Da ‘virada ontológica’ ao Tempo de Volta do Nós

Pesca en el pueblo Ashaninka, en el estado de Acre. Bárbara Veiga/Amazônia Latitude
Este texto é uma tradução. Leia o original, em espanhol, aqui.

[RESUMO] Autor indígena responde a uma conferência de Eduardo Viveiros de Castro, “Quem tem medo do lobo ontológico?”, e à ideia da “virada ontológica”. Fala sobre a percepção Añuu do “Tempo do Nós”. Para olhar para trás, ver onde perdemos o caminho e repor em nossos corações as razões e o horizonte ético que nos orientam. E reiniciar a caminhada como Nós.

Carta de um indígena Añuu da Venezuela ao Dr. Eduardo Viveiros de Castro

Em uma conferência relativamente recente, intitulada: “Quem tem medo do lobo ontológico?”, o Doutor Eduardo Viveiros de Castro, argumentando diante de seus pares antropólogos, críticos de sua abordagem sobre a “virada ontológica”, chega a mencionar rapidamente, e por alguma razão decide deixar de lado, o contexto no qual a tal ‘virada’ está sendo reclamada à ciência tal como é.

Uma realidade na qual a severa ameaça dos efeitos do chamado período Antropoceno ou Capitaloceno, como chamam alguns (para nós indígenas pouco importa como chamem), se impõem a toda a humanidade. Por isso, pelo que essa ‘virada’ que Viveiros e outros propõem, deveria induzir a ciência antropológica mais que a revisões epistemológicas a uma virada ontológica, que deve induzi-los a realmente escutar os povos que lhes falam desde seu lugar de ver/sentir/viver (em nossa língua, chamamos de Eirare) no mundo.

Nesta comunicação dirigida a tão importante Doutor que certamente parece falar por nós diante de outros, queremos tomar precisamente em nossas mãos o testemunho que ele deixou pendurado. Isto porque o que para ele e outros promotores da “virada ontológica” termina sendo algo disciplinado e disciplinarmente antropológico, acadêmico e eminentemente teórico, para Nós, xs índixs em toda Abya Yala não é outra coisa senão a urgente necessidade política (quer dizer, territorial) de assumir que chegou o Tempo de Volta do Nós.

Não apenas como caminho para nossa r-existência (como diz o irmão Carlos Walter Porto-Gonçalves), mas como possibilidade de evitar a morte, abrindo espaços à vida de todos, incluindo às do Ocidente.

Dr. Eduardo Viveiros de Castro, Anai Wamiroi (Nosso bom irmão),

Antes de mais nada, peço desculpas pelo atrevimento de me dirigir ao senhor sem mediar nenhuma outra relação que não seja ter lido seu artigo “Quem tem medo do Lobo Ontológico?”, que, apesar de não ter sido direcionado a nenhum povo indígena em particular, sentimos que sua palavra ali expressada bem poderia provocar uma possibilidade do que nós Añuu chamamos Ookoto, isto é, cortar/compartilhar, uma das palavras-chave do nosso sentipensar que orienta nossa cosmovivência.

A perspectiva a que nos referimos deve se dar sobre a base de uma compreensão daqueles que estamos (somos) como Nós. E quem é o “Eu” antropológico do Ocidente, que até agora apresentou-se aos nossos povos com a missão de nos apreender sem que na verdade quisesse ou soubesse aprender, já que normalmente veio no plano de “mudar a nós”, mas nunca o de mudar a si.

Neste sentido, dividiremos esta mensagem em quatro aspectos que nos parecem fundamentais para abrir assim o caminho a um verdadeiro Ookoto, ou, melhor dizendo, para um Wookoteeyera anain joünükü (Cortemos/compartilhemos para emergirem boas palavras).

O nosso Eirare

Assim, a primeira coisa é dizer que para nós, habitantes das águas do grande Lago Maracaibo, embora na verdade era o nosso Karoorare, lugar do grande espelho, o mundo é um grande Olho que vemos e que nos vê.

