Verenilde Pereira e o pioneirismo na literatura afroindígena brasileira

“Um rio sem fim”, obra redescoberta da autora, humaniza as histórias marginalizadas da Amazônia

O livro “Um rio sem fim”, de Verenilde Pereira, foi redescoberto pela crítica literária em 2022. Quando foi inicialmente publicado, em 1998, teve apenas 3 mil cópias impressas, que foram editadas e distribuídas pela própria autora. Hoje, mais de duas décadas depois, a obra é tida como pioneira na literatura afroindígena brasileira, e sua escritora, tida como pioneira na mesma categoria.

Verenilde Pereira é jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), mestre em Comunicação e doutora em Jornalismo e Sociedade pela Universidade de Brasília (UnB). “Um rio sem fim” foi escrito como sua tese de mestrado. Esgotado em todas as lojas, o livro vai ganhar uma nova edição da Companhia das Letras.

O romance conta a história das violências sofridas pelos povos tradicionais com a chegada de uma missão religiosa ao norte da Amazônia. “Quando se fala na questão indígena, na questão da negritude, da branquitude, você está contando uma história que aconteceu com esses indivíduos dentro de uma cultura, dentro de uma época de mundo, dentro de uma ideologia”, conta Pereira, sobre a temática do livro.

Ouça a entrevista completa com Verenilde Pereira no terceiro episódio da série Pensando a Amazônia pela Literatura:

 

Amazônia Latitude: Verenilde, antes de sabermos que rio é esse que não tem fim, queremos conhecer um pouco mais você.

Verenilde Pereira: Eu sou uma mera contadora de histórias. Eu sou alguém que observa o mundo com suas glórias, com suas misérias, com suas vitórias, com as suas derrotas. Alguém que observa os fragmentos desse mundo. E vou colocando, tecendo numa palavra, num parágrafo que vira um conto, que vira uma história, que vira um romance como “Um rio sem fim”. Por que essas histórias humanas realmente continuam, elas não têm um fim.

Amazônia Latitude: É como o fluxo do próprio rio. Agora, em que afluente você mergulhou nessas águas?

Verenilde Pereira: São vários afluentes, mas eu acho que esse meu olhar de contadora de histórias mergulhou muito nessa experiência do mundo vivido, do fato de eu ser filha de mãe negra e de pai indígena Sateré-Mawé. E há 68 anos eu ter nascido já nesse nesses conflitos interétnicos e, como criança, ter vivenciado o horror que era isso, a violência que se abatia sobre esses grupos.

E como uma criança sem repertório, o que me acolheu – e foi um instinto – foi a palavra, foram as histórias. Eu sabia que era o único espaço no mundo em que eu podia me refugiar de tanta agressão, de tanta violência. Então eu inventava histórias para mim mesma, ia me contando no fundo da rede, atrás de uma porta e eu fui me salvando dessa forma.

Amazônia Latitude: Com força de Maria. Aliás, quatro grandes Marias que nós vamos conhecer, não sem antes ouvirmos o primeiro parágrafo da sua obra “Um rio sem fim”, uma obra que está prestes a ser reeditada pela Companhia das Letras.

Verenilde Pereira [lendo o primeiro parágrafo do livro “Um rio sem fim”]: “Sempre que me falam dele, é como se eu o visse como no dia em que conversávamos, e seu semblante me pareceu estar em pedaços, como refletido num espelho negligentemente estilhaçado. Eu ainda consegui imaginá-lo com as faces perfeitas produzidas pela esperança sem tropeços de décadas passadas, embora naquela manhã de 7 de junho de 1986, quando o bispo Dom Matias Lana tinha oficialmente 75 anos, seu rosto se mostrasse em disfarçadas e impetuosas contrações. Muito poderia surgir do cansaço azulado dos seus olhos miúdos, inclusive uma certa pureza de quem não se maculava com a desordem irracional de homens sujos e pecaminosos, homens ditos tão estúpidos e primitivos que foi necessário aos missionários católicos registrarem, em livros e publicações, o resultado de um teste aplicado entre aqueles milhares de indígenas que deveriam ser cristianizados sob a proteção austera de Dom Mathias Lana. A constatação dos testes aplicados por um cientista italiano foi a de que a inteligência de um daqueles adultos correspondia à de uma criança europeia na faixa de oito anos, ou menos ainda.”

