As muitas Marias de Mara Régia, voz de mulheres amazônidas. E que vai virar árvore

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Radialista completa 40 anos do “Viva Maria”, programa que transformou vidas na região

Na primeira vez em que pôs os pés na Amazônia, duas décadas atrás, a jornalista Eliane Brum só faltou cobrir o rosto com as mãos quando descobriram que ela não sabia quem era Mara Régia. O pior é que todo mundo falava dessa pessoa, como ela contou em de seus textos.

– Mara Régia é da rádio. Nunca ouviu, não? A gente aqui ouve ela tudinho.

Pois a própria Mara, por sinal, nunca tinha ido à Amazônia. De rádio, quase nada. Entrara apenas uma vez em estúdio, quando um amigo disse que estava surgindo uma iniciativa que era “a cara dela”: a Rádio Nacional da Amazônia. Inaugurada em 1977, atinge hoje, potencialmente, 60 milhões de pessoas. Os militares, diz-se, teriam criado a emissora com receio de uma invasão radiofônica cubana na região.

Paranoia deles ou não, Mara assumiu o microfone e levou ao ar, além da capacidade de ouvir, sua formação feminista, nascida da violência doméstica vivida e sentida, e desenvolvida nos tempos de Londres, quando as mulheres iam às ruas para dizer que elas, apenas elas, deveriam decidir seu destino, não o Estado ou a Igreja. Tornou-se voz de infinitas Marias – que, como na canção, misturam dor e alegria.

Encontro das Parteiras

Foi assim que ela criou os programas Natureza Viva (há 26 anos) e, especialmente, o Viva Maria, que completará 40 anos em 14 de setembro. “Lembro de chegar na Amazônia pelas portas do rio Tapajós”, recorda Mara. Para lembrar, então, das parteiras do Amapá. Em 1999, ela ajudou a organizar uma radionovela sobre humanização do parto. Foi no ano seguinte ao do 1º Encontro Internacional das Parteiras da Floresta, em Macapá.

Ela então lembra de Xapuri e de Raimundo Barros, o Raimundão, primo de Chico Mendes. Conta que plantou muitas seringueiras ali. Mais do que isso, diz: “Meu coração (ficou) plantado”. Valeu-se de sua própria experiência de vida para explorar temas ainda incomuns no dia a dia, como sexualidade e saúde reprodutiva. Questões de gênero, raça, etnia. Mara Régia tinha 30 anos quando começou a transmitir o Viva Maria. Ressente-se da distância do estúdio.

“Acredito que com a chegada da vacina eu possa estar nos estúdios da Nacional, porque perde temperatura”, diz a radialista. Sua última viagem à região foi às vésperas da pandemia, ao município de Belterra, no Pará.

Foi por pouco, quase que a pandemia não deixa, mas dali saiu o podcast “A morte dos polinizadores”, em parceria com a jornalista Elizabeth Oliveira. São três episódios que contam a história de João do Mel e o impacto da morte das abelhas — em razão do uso de agrotóxicos — para a população e o ambiente. O projeto foi escolhido uma das histórias do ano pelo Pulitzer Center, a única em português, e pode ser conferido na Amazônia Latitude. Uma história que começou muitos anos antes, quando Mara estava em Lucas do Rio Verde (MT) e viu um avião espalhar um agrotóxico, o paraquat. “Padeci com aquele veneno.”

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Podcast sobre abelhas e biodiversidade falou sobre capacitação na comunidade da Resex Tapajós Arapiuns para produção de mel. Foto: Projeto Saúde e Alegria

Super Marias

Mara também pilota um grupo de WhatsApp chamado de Super Marias. Com as mulheres que ouvem o programa na Nacional. “Como a Eliane Brum diz que sou mulher-ponte, estou me valendo isso”, brinca. “Eu sou rádio-apaixonada.”

Mara Régia Di Perna nasceu no Catete, zona sul, quase centro do Rio de Janeiro. Um bairro onde também nasceram Cartola e Chico Buarque. Mas sua paixão musical era, é, Bethânia. Por acaso, ou não, Maria. Que ela viu várias vezes no Teatro da Praia, em Copacabana. Mara conta, depois de interromper por instantes a conversa para atender uma ligação – de uma parteira. “Eu era absolutamente inebriada por aquela presença de palco. Ninguém sabe dizer poemas como ela.”

Violência doméstica

Boas lembranças. Bethânia. Morar em frente à casa dos avós (“Éramos nove netos. Ela botava a gente num cercadinho…”), ele carpinteiro. A infância no subúrbio da Leopoldina, na rua onde nasceu o bloco Cacique de Ramos e onde Mara testemunhava os preparativos da escola de samba Imperatriz Leopoldinense. O lado alegre, “para pontuar minha vida”, diz, porque em casa a vida também foi infernal, com seu pai.