Porque ele é parte do corpo de um universo que é um outro olho gigante que só podemos ver, justo no momento em que nossa vida acaba e nosso espírito viaja a esse lugar que chamamos de E’inmatuare, por ser o coração do mundo de onde emergimos no princípio.

Que o mundo é um grande olho é algo fácil de dizer. Entretanto, chegar a esta conclusão não é, como costumam dizer os antropólogos, a mera invenção de um “mito” de origem. Para isso, nossos primeiros, em seu fazer no pensar nossa territorialização, tiveram que compreender a experiência de construir as águas como território de vida, e não a terra. E de tal maneira que, em seu pensar no fazer, tal compreensão foi condensada nessa imagem que, a partir de então, constitui o que chamamos nosso Eirare, ou melhor, no Weirare: nosso lugar de ver, sentir e viver o mundo.

Podemos destacar um conceito parecido para nossos primos Wayuu, Arawak como nós, mas que habitam as terras semidesérticas da Península de Guajira, quando dizem que o mundo é um vaso de barro formado pela união de Mmá (Terra) e o Juyákai (O Chuva/O Que Faz Chover), e que esse vaso foi modelado pelo Aseyuu do espírito de Amuche quando criou as pessoas no útero de terra/vaso durante uma noite no Monte Woupaaluu (lugar do mundo de onde nós wayuu surgimos).

Ou também o que assentam os irmãos barí (chibchas) da Serra de Perijá, ao dizerem que o mundo é um abacaxi (Ñangandú) que, cortado pela metade, se levanta como uma imensa cúpula que abriga em seu interior tudo o que está presente no mundo, os barí incluídos, como filhos do abacaxi.

Dito de outro modo, todos os povos estabelecem um Eirare a partir de seu processo de territorialização do espaço/tempo em que finalmente se estabelecem como cultura.

Portanto, não é possível compreender nossas culturas (a ocidental incluída) separadas de seu Eirare, que está também está indissoluvelmente vinculado a uma conformação territorial. Ou, melhor dizendo, não há cultura sem território, tem sido esta relação que vem sendo colonialmente ignorada pela ciência antropológica ao descrever culturas como naturalmente carentes de território.

Mas isso de constituir-se como cultura em um território é somente uma maneira ocidental de dizer as coisas, a que tivemos que aprender porque precisamos nos fazer entender. Já que, na verdade, em nossos próprios termos teríamos que dizer que se trata de Weiña kanuye, isto é, nosso fazer comunidade. Porque é nosso Eirare que nos orienta a compreender que tudo o que está presente no mundo tem um fazer (Eiña) que se manifesta no contexto do espaço/tempo do fazer do mundo que não é outro que o de fazer o tempo.

Pois é, o fazer do mundo, aquele que se realiza como um constante giro em seu caminhar, é o que permite a todos os seres presentes a realizarem seu próprio fazer como comunidade justamente nos lugares/tempos em que o fazer do mundo cria em seu caminhar.

Assim, tudo o que está presente vive em e pelo seu fazer como comunidade. Pois nada existe como ser isolado, senão como parte de uma comunidade que exerce um fazer, que sempre é complementar ao fazer de outras comunidades justo no lugar/tempo criado pelo caminhar do mundo.

Eis ali o equilíbrio que nosso Eirare nos permite ver, sentir e que orienta nosso viver e conviver como comunidade humana com o resto de comunidades (plantas, animais, seres visíveis e invisíveis) com as quais compartilhamos os diferentes lugares/tempo, que, em seu caminhar, criam para todos o fazer do mundo. Daí que nossa tarefa mais importante como comunidade humana é contribuir para esse equilíbrio, o que para nós é nosso horizonte de vida ao que chamamos Wakuwaipa quer dizer, nosso caminhar como caminha o mundo.

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No Acre, mulheres Huni Kuin preparam o almoço. Barbara Veiga/Amazônia Latitude

O Eirare da cultura moderno-ocidental

O Eirare que permite condensar em uma imagem a ideia sobre o mundo no contexto de sua territorialização por parte de um povo histórico e geograficamente determinado não é de modo algum exclusivo dos povos indígenas.