Amazônia Latitude: Verenilde, com toda a sua bagagem, como jornalista, indigenista e escritora, tem uma perspectiva única para abordar questões cruciais da sociedade brasileira e, principalmente, amazônica. Então eu queria que você, Verenilde, compartilhasse um pouco sobre sua jornada e como essas diferentes áreas se entrelaçam na sua vida e, principalmente, na sua obra.

Verenilde Pereira: Vou falar sobre como foi produzido “Um rio sem fim”. [Em] 1995, eu fazia o mestrado em comunicação, em jornalismo. Eu sou jornalista. E a minha dissertação, o meu tema, seria sobre a cobertura da mídia hegemônica sobre questões indígenas. Mas eu queria falar especificamente sobre a questão dos indígenas Waimiri Atroari, que vivem no norte do Amazonas e sul de Roraima.

É bom lembrar que década de 1960 o lema era “Amazônia integrar para não entregar”, “é muita terra para pouco índio”, “a modernização da Amazônia”. E esses indígenas viviam bem no meio da estrada Manaus-Boa Vista, a BR-174. Eles já vinham sofrendo com a aproximação de funcionários, de trabalhadores, de invasores, de madeira, de mineração, de caçadores. Eles já vinham sofrendo uns surtos acelerados de epidemias – era febre, era tuberculose, era pneumonia – e morria muita gente. E a explicação era feitiçaria dos brancos.

Na década de 1960, com a construção dessa estrada em outubro de 1968, vai um missionário italiano em uma expedição chamada expedição Padre Calleri. Com a boa vontade, a generosidade, o medo de que a construção da estrada dizimasse fisicamente os Waimiri Atroari, ele vai lá pacificá-los, tentar retirá-los do meio da estrada.

A estrada era tida de uma forma como se aquilo fosse resolver os problemas da humanidade. A expedição é composta de dez pessoas.

Quando eles chegam lá, os índios, já assustados pelas epidemias constantes, se escondem, não aceitam a aproximação. O missionário começa a escrever um diário onde ele acha que os índios não se aproximavam porque eram covardes, eram arrogantes. Quando ele vê a aproximação dos Waimiri Atroari, para anunciar a chegada, no primeiro dia ele dá oito tiros pro alto. Os índios já estavam assustados. No segundo dia, ele dá mais quatro tiros pro alto. Então você percebe esse encontro desencontrado. Segue-se aquela relação muito conflituosa.

Os indígenas, os Waimiri Atroari, começam a mexer nos equipamentos, nas bacias, nas colheres, nos equipamentos de rádio, e o padre vai dizendo que é necessário proibir. Ele escreve em alto e bom som no diário dele “proibir que os índios mexessem nas mercadorias, porque isso está no nosso direito de gente superior”. “Isso está no nosso direito de gente superior”. Você percebe todo o etnocentrismo, toda a forma de comunicação distorcida que iria acontecer.

E chega um dia em que os indígenas tiram as colheres lá do acampamento, e o padre levanta e diz “padre maripar”, [que] quer dizer padre castiga, padre mata. Conclusão: em um desses conflitos, os Waimiri Atroari mataram nove pessoas da expedição. Restou o mateiro Álvaro Paulo da Silva, que ajudou a reconstruir essa história.

E a partir desse momento, a mídia hegemônica começou a dizer que os Waimiri Atroari eram os criminosos, assassinos, os incivilizados, os bárbaros, os brutos, cruéis e, do outro lado, os heróis, aqueles que iam pacificar, os bons, os que sofriam a ingratidão dos indígenas.

