Fotografia e fogo narram destruição do Brasil

Fotografia derretendo de uma floresta.

Exposição multimídia de Marilene Ribeiro expõe a destruição dos símbolos culturais e terras brasileiras

Fogo Aberto, o mais recente trabalho da ativista fotográfica Marilene Ribeiro, detalha a perspectiva da artista sobre as queimadas que têm dizimado o patrimônio biológico, social e cultural brasileiro. A mostra ainda relembra fatos históricos, os incêndios na Amazônia e Pantanal, além dos do Museu Nacional e da Cinemateca Brasileira.

Em áreas naturais do Brasil classificadas como prioritárias para a conservação ambiental, Marilene Ribeiro capturou com uma câmera analógica de médio formato árvores, folhas, pedras, riachos e cachoeiras. Após reveladas, a fotógrafa queimou manualmente, uma por uma, as fotografias.

Na plataforma multimídia online onde são exibidas essas paisagens feridas, o espectador também escuta uma narração subjetiva que é feita pela artista, em áudios que acompanham as imagens da exposição: uma experiência impactante, onde o material e o emocional se conectam.

Foto de uma paisagem verde, queimada em círculos na imagem

Imagem da exposição Fogo Aberto (Marilene Ribeiro).

O objetivo de Ribeiro com Fogo Aberto é incentivar a discussão em torno das recentes queimadas que violaram os espaços naturais e culturais no Brasil. A exposição oferece uma poderosa mensagem sobre ‘a dor da agressão’ e ‘a dor da irreversibilidade’, como a própria artista coloca, e o uso do fogo como uma arma indomável e que tem a capacidade de destruir rapidamente o que é frágil e vulnerável.

Como Marilene Ribeiro descreveu em entrevista ao LAB, “a civilização humana insiste em se colocar cada vez mais à parte da natureza, como se fosse um ser superior e não dependente dos ciclos naturais para sua própria existência. Essa falsa sensação de poder leva, de alguma maneira, às ações violentas que vemos. E, como a arte é a minha forma de dialogar com o outro, essas questões acabam sendo absorvidas, incorporadas e refletidas no meu trabalho.”

Que metáfora mais apropriada para vermos e escutarmos neste momento do que Fogo Aberto, quando os patrimônios histórico, social e biológico do Brasil se tornaram mais frágeis e mais vulneráveis; e que arma mais afiada do que o fogo para transformá-los em cinzas?

Imagem da exposição Fogo Aberto (Marilene Ribeiro).

AS QUEIMADAS NO BRASIL

A Amazônia abriga um dos mais diversos e maiores biomas do mundo, com recursos naturais vitais para o globo. Até recentemente, era o maior sequestrador de carbono do mundo. Em 10 de agosto de 2019, também conhecido como o ‘Dia do Fogo‘, proprietários de terras sistematicamente incendiaram a maior floresta tropical do mundo. O dano foi tão drástico que São Paulo, que fica a 2.000 km do lugar onde o incêndio foi iniciado, teve seu céu e horizonte transformados pela grande quantidade de fumaça vinda do norte que envolveu a cidade. Inúmeras são as reportagens denunciando as queimadas que estão destruindo a floresta mais conhecida do mundo. No entanto, não vimos um holofote semelhante em relação a outros incêndios trágicos que ocorreram nos últimos anos no Brasil.

Em dezembro de 2015, o Museu da Língua Portuguesa pegou fogo, matando um bombeiro e destruindo a maior parte da integridade arquitetônica do edifício. Três anos depois, em setembro de 2018, uma situação semelhante devastou o Museu Nacional, queimando mais de 20 milhões de partes da História, incluindo o fóssil humano mais antigo encontrado no Brasil (que, com o trabalho dos profissionais, foi 80% reconstituído a partir de fragmentos que foram encontrados nos destroços).

Em julho de 2021, a Cinemateca Brasileira perdeu mais de um milhão de documentos de arquivo para um incêndio, incluindo rolos de filme, roteiros e equipamentos de filmagem, alguns com mais de 100 anos de existência. As investigações sobre esses três problemas encontraram a mesma fonte: mau funcionamento da fiação; os dois últimos relativos ao ar-condicionado. No entanto, o que não é divulgado é como a equipe desses três prédios públicos vinha, nos anos anteriores a esses incidentes, denunciando a negligência, a falta de financiamento e o desrespeito ao valor cultural, tudo isso associado ao processo de sucateamento de fundos para serviços públicos, consequência das políticas de privatização nocivas no Brasil. E é essa trama político-econômica complexa que Fogo Aberto escancara e ecoa.

Foto de uma árvore, queimada e derretida

Imagem da exposição Fogo Aberto (Marilene Ribeiro).

 

Além desses incêndios devastadores que abriram um buraco na história brasileira, só em 2021 o país viu cinco importantes casas de oração pertencentes à comunidade indígena Guarani Kaiowá serem incendiadas – e um desses eventos também é abordado por Marilene Ribeiro, neste seu trabalho. Incendiar locais sagrados é uma demonstração de intolerância e violência aos povos originários que não surpreende no contexto da perseguição indígena por Bolsonaro e seus aliados no Congresso.

