Roger Casement e o registro da barbárie contra indígenas na Amazônia
A foto símbolo do Putumayo, o Paraíso do Diabo, é a velha mulher esquálida que aparece numa rede de tucum, ao lado do fogão apagado, onde pousa uma panela de barro coberta da fuligem de um triste passado, formado por assassinatos, processos de escravização e outros crimes cruéis cometidos contra povos originários da fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru.
A fotografia, de autor desconhecido, se imprimiu no livro de Walter E. Hardenburg, THE PUTUMAYO: The Devil`s Paradise, Londres (1912).
Segundo Jean Pierre Chaumeil, no livro Imaginário e imagens da época do caucho: Os sucessos do Putumayo, a imagem foi publicada ainda na revista peruana Variedades (n° 235, vol. VIII, 1046-47), bem como na Peru To-Day (vol. n° 6: 305-306), também em 1912.
O que chama a atenção são as legendas no rodapé da fotos; numa dizia “Uma indígena condenada a morrer de fome no Alto Putumayo”, na outra, “Uma escrava uitoto agonizando no rio Yubineto dos peruanos da Casa Arana”.
A fotografia alinhou-se ainda a todas as formas de poder, no sentido de especular e observar. Ela também passou a ser empregada para chamar a atenção do público e provocar fortes emoções nos espectadores, às vezes para sustentar a história que os autores pretendiam contar, não importando o contexto das verdades em que foram registradas.
Para os indígenas do Putumayo, os retratos só provocavam estados de medo ou de zombaria, a exemplo de uma outra fotografia que merece nossa atenção, como a que ilustra a capa do livro de Walter E. Hardenburg, onde quatro indígenas aparecem presos a correntes e cadeados.
Segundo Chaumeil, essa foto é a que causou maior impacto na sociedade vitoriana inglesa, pelas cadeias que trazem a imagem do escravismo, justamente numa das maiores nações que lucrou com a venda de escravos na América. Porém, se trata de outra fotografia que não tem autor, nem data, nem um local específico de registro.
Outra foto que ficará para a história das atrocidades do Putumayo é a fotografia do explorador Eugène Robuchon, rodeado de indígenas uitotos. O registro foi feito pelo fotógrafo espanhol Manuel Rodríguez Lira, entre 1902 e 1906. Ambos estavam a serviço da Peruvian Amazon Rubber Company. A última foto do explorador foi em 1906, depois ele desaparece sem deixar “rastros”.
O último relato é de que foi visto próximo ao rio Canihuari, perto da estação Matanzas, quando Armando Normand era o chefe da seção Andoque. Muitas são as especulações do sumiço do Robuchon, mas a hipótese mais provável é que ele tenha documentado os crimes da Casa Arana, a qual estava iniciando seu registro na Câmara de Comércio de Londres, tornando-se uma companhia inglesa.
No entanto, outro nome teria uma passagem mais relevante pelo Putumayo, o qual faria registros fotográficos e textuais importantes sobre as condições nas quais viviam os povos originários daquela região. Ao todo, mais de trinta imagens registram a passagem de Roger Casement no Putumayo, e o mais importante: com devidas anotações sobre os registros.
Ele havia adquirido uma câmera fotográfica antes de ser nomeado Cônsul Geral da Grã Bretanha, no Rio Janeiro, inclusive havia revelado fotos sobre sua passagem pelo sudeste brasileiro, o que comprova a nova forma de Casement apreender a realidade através da imagem analógica. Era a maneira como ele compartilhava suas viagens e experiências no novo mundo. Nessa época, a fotografia já havia se incorporado no imaginário dos britânicos e europeus.
As fotos de Roger Casement eram visualizadas com um enfoque paisagista ou o retrato de corpo inteiro dos “aborígenes” habitantes das comunidades em que ele transitava. Esse era o cenário que ele gostava de registrar com sua câmera: o esplendor da natureza e a beleza do corpo humano dos nativos.