Manaus, naquela época, tinha cerca de 200 mil pessoas, então eu lembro, eu era criança. E aquele pavor que [foi] a cidade, porque eles pegavam os helicópteros em voos rasantes com os sacos dos corpos da expedição. Então ficou muito essa divisão entre o bem e o mal. E eu lá, em um desses rituais na Catedral Metropolitana, com meu cartaz cor-de-rosa pedindo a invasão da estrada, porque era isso que eu estava condicionada.

E depois, com as pesquisas etnográficas. Tem um trabalho excepcional que se chama “Censuras e memórias da pacificação Waimiri-Atroari”, onde o etinólogo narra como, nessas entradas, ficou muito dividido os funcionários, os representantes do Estado brasileiro. Aqui os que sabem, lá os que não sabem, aqui os que trabalham, lá os preguiçosos, aqui os bons, lá os maus.

Para esse contato, foram ex-presidiários, pessoas com vícios de alcoolismo. Eles ridicularizavam os Waimiri Atroari com apelidos, eles romperam toda a organização econômica social. Os indígenas eram obrigados a acordar com as ordens “trabalhar, porra! Trabalhar!”.

A memória era proibida, ninguém podia falar da sua história. E esse etinólogo se aproximou com muita sensibilidade de uma indígena chamada Amélia. O corpo dela tremia, e ela contava relatos de bombardeios, perguntava porque que quando a aproximação dos não indígenas as pessoas morriam.

E eu já estava com todo esse material recolhido, os conceitos acadêmicos, a bibliografia, a metodologia, a pesquisa nos jornais. Na hora de escrever, era como se desses conceitos, dessas tabelas, dessa bibliografia, rompessem aqueles semblantes, aqueles perfis, aquelas vozes. Era como se esses “personagens” me perguntassem “puxa, mais uma vez nós vamos ficar com nosso rosto escondido através de teorias, através da bibliografia?”.

Todo esse aparato acadêmico que eu respeito muito, mas eu acho que a literatura consegue ir além um pouco, ela vai passando por esses conhecimentos. E me veio muito pessoalmente um tormento, eu me perguntava “o que a memória histórica produziu sobre alguns grupos de mortos?”. E foi quando eu disse “não, o que vai me salvar aqui é escrever literatura”. E foi quando surgiu “Um rio sem fim”.

Amazônia Latitude: No romance “Um rio sem fim”, aclamado como uma importante contribuição para a literatura afroindígena brasileira, você é considerada como pioneira. Você poderia nos contar um pouco sobre a inspiração por trás dessa obra? A partir dessa inspiração que você teve, dessa vivência, como você conseguiu chegar no livro? Como se deu a produção do livro e como ela reflete suas experiências e perspectivas como escritora afroindígena?

Verenilde Pereira: Eu tenho essa experiência, como já falei. Nasci de uma mãe negra, de um pai indígena, eu via os conflitos em que eles dois viviam. As brigas normais de um casal eram fundamentalmente pautadas nessa questão, nesses conflitos étnicos. Era a minha mãe dizendo “olha, você é um índio que não aprendeu nem a falar o português direito, seu pé chato” e ele respondendo “você é uma macaca, cabelo de Bombril”.

E o que muito me entristece é que eles morreram sem que eu chegasse para eles e dissesse “olha, esse conflito, essa briga, não é entre vocês. Tem alguém, tem uma ideologia, tem uma branquitude que provoca esse conflito”. Não deu tempo, eles morreram antes que eu tivesse uma compreensão disso.

Amazônia Latitude: E até a compreensão de que você se tornaria uma escritora referência na questão afroindígena no Brasil.

Verenilde Pereira: É, porque é de tanta vivência. E há quem diga que quanto mais vivido, mais bem escrito. E era a literatura me perseguindo, como “olha, a única forma que você tem de se salvar disso tudo e de um dia poder contar a história nessa perspectiva é a literatura”.