Na verdade, boa parte dos europeus que chegaram no território de Abya Yala no século XVI bem traziam consigo sua própria imagem do mundo, que explicavam com seus próprios relatos míticos. Assim, por exemplo, muitos pensavam que o mundo era um imenso disco plano, sustentado por 12 elefantes, que se equilibrava sobre a carapaça de uma gigantesca tartaruga que voava no espaço.

Outros diziam que a Terra permanecia no espaço carregada por um gigante de nome Atlas, condenado por um grande deus a sustentá-la em seus ombros por toda a eternidade.

Mais adiante, a partir de Francis Bacon, a ciência moderna estabeleceria uma nova imagem com seu respectivo relato em que o mundo, tanto em sua natureza exterior e selvagem, devia e podia ser conhecido e dominado pelo homem, que assim se impunha acima de toda espécie viva. Não apenas pelo poder que seu Deus lhe concedia desde o céu, mas pelo poder de sua tecnociência.

De toda forma, desde o mito do “domínio da natureza e do mundo” instado por Bacon até a presente quebra desse “domínio”, para a cultura moderna ocidental, o mundo é estritamente um espaço que sustenta e suporta o que sobre ele está. De tal maneira que este mundo é fundamentalmente um solo no qual os homens brancos pisam e confrontam como inimigo alheio e rudimentar, mas manejável e explorável para seu próprio e único benefício.

Assim, para o homem moderno ocidental, conhecer o mundo não é caminhar como caminha o mundo, mas abrir caminho a todo custo para dominar a sua pisada sobre ele e sobre tudo o que em e pelo mundo vive: plantas, animais, lagos, rios, selvas, montanhas, gentes e povos.

Este Eirare moderno ocidental os fez supor que podem englobar a compreensão em um único saber “universal” o Eirare de todos e cada um dos povos que no mundo estão constituídos em seus próprios universos territoriais.

Tal suposição é sustentada em um discurso que, nas palavras de Viveiros, justamente termina “caricaturando” o Eirare e a vida dos outros, e são estas “caricaturas” que nos descrevem e até falam por nós como “conhecimento antropológico e etnográfico”.

Logo, por mais que expliquemos que o mundo caminha impulsionado por um Aseyuu/Ariiyuu que emana de seu coração em sua própria e infinita rotação; mesmo que digamos que o Aseyuu/Ariiyuu é irradiado desde seu núcleo e se ramifica de forma rizomática de maneira contínua e permanente em um fluxo que emerge à superfície, dotando parte do Aseyuu/Ariiyuu próprio a tudo o que no seu exterior habita os diferentes lugares/tempos que, em seu caminhar, o mundo cria e torna possível o tempo/espaço propício à complementaridade entre as diversas comunidades de plantas, animais, insetos, seres visíveis e invisíveis e comunidades humanas que, em sua incompletude, reproduzem sua existência dessa maneira; apesar de tê-lo ouvido em tantos termos, palavras, vozes e tonalidades “nosótricas (do Nós)” de diferentes povos da Abya Yala, o imenso “Eu” que os conforma em seu Eirare não lhes permite escutar nem entender, e insistem, assim, no seu caminhar contrário ao do mundo.

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“Todos os povos estabelecem um Eirare a partir de seu processo de territorialização do espaço/tempo em que finalmente se estabelecem como cultura”. Foto de aldeia Huin Kuin, no Acre. Barbara Veiga/Amazônia Latitude

“Virada Ontológica” ou o Fim do mito da ciência

Já faz um bom tempo que o Dr. Viveiros de Castro percebeu em seu trabalho a relação entre o Eirare e o fazer território e comunidade nos povos amazônicos, o que denominava como “perspectivismo”. Apesar disso, agora ele parece entender a necessidade de ir além, uma vez que chegou à compreensão de que uma ciência e uma tecnociência capaz de torcer o caminhar do mundo não tem sido mais que um mito que hoje em dia enfrenta a “todos nós” em um grande problema global.