“Um meninozinho de não mais de oito anos, tão pequeno que nem tinha fono [tanga], completamente nu, tinha as costas e coxas cobertas de marcas – largos vergões e açoites. Uma visão abominável. E tinha, também, uma carga bem grande de borracha. Devia haver por volta de trinta rapazes e crianças levando carga, alguns deles pingos de gente de cinco ou seis anos. Estes últimos levavam apenas cestas de comida. Eu diria que o mais jovem que transportava uma carga de borracha tinha perto de sete anos e os demais até dez ou doze. Bustamante escondeu, ou tentou esconder, um dos boras robustos, com cicatrizes sangrentas de açoites recentes. O índio foi levado para cima com um lenço sobre as nádegas nuas. Falei com vários homens e meninos, mas todos pareciam meio tontos e apavorados e, quando consegui que alguns posassem para fotos, pareciam ter recebido uma sentença de morte. Era impossível tranquilizá-los, pois nem Sealy nem Bishop falavam a língua dos boras ou dos andoques”. (Casement, Roger. Diário da Amazônia. pág. 217).
A respeito desta fotografia, registrada no Putumayo em 19 de outubro de 1910, Roger Casement desejava evidenciar a crueldade dos agentes da Peruvian Amazon Rubber Company, quase sempre silenciado pelos funcionários e autoridades públicas de Iquitos, através de interesses econômicos e políticos do capital inglês, que fazia vista grossa em prol do lucro que lhe rendia a borracha na indústria automobilística europeia.
A fotografia em questão aborda o castigo a crianças que não obedeciam ou não cumpriam a tarefa de carregar a borracha.
Nesta foto vemos a edição do autor de contrastar a expressão, quase sorridente, do indígena adulto e da criança castigada, nua e assustada. Desta forma vemos como Roger Casement começa a registrar a realidade na qualidade de membro da comissão investigativa da Câmara dos Comuns no território do Putumayo.
O sentido prático da imagem fotográfica para o cônsul era de ter provas de escravismo e violência contra povoações aborígenes na Tríplice Fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. Mas, as imagens que a lente de Roger Casement registra, não só capturam provas no seu obturador, como também outras imagens que são escolhidas de acordo com a beleza paisagística ou corpórea de personagens desconhecidos ou invisíveis no cenário de operações da comissão.
A maioria das fotografias de Roger Casement tinham anotações ao pé da foto, pequenas frases que, em certa medida, lhe outorgava veracidade. Suas fotografias eram certificadas de veracidade na medida que casavam-se suas anotações com a imagem, reforçando a veracidade do Diário de Roger Casement.
Geralmente, o fotógrafo posicionava os nativos em seus retratados, em fila indiana ou horizontal, a fim de capturá-los num breve instante do momento, como podemos observar na foto abaixo, onde se enfoca meninas indígenas, com o propósito de mostrar seus desenhos e os adornos que elas usam no baile das frutas, da maloca da comunidade resígaro.
Roger Casement dialoga com as fotografia de Thomas Whiffen nesta ocasião. A foto XII do livro The North-West Amazons: notes of some months spent among cannibal tribes é muito parecida com a de Casement, mas o enquadramento está muito mais próximo das meninas indígenas, o que produz um relacionamento mais próximo com os retratados, enquanto o Whiffen se afasta de seus fotografados.
Mas o sentido do texto chama atenção à posição que o autor tem das vestimentas dos indígenas, o qual é a favor das indumentárias aborígenes, que lhes daria uma elegância e formosura, em vez das roupas de algodão que os degrada e rebaixa sua condição indígena bon sauvage.
Whiffen escreve ao lado da sua foto de um grupo de mulheres resígaros:
“Dei-lhes algumas roupas, mas a menos que eu estivesse presente e temessem que eu ficasse com raiva, nunca as usariam. Para essa atitude, tinham cinco excelentes justificativas. Se o sol estivesse ardente, os raios solares danificariam a roupa, por causa do desbotamento da cor. Se chovesse, a roupa ficaria molhada. Se estivessem na mata, os espinhos perfurariam e rasgariam o tecido. Se estivessem dançando, esconderiam todas as suas pinturas feitas cuidadosamente. Se estivessem em casa, usar qualquer tipo de roupa seria simplesmente ridículo. Obviamente, havia pouca ou nenhuma oportunidade para usar o novo, mais pesado e inútil vestido. Isso não significa que o homem ou a mulher não se preocupem com a aparência, muito pelo contrário, pois seus adereços são mais importantes do que as vestes; na verdade suas indumentárias são suas vestes” (Whiffen, pág. 149).
Os registros fotográficos de Roger Casement foram enfocados nessa consciência de que as suas vestes autóctones eram belas e originais para a ocasião cerimonial.