Amazônia Latitude: Mas quando você começou a tese de mestrado, isso ainda não estava de forma alguma na sua intenção maior, não é?

Verenilde Pereira: De jeito nenhum. Muito pelo contrário, foi essa inquietação de uma vivência, de uma experiência, de tanto que eu vi, que era como se os personagens me obrigaram. Eu fui uma escrava desses personagens. Eles me escravizaram, “ou você faz essa literatura ou, então, tudo vai por água abaixo”. E é quando surge “Um rio sem fim”.

É justamente com a chegada de um missionário numa região paradisíaca da Amazônia com vários grupos étnicos. Ele chega de uma Europa fechada com suas verdades, a Europa lacrada como se o mundo tivesse sido construído ali, [como se] não houvesse mais mundo. Ele chega diante desse paraíso. E vai ter sempre uma referência do cristianismo ocidental. Ele vê que o mundo é percorrível, o mundo não terminou ali, mas tem aquelas pessoas que não alcançaram o patamar do que seria a humanidade.

No ímpeto que pode ser considerado até generoso, ele vai dizer “eles, para serem humanos verdadeiramente, humanos acabados, eu sou o paradigma”. Ele começa a destruir, inconscientemente, toda aquela rede simbólica de signo, de hábitos, de cultura, sem ter noção exata de que, dessa forma, ele estava contribuindo para uma destruição.

Então ele chega lá com toda aquela virilidade, aquela força cristã, física, intelectual e de transformar aquelas pessoas em seres à sua imagem, à sua semelhança. E comece a dominar. Ele tem uma força de dominação muito grande e ele estabelece quando é o dia, quando é a noite, quem é o bom, quem é o mal, quem é o leal, quem é o traidor.

E com isso, ele vai abrindo elos, com outras instituições que vão, também, destruir e provocar genocídio, etinocídio. Mas ele não se dá conta, tão obcecado pela dominação, tão obcecado por transformar esse mundo ao que ele chama “à sua imagem e semelhança”. Se são seres humanos, tem que ser igual a mim não é? E, depois, ele mesmo se transforma no abjeto.

Amazônia Latitude: É impressionante a atualidade de “Um rio sem fim”, porque ele foi escrito no século passado. Como é que você percebe o impacto e a relevância que está presente na sua obra em relação aos desafios e tudo que está se discutindo agora?

Verenilde Pereira: Tem passagens nesse livro em que a literatura tem esse poder, às vezes, de prenunciar, de anunciar o que pode acontecer. Por exemplo, esse bispo. É como se estivesse em 1500, aquela chegada meio transtornada. E há passagens que é como se você estivesse vendo, por exemplo, a situação dos Yanomamis. E já prenuncia o que seria essa invasão de garimpos, as próprias moléstias terríveis, as epidemias, os envenenamentos. Tudo isso está contido nesse livro. Ele é um prenúncio.

Por exemplo, tem uma situação de um indígena, que é o pajé Tomás, tem um surto epidêmico e ele já não pode fazer os rituais dentro da maloca, porque já construíram o cemitério cristão. E ele é um indígena que nunca se deixava permitir essa relação com os não indígenas. Quando os não indígenas chegavam, ele corria pro mato ou pro fundo da rede, nunca aceitou ser batizado. E ele morre nesse surto epidêmico, que parece muito essas imagens dos Yanomamis e outros.

Antes de morrer, ele vê toda a destruição simbólica dos signos dentro da maloca e ele quer dizer alguma coisa e não consegue, ele só está nesse momento de sofreguidão. E aí perguntam “e quem morreu?”, “ah, foi aquele indígena, o Tomás, aquele indígena rebelde que não aceitou se quer ser batizado”. “E o que foi que ele disse?”, e outra pessoa responde “não, ele não conseguiu dizer, porque morreu antes. E se tivesse dito de que adiantaria?” Ou seja, de que adianta? Quem ouve essa voz? Quem considera essa voz? Quem dá direito a essa voz?