Isso porque se a sociedade moderna-ocidental-capitalista seguir sua trajetória contra o caminhar do mundo, estaria dado o empurrão final para uma “caída do céu” irremediável. Para isso, e atento a sua absoluta fidelidade à disciplina antropológica e à ciência em geral, o Dr. Viveiros atreve-se a propor a seus pares uma “virada ontológica”, o que, nos termos dos nossos povos, deve ser (se a tal “virada” é verdadeira) uma mudança radical no Eirare do ocidente.

Contudo, esta ideia da “virada ontológica” aparentemente está sendo exposta também a partir de outros campos da ciência ocidental, que certamente não podem deixar de notar a catástrofe ambiental que, de acordo com muitos, nos aproxima ao “fim do mundo”.

Porém, de forma incompreensível, para estes mesmos cientistas, o fim do mundo não parece implicar no fim do capitalismo. Dizemos isto porque recentemente, e pela primeira vez, nossas comunidades Wayuu e Añuu receberam o convite de parte de cientistas e pesquisadores das “alterações climáticas” para participar de uma espécie de um questionário no qual era esperado que os informássemos exatamente como víamos e o que estávamos fazendo para enfrentar esta mudança na Guajira nos dois lados da fronteira colombo-venezuelana.

O propósito da pesquisa era, dizia-se, reunir informação para que “juntos”, “eles e nós”, “coproduzíssemos um conhecimento” que permitisse aliviar as consequências do fenômeno em nossos territórios e, desta maneira, fazer nossa vida mais tolerável no contexto da mudança climática ao mesmo tempo em que, segundo eles, estaríamos “contribuindo” na produção de políticas e metodologias para uma “economia sustentacular e sustentável para todos”.

Bem poderíamos tê-los dito, por exemplo, que os Añuu, durante milhares de anos antes da indústria petrolífera no nosso Lago de Maracaibo (Karoorare), sabíamos exatamente da existência do Me’ene (óleo da terra). Que durante todo esse tempo soubemos que seu Ariiyuu permitia conter e compartir conosco o fogo, e que o piche era uma cobertura firme que podíamos usar para calafetar (vedar) nossas embarcações, e que ele fluía para a superfície como parte da respiração do lago, sem consequências para os peixes.

Pudemos dizer-lhes, da mesma maneira, que por milhares de anos nós, os Wayuu, sabíamos que a casa de Juyákai (O Chuva/O Que Chove) sempre esteve nas montanhas da Serra de Perijá, onde seu aguaceiro permanece em suas selvas úmidas. Mas acompanhado de seu primo Joutai (O Vento), viaja em círculos por toda a bacia do Lago, seguindo ao mundo em seu caminhar e criando as estações de suas visitas periódicas ao lugar de seus filhos prediletos, nas semidesérticas terras da Península da Guajira.

Porém, tentamos falar dessas e mais coisas do nosso sentipensar há mais de 500 anos, sem que pudessem compreender com seu coração aberto que, de alguma maneira, ou por alguma razão, o homem moderno ocidental estabeleceu como seu Eirare a separação de seu pensar e de seu sentir, priorizando a inteligência de sua mente e minimizando, até quase extinguir, a sabedoria que só reside no coração, rompendo o equilíbrio que nos permite ser uma comunidade humana.

É por seu coração minimizado que resulta ser tão difícil entender o caminhar do mundo, e você pode mostrar-lhe uma verdade tão grande como um de seus arranha-céus que, mesmo assim, não conseguirá enxergá-la.

Mas insiste no seu caminho de morte, confiando que sua ciência e tecnociência dotam-no de uma eternidade fictícia, convencido de que seu fazer destrutivo dá-lhe supremacia sobre lagos e rios, selvas e montanhas, plantas e animais, seres visíveis e invisíveis e, principalmente, sobre povos e territórios, daqueles que só espera tirar proveito acumulando o que crê ser a riqueza.