Também o Pantanal, que abrange áreas do Brasil, Bolívia e Paraguai, não ficou incólume aos incêndios em curso. Em 2020, mais de um terço da maior área úmida tropical do mundo foi destruída e mais de 17 milhões de animais foram carbonizados, tudo graças a um plano oficial de expansão do agronegócio. Apesar de ter recebido alguma cobertura internacional nos noticiários em 2020, no ano seguinte mais um incêndio devastou a região; porém, sem repercussão na mídia.

BOLSONARO E O AGRONEGÓCIO

Apesar de avançar para o que os cientistas chamam de “ponto sem volta” em relação à conservação da Amazônia e do Pantanal, Bolsonaro meticulosamente ignora as queimadas nesses dois importantes biomas. Ele inclusive, em seus pronunciamentos oficiais, minimiza a causa antrópica desses ‘fogos abertos’ e seus impactos, associando esses incêndios a causas naturais. Ao contrário do que Bolsonaro e seus apoiadores proclamam, essas queimadas têm sido causadas por pecuaristas, grandes latifundiários, garimpeiros ilegais, madeireiros e especuladores, com o agravo de que os que orquestraram esses incêndios passaram esses últimos quatro anos de destruição praticamente impunes.

Bolsonaro é o mais forte aliado do agronegócio que a presidência do Brasil já viu, desde sua redemocratização em 1985, e esses eventos não são alheios a um plano político pragmático para transformar o Brasil em uma máquina de produção de matérias-primas que desloca comunidades, assassina espécies de plantas e animais ameaçadas de extinção e causa estragos a biomas naturais.

Sob o pretexto do patriotismo e do desenvolvimento econômico, Bolsonaro e seus ministros do Meio Ambiente Ricardo Salles (janeiro de 2019 a junho de 2021) e Joaquim Leite (junho de 2021 até o momento) têm impulsionado uma agenda pró-agronegócio que beneficia produtores de gado e monoculturas em detrimento das comunidades indígenas e do meio ambiente. Dentro do Congresso, existem três principais grupos de alianças políticas que apoiam Bolsonaro, pejorativamente chamados de ‘BBB Caucus’: as bancadas da Bíblia, do Boi e da Bala.

A ‘Bancada do Boi’, com forte interesse pelas vastas terras e recursos do Brasil, tem sido historicamente associada ao ‘Arco do desmatamento’ – uma trilha de gado, monocultura e, mais significativamente, de destruição, que se estende desde o centro do Brasil até a fronteira da floresta amazônica, no noroeste do país. Marilene Ribeiro destaca que, nesse contexto, “o fogo é utilizado como uma arma que ‘acoberta’ o criminoso e que, ao mesmo tempo, tem um poder de destruição gigantesco, que mata rapidamente e cruelmente animais, ecossistemas, acervos, culturas, pessoas.”

flamas criam caminhos em uma fotografia de uma floresta

Imagem da exposição Fogo Aberto (Marilene Ribeiro).

Abaixo, o leitor confere na íntegra a entrevista com Marilene Ribeiro.

Oliver Freiberg: Qual o papel da natureza em suas obras, e como você vê essa relação entre ser humano e natureza por meio da fotografia?
Marilene Ribeiro: Desde o início da minha carreira, a natureza tem tido um papel central nos meus trabalhos: eu entendo que vivemos uma era em que, apesar de termos tido muitas conquistas na área ambiental, resultado da luta de décadas de muita gente, a civilização humana insiste em se colocar cada vez mais à parte da natureza, como se fosse um ser superior e não dependente dos ciclos naturais para sua própria existência.

Essa falsa sensação de poder leva, de alguma maneira, às ações violentas que vemos acontecendo diariamente debaixo dos nossos narizes e com o nosso aval, como cidadãs e cidadãos que participam do processo democrático em que vivemos: são barramentos de rios, desmatamento, tráfico de animais silvestres, cavas de extração de ouro, ferro e outros minerais, uso de agrotóxicos, despejo de esgoto e lixo tóxico nos cursos d’água. As consequências dessas agressões, dessas violações extremas são negligenciadas. E isso tudo é geopolítica pura. Como eu vivo neste tempo, sou testemunha destas ações. E, como a arte é a minha forma de dialogar com o outro, essas questões acabam sendo absorvidas, incorporadas e refletidas no meu trabalho.

Os incêndios na Amazônia foram muito impactantes para brasileiros e estrangeiros, mas você viu essa mesma comoção com os outros incêndios?
Quando aconteceu o grande incêndio do Pantanal, em 2020, também houve muita comoção nacional e internacional, eu entendo que não porque as pessoas dentro e fora do Brasil sabiam da gigantesca importância desse bioma – o Pantanal é uma das regiões de megadiversidade do mundo, mas porque a quantidade de animais de grande porte encontrados mortos, carbonizados – onças, veados, macacos, jacarés – foi de devastar o olhar e o coração de qualquer pessoa que tenha o mínimo de empatia.