É uma questão absolutamente atual, se você relacionar com essas minorias no étnicas. E o que a literatura vai fazer é recolher essa sofreguidão e levar o leitor a essa possibilidade. O que ele teria dito se tivesse conseguido? Essa é a minha interrogação.

Amazônia Latitude: Você aborda com uma sensibilidade única questões de marginalização e resistência na sua obra. De que forma você enxerga o papel da literatura na desconstrução dos estereótipos e, ao mesmo tempo, na amplificação das vozes de grupos marginalizados na Amazônia?

Verenilde Pereira: Eu acho que aí você tem que considerar a literatura como um instrumento político. A literatura é um instrumento político. Ela começa a ser política no momento em que o escritor ou a escritora se depara com um arcabouço linguístico com tantas mil palavras, com uma norma gramatical. E, às vezes, tem um personagem que pode estar num estado limite ou quer dizer alguma coisa e não consegue, e é quando o escritor começa a manobrar essa situação.

Como romper com o fascismo da língua? A língua é fascista. E você encontra estratégias. Ou você faz um personagem silenciar, ou dá um semblante meio incompreensível, ou ele murmura algo. Essa é uma atitude política, já começa aí. E ela é política, também, porque ela coloca em cena esses personagens, que na minha visão são indivíduos. Você constrói indivíduos, coloca esses seres singulares num cenário e eles vão produzir uma relação entre eles.

Se há um lado que oprime, que mata, que escolhe os seres que vão ser descartáveis ou não – se a literatura é meio primária entre o bem e o mal – e se existe um lado que é a vítima, que é o violentado, se um desses lados ganha, digamos assim, é um interesse. Mas o que importa nisso é que o jogo político foi feito, não tem saída. Ela pode ser considerada depois, “ah, essa literatura é existencialista de direita, é marxista de esquerda”. Não interessa, interessa é que o jogo político é intrínseco.

Amazônia Latitude: Em meio a tantos personagens, vamos falar das Marias. Tem a Maria Rosa, a Maria Rita, a Maria Índia e tem a Maria Assunção, que é a única não 100% indígena, não é isso?

Verenilde Pereira: A gente não pode considerar assim, isso é ficção. A ficção sempre tem, sempre vai ter, um fato no meio dela. Sempre tem um ato concreto. A imaginação não nasce do nada. Muito pelo contrário, às vezes a própria imaginação te leva a um fato.

E essa questão no Amazonas foi muito comum na década de 1960, 1970, 1980, que as ribeirinhas, indígenas, eram mandadas pras famílias tradicionais para serem civilizadas, para estudar. Na verdade eram uma escravização. E era a elite amazônica, que eu conheço muito bem, que sempre teve esse hábito.

Nessa história existem personagens que são meninas que são mandadas da missão por esse bispo tão intrigante. Elas são mandadas pra serem “civilizadas” na família tradicional amazonense manauara. E tem uma delas que se chama Maria Assunção, que vive na missão, e ele percebe nela aquela força libertária que ele jamais teria coragem de assumir ou de sentir. Ele é muito fraco, depois você vai ver que é uma pessoa muito frágil.

E enquanto criança, ela vai percebendo toda essa força destrutiva que a civilização “vai levar”. Ela não tem sequer vocabulário ou repertório para dizer, então ela fala em frases, no olhar, e ele começa a ter medo dessa força dela, que ele deseja, mas ao mesmo tempo aterroriza.

E ela parte com quatro meninas para Manaus. Vai essa Maria Assunção e Rosa Maria. Rosa Maria é uma menina que, dentro do conhecimento da psiquiatria, ela já apresenta algumas singularidades. E ela termina dentro do que se pode chamar de enlouquecimento. Elas partem e, falando mais de Rosa Maria e de Maria Assunção, elas vivem juntas por algum tempo numa casa de família da elite Baré, elite Manauara. Até o momento em que Maria Assunção foge dessa casa. A opressão é tão grande que ela foge e deixa Rosa Maria, que já apresenta problemas.

