Ismael Machado

Escritor, jornalista, roteirista e doutorando em cinema. Ganhador de 12 prêmios jornalísticos. Já cantou em banda de rock, plantou árvore e ajudou a criar dois filhos.

A exposição, o genocídio e o paraíso perdido

Foto: Sebastião Salgado / Divulgação da exposição "Amazônia"

O xamã yanomami olha para um ponto da floresta que não identificamos. Seu rosto está pintado, a boca está aberta e as mãos espalmadas para o alto. Atrás dele, acocorados em pedras que dão contornos às águas do riacho, dois jovens o observam, empunhando arcos e flechas. A imagem em preto e branco compõe, entre mais de 200 fotos, um cenário onde a Amazônia é alçada a uma projeção quase mítica, um paraíso perdido que precisa ser preservado.

Esta talvez seja a grande força e também o calcanhar de Aquiles da mostra Amazônia, de Sebastião Salgado, possivelmente o nome brasileiro mais reconhecido no mundo quando se fala de fotografia.

As imagens, como já é de praxe em se tratando de Salgado, impactam, emocionam, fazem refletir, causam admiração. Mas, como também tem ocorrido nos últimos tempos quando se analisam os trabalhos de Salgado, despertam questionamentos sobre determinados limites éticos-estéticos das fotografias trabalhadas em um “possível excesso” para dar ao espectador o nível de emoção que o fotógrafo quer que se tenha.

Não é esta a discussão a ser travada aqui, ressalte-se.

As mais de 200 fotografias que percorreram museus franceses, italianos, ingleses e brasileiros têm a nobre missão de salvar a Amazônia. De despertar olhares para esse lugar que faz parte de um imaginário mítico. Essa Amazônia entranhada no inconsciente coletivo da humanidade.

Salgado superlativa esse olhar grandioso, poético, como se apontasse a nós o paraíso perdido a ser preservado.

Só que outra realidade saltou aos olhos do mundo neste início de ano: o genocídio de povos yanomami em Roraima.

Sim, a palavra é exatamente essa: genocídio. Precisamos dar o nome correto às coisas. Palavras mudam o mundo e minimizá-las quando nos deparamos com o horror em estado puro é atentar novamente contra nossa própria humanidade.

As imagens que saltaram das lentes fotográficas para o mundo nas últimas semanas são um complemento e um contraponto ao que Sebastião Salgado nos apresenta como um idílio possível e ameaçado. Os corpos esquálidos, mal sustentados por peles e ossos, dos yanomami em Roraima são um retrato da violência praticada com maior intensidade e volúpia exterminadora do último governo.

Não que esses povos não tivessem sofrido ataques dos mais diversos ao longo dos mais variados tempos. Lembremo-nos que pelo menos 2.000 yanomami foram dizimados durante a ditadura civil-militar na década de 1970. A etnia sempre foi sobrevivente e ainda luta por sê-lo.

Mas a sanha destruidora que o governo Bolsonaro –sim, é preciso nomear– praticou encontra poucos precedentes em nossa história recente. Porque o cerco aos povos indígenas foi apenas mais um entre tantos ataques à civilização promovidos nos últimos quatro anos (seis, se contarmos os dois anos de Temer).

E mais uma vez: não que os governos passados como um todo tenham tratado a Amazônia com o respeito e entendimento que a região merece. Ainda precisamos descolonizar esses olhares, é certo.

Só que o assassínio dos yanomami segue uma lógica perversa de destruição pura e simples. O governador de Roraima, Antonio Denarium (PP), deu a senha de entendimento a esse raciocínio. Os indígenas em questão estão assentados sobre o que ele chamou de “tabela periódica completa de minerais”.

É uma lógica única: explorar à exaustão esses recursos é sinônimo de desenvolvimento. É esse o olhar que ainda se tem sobre o que a Amazônia representa.

Os garimpeiros, apoiados por Bolsonaro –no Pará, o senador Zequinha Marinho (PL) é um dos maiores entusiastas seguidores das ideias bolsonaristas–, cercaram os yanomami, privando-os dos mais elementares e básicos direitos (água e alimento). Usufruíram dos corpos femininos, envenenaram o solo e as águas, convertendo-os em algo pútrido, imprestável para consumo.

Na exposição Amazônia, Salgado busca um elo com uma ancestralidade humana que possa remontar a outra lógica civilizatória. Ocorre que, consciente ou não, esse universo recortado é afastado de suas contradições. O fotógrafo monta um estúdio na selva e aguarda os que têm curiosidade e intenção de serem retratados. Sebastião os engrandece em imagens belas, com os corpos sadios e exuberantes. Entre tantos povos indígenas, há orgulhosos yanomami.

O som da floresta invade os corredores labirínticos da mostra. Há uma ironia perversa nessa exposição repleta de boas intenções: talvez seja apenas ali, nos ambientes refrigerados de museus que a natureza amazônica –e os povos que dela fazem parte– esteja eloquentemente viva e “protegida”.

Enquanto isso, aviões da Força Aérea Brasileira sobrevoam os yanomami, lançando dos ares latas de sardinha para a alimentação indígena. Como diz a canção Mercúrio, da extinta banda paraense Cravo Carbono, “os peixes esquecem, os peixes são felizes, os peixes engolem água e eu vou nadar à superfície, até você fugir de mim”.

Ismael Machado é escritor, jornalista e roteirista. A palavra escrita como fonte de vida. Autor de cinco livros, diretor audiovisual e doutorando em Cinema. Ganhador de 12 prêmios jornalísticos voltados a questões de direitos humanos, meio ambiente, educação e ciência. Também já ganhou prêmio de melhor roteiro de curta-metragem. Escreveu para grande e pequena mídia (seja lá o que isso signifique). Já cantou em banda de rock, plantou árvore e ajudou a criar dois filhos. Não sabe dirigir, mas tem orgulho de sua pequena biblioteca. Foi professor de jornalismo e sempre agradece aos quatro gatos por deixarem que habite o mesmo teto.
Colunistas têm liberdade para expressar opiniões pessoais. Este texto não reflete, necessariamente, o posicionamento da Amazônia Latitude.
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