Em 2021, a região pantaneira queimou de maneira tão avassaladora quanto no ano anterior; mas, aí, a repercussão na imprensa já não foi tão ampla e duradoura assim. As áreas de Cerrado queimam todo ano de maneira absurda, muito além do que seria o esperado para um bioma do qual o fogo faz parte: a maioria desses incêndios consiste em alguém que colocou fogo na vegetação propositadamente – e o Cerrado é uma região de altíssima importância biológica, arqueológica e de água de beber – muito da pré-história da América do Sul está aí; porém, como não tem a exuberância e o apelo estético da Amazônia e do Pantanal, fica esquecido pela população e a mídia não se interessa muito em reportar de maneira mais veemente, e, com isso, vamos perdendo áreas vitais, a cada ano um pouco mais, para as monoculturas e a indústria de commodities. É isso também que a obra Fogo Aberto deseja mostrar para as pessoas: que estamos perdendo para o fogo coisas muito importantes dia após dia e não nos damos conta da gravidade e da irreversibilidade dessas perdas.

Olhando para os incêndios dos quais você fala na sua exposição, você vê eles inseridos em um contexto político-histórico, ou simplesmente como tragédias iminentes?
Totalmente inseridos em um contexto político-histórico e é exatamente este um dos recados do trabalho: que os incêndios que testemunhamos a cada ano são consequência de um sistema político e econômico que incentiva a marcha da soja e do gado sobre as paisagens naturais, que fomenta a grilagem, que negligencia os lugares que salvaguardam nossas memórias, nossa história. Dessa maneira, o fogo é utilizado como uma arma que “acoberta” o criminoso e que, ao mesmo tempo, tem um poder de destruição gigantesco, que mata rapidamente e cruelmente animais, ecossistemas, acervos, culturas, pessoas. Enquanto isso, nós, a população, por não exigirmos políticas públicas de prevenção e ações permanentes que freiem esse sistema, permitimos que esses incêndios sigam acontecendo dia após dia, ano após ano, aniquilando coisas valiosas, que deveriam ser protegidas, preservadas.

Quais perguntas você se faz sobre os possíveis futuros do Brasil; e quais perguntas você propõe que façamos para que não vejamos mais um incêndio com apatia?
A pressão internacional pelos recursos naturais que não só o Brasil, mas a America Latina como um todo tem, vai ser cada vez maior, assim como o lobby da indústria de commodities em cima dos governantes; então, entendo que mesmo que Lula seja eleito, serão quatro anos difíceis, a população e a sociedade civil organizada terão de estar ali de perto pressionando também, inclusive porque o meio ambiente e as populações tradicionais não foram contemplados com seriedade nos mandatos anteriores do PT na presidência (faço aqui um parênteses para parabenizar o programa Desmatamento Zero da Amazônia, que foi bem sucedido até 2014).

Porém, o que tem acontecido no Brasil no governo Bolsonaro é sem precedentes. É um crime contra a natureza, contra os povos originários, contra a humanidade a cada minuto como consequência de um incentivo explícito do presidente da república, e o mais absurdo é que todo esse massacre era promessa de campanha. Já era sabido antecipadamente que a floresta iria arder, que o garimpo ilegal e a grilagem iriam expandir, isso tudo foi anunciado claramente durante sua campanha em 2018, e, mesmo assim, as pessoas votaram pra isso acontecer.

A pergunta que eu me faço é: será possível que mesmo depois dessa “amostra” de quatro anos de barbárie, a população vai confirmar que é este futuro de sangue, cinzas, sede e fome que ela quer para o lugar onde ela própria vive? E a pergunta que eu proponho que façamos para que não vejamos mais um incêndio (usando aqui a analogia deste meu trabalho com a película fotográfica: para que não vejamos mais uma paisagem violentada, deformada, apagada para sempre) com apatia é: como é que eu, cidadã/cidadão, posso atuar para evitar que esse fogo aberto continue acontecendo? Há várias maneiras de atuar, a gente só precisa de deixar a posição de espectador do ‘espetáculo anual das queimadas’, em seu infinito ciclo de notícia e esquecimento, e partir para posição de protagonista.

Uma coisa boa deste século é que a devida atenção começa a ser dada às cosmologias ameríndias, que, em sua essência, prezam pela sabedoria e pelo respeito às formas de vida e de existir que não somente a humana e que entendem que, no final, tudo está conectado.

Assim, para ser um pouco simplista e usando o raciocínio narcisista humano (mas, sem querer ser muito superficialista): se não quisermos passar sede nem fome em um futuro bem próximo, temos de entender que outro sistema tem de ser implementado urgentemente e isso vai envolver revolução (em vários âmbitos) e muita gente ter de sair da sua zona de conforto (e isso eu falo de países, corporações, relações nacionais e internacionais, milionários, e nós, os urbanos, também). Não existe outra opção.

Artigo de Oliver Freiberg, publicado originalmente em inglês no Latin America Bureau.
Tradução para o português por Rachel Ann Hauser Davis

A obra multimídia FOGO ABERTO (OPEN FIRE), contemplada com o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia da Fundação Nacional de Artes do Brasil, está disponível ao público gratuitamente em www.openfireart.com, nos idiomas português e inglês.

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