A Rosa Maria é muito simbólica e também não é simbólica, porque isso se deu a nível factual. Ela passa pela missão, vai morar nessa casa de família, passa pelo casamento e vai viver, depois, na rua, uma vida inautêntica. Uma total ridicularização dessa personagem enlouquecida. Simbolicamente, ela termina em trapos, na mendicância e na loucura. Ela vai se despindo dessas roupas a medida que o tempo passa.

Depois das duas separadas, Maria Assunção vai atrás dela em Manaus. E quando a encontra, ela [Maria Rosa] está fisicamente destruída. Maria Assunção começa a chamar por Rosa Maria, que era a forma como elas se comunicavam, eram muito unidas, e Rosa Maria dá um meio sorriso. Você não sabe se ela ri ou se aquilo é apenas fisicamente. Não se sabe se há um reconhecimento. Essa interpretação fica entre o leitor e o personagem. O autor já não tem nada a ver com isso, porque é quando a literatura te obriga a um silenciamento. Para você colocar “ela está rindo de verdade?”, “isso é só um gesto físico que não tem nada a ver?”.

É quando Maria Assunção volta pro Rio Negro para contar sobre esse fato, esse final, esse aniquilamento do qual Rosa Maria foi uma vítima.

Isso é baseado muito, porque eu vivi numa rua que chamava rua Silva Ramos. Eu me encontrava muito com uma indígena. A gente ficava, na vida real, brincando de catar papel de balinha e colocando pedrinha dentro. E quando eu voltei para fazer o mestrado, que era atrás da Maria Rita, eu soube. Eu soube que ela havia ficado no mundo da rua também, que era absurdamente comum na época. Lembro que década de 1960, 1970, não havia movimento de mulheres, movimento indígena. Ser negro, ser indígena, ser mulher era algo pavoroso.

Depois, eu fiquei sabendo que ela tinha casado com o dono de uma oficina de restauração de móveis, e não sei o que mais, e acabou se suicidando também.

Então há sempre um fato nisso que se chama imaginação e ficção. Não é tão simples assim. A literatura se constrói de fragmentos, fragmentos do que se ouve, do que se vê, do que se experienciou, do que se imagina, dos meus sonhos, dos sonhos dos outros que eu ouço, e vai se construindo.

Amazônia Latitude: Você fez uma pesquisa de mestrado sobre violência jornalística contra o povo Waimiri Atroari, que abrange os estados de Roraima e Amazonas, em conflito com essa missão católica na época da construção da BR-174. Eu queria entender como essas experiências e pesquisas influenciam e permeiam até hoje o seu trabalho literário, seu ativismo e de que forma essas vivências impactam a sua visão de mundo e o seu engajamento cada vez maior na luta pelos direitos dos povos tradicionais.

Verenilde Pereira: Além do meu próprio nascimento, como já contei aqui, eu fui professora em seringal, no Rio Purus. Eu dava aula para ribeirinhos, para indígenas, os Apurinãs. Depois, eu fui uma das que participaram na fundação do primeiro jornal que tratou apenas da questão indígena, que foi o Porantim, fundado em Manaus. Porantim quer dizer “remo mágico”. E depois, também, eu trabalhei em todos os jornais de Manaus – A Crítica, A Notícia, Jornal do Comércio, em todos eles – tratando, especificamente, da questão indígena, numa época em que não era tão comum essa questão ser levada, tanto que não partia de um editor. Eu pegava, do meu jeito, atitude minha, e ia em aldeias cobrir surucucus naquele momento das primeiras invasões feitas por Altino Machado.