Daí que, no caso do povo Añuu, pôde destruir em pouco mais de um século, o maior reservatório de água doce. E agora padece de sede, destruindo suas espécies e emplacando a fome em nosso povo. Está produzindo a mesma devastação entre os Wayuu, arrasando com o bosque da Serra de Perijá, na região do Rio Wasaalee (o lugar de onde bebemos), na Venezuela, e no sopé da Serra de Santa Marta, na região do Rio Cerrejón, no lado colombiano, para, com sua tecnologia de minas a céu aberto, extrair carvão para as corporações, exilando Juyá da Guajira e condenando de fome e morte ao povo Wayuu.

Então, ao expor a proposta dos cientistas pesquisadores a vários anciãos e anciãs de ambos os povos, a palavra do avô Rafael Jusayu resumiu o parecer de todos, ao declarar:

Os que devem saber o que fazer com este desastre são os próprios Alíjunas (brancos), porque são eles os que o provocaram. Nós só resistimos à fome que eles nos deixaram”

Contudo, o fato de que agora, em meio à iminência do desastre, se dignem a consultar nosso parecer e fazer, nos fala da certeza de que, como diz o Dr. Viveiros, “as vindouras décadas sombrias, o fim do mundo ‘tal como o conhecemos’ é uma clara possibilidade”.

Mas também nos diz que o mito de que sua ciência e tecnociência para um possível crescimento e acumulação infinitas explorando a Terra, que é finita, chegou ao limite de sua falsidade. Porque, apesar de terem acreditado manipular o mundo caminhando em seu sentido contrário, este continuou e continuará andando em seu caminhar, impelido pelo seu Aseyuu.

“Virada Ontológica” e A Volta ao Tempo do Nós

Diretamente ligada à antropologia, a abordagem da “Virada Ontológica” proposta pelo Dr. Viveiros tem fundamento e valeria muito mais a pena que seus colegas atendessem seu chamado. No entanto, devo dizer que para os povos indígenas faz pouco sentido.

De fato, só poderia adquiri-lo a partir do momento e na medida em que a tal virada possa ser efetivamente consubstanciada em um fazer combinado com o que é sim vital para nossos povos neste momento: é o que chamamos a Volta ao Tempo do Nós.

Porque, de certo modo o sistema de des-civilização (Jaulin, 1979) da modernidade-colonial-ocidental capitalista centra sua ação des-civilizatória em seu caminhar contra o mundo despojando-o de seu fazer, que não é outro senão o de fazer tempo.

Assim, a modernidade ocidental capitalista pretendeu despojar o mundo do tempo e, em consequência, de todos os seres e comunidades que o habitam, com os povos indígenas aí incluídos, porque o espólio territorial e a desterritorialização em geral, não se tratam somente de um saqueio de terras ou espaços.

Mas também do tempo que, indissoluvelmente, está unido a essas terras e espaços territoriais no caminhar do mundo, de tal maneira que todos os povos indígenas ao longo do processo colonial e da colonialidade republicana viram atravessar sua memória territorial o descarte do tempo/espaço.

Este reduz o Eirare de suas cosmovisões e que orienta suas cosmovivências como exercício de suas territorialidades, que prejudicadas pela violência do saqueio que são vítimas, reconfiguram-nas em novos espaços/tempo e na preservação de seu Eirare.

É claro que, nos dias de hoje, nenhum povo indígena escapou desse saqueio, nem da alteração no exercício de suas territorialidades. Contudo, podemos dizer que as mudanças de Eirare resultam ser quase geológicas, quer dizer, de longa duração, pelo que não é possível distinguir a diferença entre mudanças na cosmovivência das de cosmovisão, o que pode induzir ao erro de dar como morto o universo do mundo que sustenta a memória territorial da que estão feitos esses povos.

É assim que podemos compreender Viveiros quando dá por concluído o mundo de nossos povos, “terminado há muito tempo”, já que se tratam de povos “cujo mundo terminou há cinco séculos, sua população diminuiu a algo como 5% do total pré-colombiano em 150 anos”. Quer dizer, somos muitas minorias e, apesar disso, se atenta em dizer, “conseguiram se manter e aprenderam a viver em um mundo que já não é seu ‘como o conheciam’”.