“Ele a vida inteira dizia que eu nasci numa lata de lixo”, conta, recordando o que chama de “sessões de pancadaria” doméstica, que incluíam sua mãe. “Até na adolescência meu pai tentou me matar duas vezes, com uma barra de ferro. Quando você vive esse sofrer cotidiano, essa angústia, você entende a dimensão do que é a violência doméstica. Tudo isso tem na minha raiz, na minha memória afetiva, um valor muito alto.”

Mara foi dar aulas no bairro de Santa Teresa. Professora primária. Crianças “nos limites da vulnerabilidade doméstica e familiar”, conta. Os primeiros passos na área de jornalismo, como assessora de imprensa de uma companhia de navegação. Mas aqueles momentos tristes marcaram seu caminhos. “Jurei que, ao crescer, eu iria fazer alguma coisa para que as mulheres não apanhassem. Acho que algum anjo disse amém.”

São Paulo, Londres, Brasília

Em São Paulo, sob um “frio desgraçado”, ela viu Raul Seixas e conheceu o futuro marido, com quem foi viver em Londres. Nessa época, o sonho era virar artista plástica. Tempos de mobilização. A Organização das Nações Unidas (ONU) anuncia a Década da Mulher (1976-1985). O parlamento inglês queria mudar a legislação sobre aborto, que era permitido e assistido. Mara participou de sua primeira manifestação de rua, um ato de mulheres em Oxford. “Isso foi impregnando minha vida.”

Ao mesmo tempo em que testemunhou a cena pop da época – como o lançamento de um disco da banda The Animals, no Crystal Palace –, Mara desenvolveu consciência social. Lembra, por exemplo, de ter visto uma fotografia de Vladimir Herzog, morto, durante visita à casa de Annie Frank, em Amsterdã. “Juntando todas essas histórias, isso me fez entender o que é cidadania”, diz. O marido, que trabalhava com planejamento urbano, foi para Brasília, e Mara novamente fez as malas. E foi na capital que aquele amigo, Antônio Augusto, avisou sobre um negócio que era “a cara” dela.

“Nunca cheguei em nenhum lugar na Amazônia antes dela”, escreveu Eliane Brum. “Em todos ela esteve antes, na maioria deles em pessoa. Porque Mara Régia não só envia a voz e atola a alma. Ela também chafurda os pés em toda a Amazônia Legal.”

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O Viva Maria vai completar 40 anos em setembro. Durante todo esse tempo, Mara esteve à frente de projetos, campanhas, oficinas e até radionovelas. Acervo pessoal

Pertencimento

“É onde eu me sinto com pertencimento”, afirma Mara , sobre a Amazônia. “É a minha possibilidade virar árvore na vida.” Assim, as várias risadas expansivas só cedem a certa tristeza quando ela pensa no “sofrimento amazônico” atual. “De repente, é como se fosse perdendo os membros da família. Não tem mais dona Raimunda dos Cocos…”, diz, lembrando da ativista Raimundo Gomes da Silva, que morreu em 2018.

Afinal, foram eventos de todo tipo, o Projeto Proteger (de prevenção contra incêndios florestais), oficinas, campanhas das mais diversas. Contra a exploração de crianças e adolescentes. Para comprar máquinas de fazer perucas, e mutirões que bancassem plásticas para meninas vítimas de escalpelamento.

E, claro, o Viva Maria. Que teve seus percalços. Desentendimentos de origem política, fizeram com que ela fosse transferida para o almoxarifado. Durante um tempo, no governo Collor, afastada, “transmitiu” o programa em cima de um banquinho, na praça. Chegou a passar por outras emissoras.

Perto dos netos

Testemunhando e combatendo violência, mentira e força bruta, Mara Régia foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz, em 2005, por seu trabalho no Viva Maria. Mas agora ela se concentra para celebrar os 40 anos do programa, com a elaboração de um calendário, projeto que tem participação do artista plástico Elifas Andreato. Quer também viver seus 70 anos mais perto dos netos. Lembra que seus filhos (um casal) reclamavam presença mais constante. “Minha mãe tomava conta deles. Quero ter a chance de ver a vida com os olhos da primeira vez.”

E, claro, cuidar e ouvir suas Marias amazônidas. Que, desde o início, reagiam como se já a conhecessem de perto.

— Antes desse programa eu tinha vergonha do meu nome, disse uma delas.

— Você não sabe quantas vezes eu te salvei, contou outra.

Curiosa, Mara quis saber o porquê. A explicação era simples: enquanto lavava roupa, o rádio caía no rio. E a mulher tinha de mergulhar para “salvá-la”.

Vitor Nuzzi é jornalista na Rede Brasil Atual.
Imagem em destaque: Mara Régia durante uma das muitas visitas à Amazônia. Acervo pessoal.

 

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