“Os índios começaram a chegar para a dança a partir das onze da manhã. Homens, mulheres, meninos, meninas e crianças ‘carregadas nas costas’, não crianças de colo, a maioria das mulheres completamente nuas, pintadas de vermelho e amarelo, por vezes artisticamente, com penugens nas pernas. Os Homens são todos menores que o normal, alguns esqueléticos, ou pelo menos desnutridos, braços e pernas miseráveis, alguns vestidos apenas com o fono (é uma estreita tanga de casca de árvore que cobre a genitália, usada pelos índios das tribos da Amazônia), sua roupa de trabalho nativa, mas outros em ‘roupa de gala’, isto é, com uma camisa suja de algodão e um par de calças xadrez. […] A meu ver, os homens nus usando fono têm uma aparência muito melhor do que os pobres espécimes de camisa e calça. A dança começou irregularmente em grupos e procissões e, gradativamente, aumentou e se desenvolveu. Fotografamos muito, Gielgud e eu. Visitamos o alojamento dos índios (a casa dos muchachos) onde eles dançavam à tarde e à noite” (Casement, pág. 94-95).
Lembremos que, nessa época, início do século XX, as fotos dos índios do Putumayo que se passavam na sociedade europeia, que portanto transmitiam a realidade desses povos, eram somente as imagens de escândalo e terror.
A imprensa londrinense e europeia expuseram as fotos, com esse interesse, de transmitir aos espectadores esse horror abominável do paraíso do diabo, que havia denunciado a revista Truth, a fim de chamar a atenção do mundo para esse genocídio que sofriam naquela ocasião os povos do Putumayo.
Ainda que muitos dos retratos do cônsul Roger Casement sejam de plano americano ou inteiro, e em algumas poucas ocasiões plano médio, provavelmente, ele tinha a perspectiva que exigia o retrato: indicar o tamanho do corpo e a virilidade do retratado. Mas isso não quer dizer que ele tenha intenções de voyeurismo no seu olhar fotográfico. Isso podemos comparar nas fotos de indígenas, negros e mestiços.
Enquanto os retratos dos indígenas e pretos luziam com beleza de uma composição ingênua, em câmbio, os retratos de mestiços ou brancos, os olhares destes parecem dissimulados que remetem à sedução. Mas, em ambos casos os retratos têm a intencionalidade de mostrar o homem latino-americano.
No ano 1910 mostrava-se a supremacia do homem europeu, que conquista altas montanhas, que atravessa desertos e glaciares, fortes militares e políticos da elite nobre, que em câmbio, os mestiços eram de corpo lascivo e sem caráter, e que os escravos índios e pretos eram belos por natureza. Essa seria a mensagem de seus retratos do homem sul-americano.
Desde o final do século XIX e início do XX o perfil do homem sul-americano estava baseado no determinismo, desse modo suas origens eram indígena, africana ou ibérica. Mas, o meio era um território pobre e hostil.
Para o fotógrafo Roger Casement essa teoria estava errada, no que diz respeito ao homem originário destas terras, que para os ibéricos, “não cristãos” não eram cidadãos, estavam “fora da jurisdição da autoridade civilizada” .
“[…] O homem é um misto de fraqueza e boas intenções. Mas as raízes do mal são muito mais profundas do que o seu esforço inócuo de reforma pode alcançar. Tenho certeza disso, mas mesmo assim seu esforço é o único que se apresenta; é um início, um esforço pessoal e sincero, de um cidadão peruano honrado, de endireitar um estado de coisas, tarefa que ninguém, fora do Peru, pode se propor realizar.” (Casement, pág. 82 e 83).
A mesma noção tem Euclides da Cunha sobre o homem autóctone, “O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte”.
Durante esses sete meses (entre 1910 e 1911) que Casement passou na Amazônia, a vida cotidiana na região amazônica continuava igual, violenta e exaurida, parecia que a terra do paraíso do renascimento tinha se transformado, em menos de cem anos, num inferno de injustiças contra os selvagens.
As fotos de Roger Casement registravam essa tragédia que a exploração da borracha provocou no Putumayo resultante de um regime brutal de uma companhia inglesa de extração de borracha que, de forma infame, preferiu o lucro ao ser humano. Nesse sentido, as fotografias de Casement constituem um testemunho das atrocidades que os indígenas boras, ocainas, andoques, uitotos, muinanes e resígaros sofreram no seu território, que para seu triste destino, era abundante de látex vegetal, tal como hoje sofrem os yanomamis e mundurucus pela extração ilegal de ouro.
No dia 29 de setembro de 1910, Roger Casement não conseguiu dormir, acordou às 3 da manhã. Os horrores dos crimes da Peruvian Amazon Rubber Company o tinham mantido em estado catatônico.
