamentais para a transformação climática já nascem marcados por desigualdades estruturais de gênero, território e classe.

Segundo essas mulheres, os dados e as vivências de muitas outras, a crise climática tem gênero, cor, classe, território e identidade. E as mulheres — cis, trans, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, extrativistas, camponesas, urbanas — seguem denunciando injustiças e propondo caminhos. Afinal, como destacou Melissandra, tudo começa e termina naquilo que sustenta suas lutas: a ancestralidade.

Texto e Montagem da Página: Alice Palmeira
Revisão: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón

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