Davi Yanomami era um adolescente ainda e ele já previa tudo. Sabe, tem uma matéria minha que se chama “Seita do Mineral” onde ele já pronuncia tudo isso que o garimpo iria causar. Quando ele diz “poxa, quando entrou a perimetral, eu perdi minha família. A estrada está aí, e eu estou sem família”. Ele falava de tudo isso que poderia acontecer, um visionário já anunciando isso. Então toda essa minha trajetória ajudou na construção de “Um rio sem fim”.

Amazônia Latitude: Como foi a sua experiência na criação do jornal Porantim? Como você atuou nas campanhas de resistência em defesa desses povos indígenas, como aquela campanha de resistência dos Waimiri Atroari? Nós queríamos que você compartilhasse alguns desafios enfrentados e os impactos que esse jornal, principalmente o Porantim, teve na promoção da visibilidade e defesa dos povos indígenas.

Verenilde Pereira: O Porantim começou no final da década de 1970? Era ligado à igreja católica, e havia essa questão “ah, mas vocês vão se ligar à igreja?”. Mas era uma igreja com essa visão progressista, era a instituição que tinha no momento para combater um Estado, umas instituições responsáveis pela sobrevivência indígena que eram absolutamente genocidas e etnocidas. Era a instituição que tínhamos e também nos jornais. Foi quando eu fiz essa viagem para o Rio Negro, que na época também começava muito forte a questão da mineração em terras indígenas.

E houve o episódio da minha prisão, que me marcou muito, mas eu passei décadas sem falar nisso, até esqueci. Eu acho que uma forma de falar indiretamente sobre ela está, também, nesse livro. Mas é algo que passa pelo esquecimento de um fato, de um ato, e você não sabe como, racionalmente, resolver um problema, resolver um trauma. E de uma forma imperceptível.

Eu vejo, agora, muito mais claramente como há uma ressonância desse episódio em “Um rio sem fim”. Tem uma pensadora que eu gosto muito dela, que se chama Hannah Arendt. Ela diz que a pura violência é muda, e, por isso mesmo, a violência jamais vai ter grandeza. A pura violência que ela se refere é quando o sujeito está absurdamente aniquilado, ele já não geme, ele já não fala, ele já não sussurra.

O que eu acho que é feito em “Um rio sem fim” e o que a literatura pode ou não fazer, às vezes consegue, às vezes não, é colher esses sussurros, esse meio riso de Rosa Maria, essa pergunta que uma indígena faz sempre que vai na beira do rio, “e as outras meninas, onde estão? E as outras, onde estão? E não tem essa resposta. O que ela faz é coletar essas histórias que a mim era tão escondida, era uma forma de você evitar o grande terror, o grande sofrimento. Mas é uma forma da não aniquilação, também, dos personagens e da própria escritora, do próprio autor.

Amazônia Latitude: Você tem experiência como professora de Jornalismo em Manaus e Brasília, influenciando a visão e a formação dos novos escritores na Amazônia. É importante saber se a essa altura, quando da sua militância e do exercício da profissão como jornalista e professora, você já percebia essa ausência da historiografia amazônica em relação à presença negra na região.

Verenilde Pereira: É lógico que eu tive uma grande aceitação de grande parte dos estudantes. Em casa, eu guardo bilhetes e agradecimentos, mas nem sempre era assim de todas as partes. Teve uma faculdade de Jornalismo aqui em Brasília em que eu ouvi o diretor dizendo “esse o currículo dessa professora tem muita questão indígena. Para que a gente vai querer isso aqui?”.

Em outro local, era uma semana da comunicação, então nós levamos alguns indígenas do Javari que estavam aqui. Isso provocou minha demissão. Então era uma questão da exclusão mesmo. “Para que servem essas vozes, para que servem essas histórias?”. Isso já em 1990, 2000, então não era algo que tinha uma abertura, não houve essa receptividade.

Amazônia Latitude: Quais são as suas considerações finais, uma mensagem conclusiva que você gostaria de transmitir com o seu trabalho na Amazônia? E o novo projeto da reedição de “Um rio sem fim”?