Para preencher o tempo ele reelaborou as perguntas que faria aos súditos barbadianos da companhia, e escrevia o que havia vivido no dia anterior: “O baile desta noite promete ser um grande sucesso, muitos indígenas haviam chegado a partir das 11h em diante, as mulheres em sua maioria nuas, os homens (todos de tamanho menor), alguns de calça e camisa sujas, mas a maioria de fonos. Muitos deles cujos membros estão nus apresentam marcas claras de açoite, um menino pequeno, uma criança, vergões vermelhos bem recentes não curados e muitos outros meninos mostram marcas de açoite. Haverá quase mil pessoas aqui esta noite, toda a população deste distrito. Vejo muitos rostos que vi em Naimenes. A dança foi um sucesso. Eu fotografei muitos deles, eu nunca vi algo mais patético, eles movem a pessoa a uma pena profunda”.
Conclusões do Putumayo à Irlanda
Casement, mais tarde (quando reveladas as fotografias) interpretaria o que essas imagens representam e pelas quais deixariam marcas profundas na sua vida. Ele, naquele momento, estava preocupado com os índios do Putumayo, na sua triste condição de opressão, que inevitavelmente o transportava a sua amada Irlanda, a qual passou por séculos de sofrimento e fome, por causa de um regime muito mais sanguinário que os cruéis capatazes colombianos, peruanos e bolivianos da empresa inglesa de borracha.
A fotografia de Roger Casement procura transmitir, ou melhor dito, testemunhar essa tragédia de ambos povos – Putumayo e Irlanda, através de seu material fotográfico no interflúvio Cara-Paraná e Igara-Paraná.
No século das luzes, da hegemonia da civilização ocidental, no noroeste amazônico pareceria que o passado da humanidade permanecia inalterado, e que os representantes americanos do progresso da sociedade liberal não conheciam outro modo de inseri-los à “civilização”, a não ser através da chibata, do tronco e do cepo do escravismo colonial europeu.
As impressões fotográficas do Roger Casement queriam retratar esse testemunho do lado obscuro do capitalismo selvagem da companhia inglesa.
Para Casement, o genocídio dos povos do Putumayo provocado pela Peruvian Amazon Rubber Company, não é de um grupo de homens brancos que administravam a empresa na barbarie da selva, senão de toda uma cultura da sociedade anglo europeia, que devora as pobres economias latino-americanas, impondo seus ideais de supremacia.
No dia 21 de outubro de 1910, Roger Casement, às 11 da manhã, fotografou uma criança, acreditamos ser um adolescente, que caminhava cambaleando até, finalmente, cair quase desmaiado. A criança estava gemendo em sua língua nativa, dizendo que estava morrendo. Ninguém quis ajudá-lo! Roger Casement deu-lhe então comida e uísque.
A Comissão responsabilizou-se pelo menino e sua velha avó. Ambos se restabeleceram. “Graças a Deus”! Escreveu em seu diário Roger Casement.
O álbum de fotografias da viagem de Roger Casement revive e devolve a seus olhos a memória desses dias tristes que viviam os indígenas no Putumayo, diante do império de terror que era a administração da companhia inglesa de borracha, emolduradas pela floresta amazônica, que denota uma precisão a seu relatório sobre os “sucessos” no território do interflúvio entre o Putumayo e o Caquetá.
O álbum de fotografias de Roger Casement reflete a identidade do fotógrafo, que através de um “click” registra o instante de um tempo, escolhido por ele para a posteridade. Roger Casement registra uma imagem num contexto de fronteira entre dois mundos que não se encontram, senão para a satisfação enriquecedora de um em desmerecimento do outro, onde o cônsul irlandês reconhece as marcas do capitalismo inglês, através da plus valia intrínseca, na submissão do território indígena.
Assim pois, este álbum de fotografias de Roger Casement contribuem para denunciar o genocídio que ele estava assistindo in loco. Que no seu relatório não o diz explicitamente, mas que está na sua essência, nas suas fotos e em sua assinatura, que assim o atesta.
A barbárie que Roger Casement assiste causa-lhe um mal-estar que lhe provocará um novo pensamento sobre sua presença no Foreign Office, da sua majestade o rei Jorge V, que havia assumido fazia poucos meses o império britânico. As suas fotos em preto e branco refletem a zona cinzenta do território do interflúvio do Putumayo.