Mesmo assim, e como via de atenção ou salvação do ocidente no contexto da catástrofe a que lhes empurra seu Antropoceno ou Capitaloceno é o que, segundo o parecer de Viveiros, terminará convertendo a civilização moderna ocidental em uma espécie de nós, isto é povos já mortos em seu mundo, e, por isso, “Logo seremos todos ameríndios. Vejamos o que podem nos ensinar em assuntos apocalípticos”.

Neste ponto, só posso imaginar o rosto de medo que deve ter mostrado o público da conferência de Viveiros em Cambridge, ao pensar, por um instante, em ser indígena no contexto de desastre ou já morto. Talvez mais de um pensou na “virada ontológica” como caminho para manter sua eternidade.

Acreditamos que é terrível ter que aceitar o fato de que, para o ocidente, não é possível uma geminação para a vida, mas como um fato dado para o contexto da morte, porque, não há dúvida, a morte é igual para todos.

Porém, desde o Eirare de nossos povos, a vida é igualmente equivalente para todos, e esta visão de igualdade vida/morte a entendemos como o equilíbrio de um mesmo fazer. Para explicar isto em termos dos Añuu, devo dizer-lhe que Viver, ter vida ou estar vivo, para nós, é Katouwa. E com ela expressamos a propriedade que tem todo sujeito de erguer-se por seu próprio Ariiyuu, ou energia vital; enquanto que a morte é Ou’ta, que é igualmente um emergir definitivo pelo seu Ariiyuu, mas que afasta o sujeito da visão dos outros.

Em todo caso, vida e morte estão acompanhadas mediante o fazer do “emergir” (Ou). Neste sentido, pouco importa que nos declarem mortos, já que, de fato, é parte da própria educação aprender a se autodeclarar morto como forma de expulsar todo apego, ambição e cobiça. E tem sido o ocidente quem, ao despojar-nos de nossa memória territorial, introduziu nos sujeitos a ideia do domínio da eternidade e não da irmandade para a vida do mundo.

Mas o caminhar do mundo aproxima-nos todos a uma Volta do Tempo, que é aquele em que a espiral nos põe de regresso a tempos já vividos, mas como presente. Não é um déjà vu, como uma repetição da história, mas sim o tempo em que precisamos olhar para trás para ver onde perdemos o caminho, repor em nosso coração as razões de nosso caminhar e o horizonte ético que o orienta. E então reiniciar a caminhada sendo Nós.

Eis aqui o Tempo de Volta ao Nós; não é porque essa temida catástrofe do Antropoceno virá em um futuro incerto, ou que já tenha chegado, como diz o Dr. Viveiros. É que nunca se foi de nós desde sua chegada a nossos territórios há mais de 500 anos.

Seu passo de morte, guiado pela ambição e pelo ódio, nunca parou. Sempre havíamos fugido, escondido, nos afastando o mais longe possível do seu toque pestilento. Mas já não existe mais lugar para onde fugirmos ou nos refugiarmos. Por isso, este é o tempo de nossa volta para enfrentar os inimigos da humanidade em uma batalha derradeira, e nossa arma mais poderosa, essa com a qual logramos vencê-los sempre, é ser Nós, plenos de nosso Aseyuu/Ariiyuu, e caminhar como caminha o mundo.

Talvez para a academia e a sociedade ocidentalizada de nossos países, a virada ontológica proposta pelo Dr. Viveiros seja um bom caminho. Esperamos que tenha a força da palavra suficiente para convencer a seus pares, porque pode ser que em sua virada consigam coincidir com a Volta ao Tempo do Nós, e talvez haja a possibilidade de compartilhar o emergir de outro mundo. Onde o “Todos Nós” não seja uma dúvida.

Desculpando-me caso tenha lhe ofendido em algo, me despeço, desejando bons agouros ao seu Ariiyuu.

Tradução de João Paulo Pires. Leia o texto original, em espanhol, aqui.
José Ángel Quintero Weir é membro do povo Añuu, do estado de Zulia, na Venezuela. É professor na Universidade Autônoma Indígena UAIN – Wainjirawa.
Imagem em destaque: No Acre, Ashaninka pescam para o almoço. Barbara Veiga/Amazônia Latitude

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