Verenilde Pereira: O que eu vejo de bem interessante nesse livro é que ele é uma síntese do tempo. Você não sabe se está em 1500 ou hoje ou o que virá. Mas o que eu diria é acredite na força da literatura. Você vive a sua vida prática, paga o boleto, vai na manicure, paga, compra o gás e vai pro trabalho. Mas chega um momento em que isso não é o suficiente, você abre um livro, você quer ver como é que o mundo recai sobre um personagem. Como o mundo faz com que esse personagem, esse sujeito, vá por esse caminho, como é que ele lida com a mundanidade que recai sobre eu, sobre você, sobre todos nós.

Nesse momento, a literatura exige esse silêncio. É quando você percebe sua subjetividade. “Puxa, eu estou interpretando desse jeito, então eu tenho isso dentro de mim”. É quando você cria a sua subjetividade ou fortalece, é quando você se vê como um sujeito, que é a sua história, mas também é a história desse outro indivíduo, desse outro personagem.

Quando se fala na questão indígena, na questão da negritude, da branquitude, você está contando uma história que aconteceu com esses indivíduos dentro de uma cultura, dentro de uma época de mundo, dentro de uma ideologia. Como tudo isso recai sobre um sujeito, como Rosa Maria, Maria Assunção, como Maria Rita, como Maria Índia, como um bispo tão obcecado pela sua generosidade cristã, que ele acreditava, de formatar um homem na sua inteireza, uma humanidade à sua imagem e semelhança.

A literatura passa por essas situações, que eu acho importante nesse momento de Amazônia como região, como essas complexidades todas que recaem no mundo inteiro. Mas a literatura quer mais. Ela passa pelos conhecimentos da história, da antropologia, da geografia, sociologia, mas ela quer alguma coisa que ainda não foi dita, um inefável, um invisível, o que não foi aprendido ainda. Então, vai continuar sendo um algo sem fim. Enquanto esses seres humanos, essa espécie continuar, as questões não terminam.

Amazônia Latitude: É como um rio sem fim, literalmente, uma metáfora mais do que apropriada. Nós gostaríamos de saber quais são os seus projetos e planos, inclusive, para a reedição de “Um rio sem fim”.

Verenilde Pereira: “Um rio sem fim” foi um livro que o meu orientador, na época, disse “olha, publica”. Teve uma segunda parte da dissertação onde eu justifico porque, para mim, foi impossível não escrever literatura. Então você vai teorizando, Walter Benjamin, Julia Kristeva, esses autores todos. E ele disse “olha, publica que vale a pena publicar”. Então, na intuição, eu mesma fiz a edição de 3 mil exemplares. Mas eu não dava muita atenção, então ele foi distribuído assim: eu colocava na parada de ônibus, depois o carroceiro passava e já incinerava tudo. Eu deixava em bancos, entregava nos ônibus. Certamente não foi tão lido como eu imaginei.

Então um rapaz, por um acaso, comprou esse livro num sebinho lá em Manaus e deixou, também, na estante, jogado fora. Depois, quando ele foi ler, acho que ano passado, ele é um teórico da Literatura, ele disse “como um livro desse ficou escondido por tanto tempo?”. E outro rapaz, um outro teórico da comunicação, Rodrigo Simon, leu e achou que era uma obra muito intensa, uma força de escrita muito potente. E fui convidada para uma nova edição.

Amazônia Latitude: Quando sai?

Verenilde Pereira: Era para ter saído em abril, agora ficou para outubro. Realmente não tenho uma previsão exata. Mas eu acabei de escrever “São teus os nossos desencontros”, que é uma questão que é da humanidade, mas é, também, especificamente da Amazônia.

Print Friendly, PDF & Email

Você pode gostar...

Assine e mantenha-se atualizado!

Não perca nossas histórias.


Translate »