O álbum de Roger Casement não tinham, simplesmente, o propósito de registrar os horrores da Peruvian Amazon Rubber Company, senão também criticar e denunciar os escândalos da companhia inglesa, de ter uma imagem da memória desses indígenas que lhe lembra seus irmãos irlandeses, e que desembocará num ato revolucionário na independência da Irlanda.
A imagem do ocorrido no Putumayo agora forma parte de seu impulso pela libertação dos indígenas irlandeses, constituindo-se numa dialética de mudança contra esse regime de opressão que representa a tirania do colonialismo/capitalismo inglês europeu.
Como fotógrafo das vicissitudes que registra nas secções da companhia inglesa no Putumayo, ele rasteja o bojo do cruel demônio sob as imagens de indígenas tristes e famintos, dominados pelo medo à violência e morte pelos que se dizem preceptores da civilização hegemônica branca. As suas fotografias registram a “dócil” submissão dos boras, ocainas, andoques, uitotos, muinanes e resígaros.
O fotógrafo Roger Casement nos mostra, nas suas imagens, indígenas assustados diante dessa onipresença da cultura do terror do capitalismo selvagem que ultrapassa às imagens etnográficas e antropológicas dos seus antecessores Robuchon, Whiffen e Koch-Grüngerb.
A filosofia das fotografias de Roger Casement era expor as veias abertas do Putumayo, sugadas pelos vampiros do submundo da empresa londrinense extratora de borracha através da ideologia do lucro, através do menor esforço copiado do feudalismo e, posteriormente, o escravismo fundamentado no capitalismo inglês.
Sem a ascendência irlandesa de Roger Casement, teria sido impossível visualizar as atrocidades do Putumayo, pois Casement não via o indígena como um alienado da sociedade contemporânea, senão como um cidadão peruano, igual seus irmãos indígenas celtas.
Toda essa travessia trágica vivida pelo cônsul no Putumayo, a agonia traumática dos índios boras, ocainas, andoques, uitotos, muinanes e resígaros torna-se palpável na Irlanda, diante da vivência do escândalo que marca a opalescência da modernidade, sobretudo, nesse período da 1ª Guerra Mundial.
As suas fotografias serão vistas como lampejos de um passado que está presente na destruição do território, que até esse momento estava relegado da história contemporânea, que começa a ser exaurida em prol da voraz modernidade.
O trauma que viveu Roger Casement no Putumayo será registrado nas suas fotografias, descritas no seu diário ou relatório de violência e terror provocado por uma companhia inglesa, as quais projetam uma luz na sua luta pela independência da Irlanda, ou seja a suas fotografias e seus diários tornam-se um estímulo potente para seguir sua travessia libertária do Putumayo e Irlanda que é, em si mesma, a emancipação dele mesmo.
O sensível olhar de Roger Casement nas suas imagens, sejam estas fotográficas ou textuais, vai revelar e desvendar esses horrores, de tal forma que sepultou a companhia inglesa e libertou, de vez, a jovem república irlandesa. Mas, o tempo vai desbotando cada vez mais as suas fotografias “efêmeras” e seu diário “secreto” cuja mensagem denunciava a destruição da floresta e dos seus habitantes indígenas, caboclos, ribeirinhos, quilombolas da Amazônia.
Mas a sua tarefa, de certo modo, foi cumprida, seus diários são as narrativas de suas fotografias e que, por isso mesmo, são dialéticas porque geram o ganham novos significados hoje e depois, provocando uma interação entre o autor e o leitor crítico que assiste o crime da humanidade contra a sua própria natureza.
Roger Casement, ao denunciar os crimes da Peruvian Amazon Rubber Company e ao lutar pela libertação da sua Irlanda, valoriza a sensibilidade dos idealizadores de causas justas e fundamentais para a própria existência do ser humano. Os novos boras, ocainas, andoques, uitotos, muinanes e resígaros estão construindo um novo princípio para a convivência humana.
Estes que foram massacrados, torturados e assassinados, não buscam uma vingança nem um castigo, senão a que propõe uma nova filosofia do homem contemporâneo.
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Freddy Cárdenas possui graduação em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Amazonas (2000) e mestrado em Estudios Amazónicos – Universidad Nacional de Colombia – Bogotá (2010). Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (2022). Atualmente é professor auxiliar na Universidade do Estado do Amazonas. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura e história, configuração do imaginário amazônico, história amazônica e expedicionários e viajantes da floresta.