Autores do Sul e Sudeste mantêm olhar viciado sobre a Amazônia

Capa de livros de autores do Sul e Sudeste
Autores do Sul e Sudeste mantêm olhar viciado sobre a Amazônia

Livros de Marçal Aquino, Marcelo Paiva e Luís Fernando Veríssimo refletem perspectiva externa à região em detrimentos dos seus moradores

Uma das questões que sempre permeiam a discussão sobre a Amazônia é quem carrega a voz sobre a região. Três romances do Sul e Sudeste mostram como o olhar, mesmo com as melhores intenções, ainda esbarra em limitações de visões de mundo sobre a região.

Esse artigo faz parte da série Pensando a Amazônia pela Literatura, que traz análises de críticos, escritores e pesquisadores sobre o mundo das letras na região. 

O primeiro livro é “O Opositor” (Editora Objetiva, 2004), de Luís Fernando Veríssimo. Vale a pena reproduzir trechos da ‘orelha’ da obra para constatarmos o quanto o imaginário amazônico, quando revisto pelo eixo Sul/Sudeste, ainda é repleto do exotismo e do escancaramento da estranheza e diferença. Diz o texto da orelha: 

“Um jornalista de São Paulo vai a Manaus fazer uma reportagem sobre plantas alucinógenas e em pouco tempo, sem se dar conta, vai imergir num abismo, um enredo de suspense, de onde talvez só possa sair quando chegar a um afluente de um afluente de um afluente do rio Negro. Entre xícaras estonteantes de chauasca e carícias não menos desconcertantes de Serena – a mulher metade dinamarquesa, metade índia, que teve os dois polegares decepados, nosso herói vai descobrir na Amazônia prazeres insuspeitados”.

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Nesses dois parágrafos, há um resumo do imaginário amazônico visto por olhos outros que não o da própria região. A Amazônia é o local de plantas alucinógenas, onde as pessoas costumam se perder, entre rios e florestas e sexo fácil e selvagem. É uma visão antiga, de colonizador, onde a cidade em si, Manaus, nada mais é que a porta de entrada para a densa floresta repleta de índios e animais selvagens. 

Veríssimo intitula os capítulos do livro com nomes de sucos da região. Caju, açaí, siriguela, buriti, sapiri, bacuri, entre outros. Nem todos fazem, efetivamente, parte do cardápio amazônida, como a siriguela, que pertence à região nordestina do Brasil. 

O detalhe, embora aparentemente sem importância, pode servir de exemplo para uma discussão a respeito do olhar unificador feito pelo sul e sudeste do país, onde norte e nordeste são uma coisa só e todos são ‘paraíbas’. 

O começo do romance já indica ao leitor que o caminho a ser tomado pelo escritor será o da Amazônia exótica, amortecedora de sentidos. A ayauasca, que origina o daime, é tratada por ‘chuasca’. Ela, segundo o romance, ‘aumenta a sensibilidade dos ouvidos’. É dessa forma que o narrador convida o leitor a se embrenhar na narrativa. Sob o efeito de alguma bebida amazônica. Exótica. Invulgar. 

O personagem principal do romance está em uma cidade amazônica, e logo nas primeiras páginas somos apresentados a um estrangeiro, Jósef Teódor, e a um dono de bar chamado de Hatoum (homenagem a Milton?). Duas identidades claramente externas àquele ambiente. Teódor é o estrangeiro misterioso, que na ‘jungle’ se mostra superior aos nativos.

O narrador passara a tarde tomando chá de chuasca com Serena, uma mulher metade nativa, metade dinamarquesa, voluptuosa, cheia de segredos e mistérios sexuais. O personagem estava em Manaus fazendo uma reportagem sobre ervas e frutas alucinógenas da Amazônia. 

Sob efeito do chá alucinógeno, o narrador recebe a promessa de Serena de ser levado até o interior da floresta, pelo Rio Negro, ‘e explorar o labirinto dos afluentes dos afluentes dos seus afluentes’. 

Serena tinha informado ao narrador que um desses afluentes não existia, ou existia apenas como mito na região. A promessa era vã, já que Serena e o narrador passavam as tardes entre sexo e chás de chuasca. 

Seduzido pela mulher sensual, o personagem vai aos poucos conhecendo mais a respeito de Teódor, o Polaco, um homem que passa a maior parte do tempo em um bar, onde narra uma história de alto teor aventuresco:  a dos Opositores ou Apagadores, ligados ao grupo alemão Meierhoff, o mais poderoso do mundo; grupo que elimina os que atrapalham seu caminho.

O embrenhar floresta e rios adentro remete-nos a “O coração das trevas”, clássico de Joseph Conrad, adaptado ao cinema por Francis Ford Coppola no filme “Apocalipse Now”. O camboja-vietamita que enlouquece soldados norte-americanos é praticamente o mesmo dessa Amazônia retratada por Veríssimo. Não à toa, há um personagem chamado Curtis, uma clara referência a Kurtz, o soldado desertor que se transforma em deus para nativos cambojanos.

Em “O Opositor”, somos apresentados a conspirações internacionais, estrangeiros misteriosos e autoritários e nativas luxuriantes. Nessa mistura, o personagem principal é um homem que aos poucos vai abandonando a própria racionalidade para se deixar levar por um misto de entorpecimento mente-corpo. 

Em nenhum momento do romance temos a noção de que a Manaus que se apresenta ao narrador é uma metrópole urbana, caótica, com signos de referência a todo tipo de parafernálias eletrônicas. A Manaus narrada mais parece uma cidadezinha de beira de rio, parada no tempo e no espaço.

A trama é urdida basicamente por estrangeiros como Serena, metade índia, metade européia. Não há voz local, nativa. São personagens inexistentes no romance. Mesmo o narrador, personagem principal, enreda-se no labirinto de rios e matas, mas ao final, com a reportagem pronta, faz um retorno triunfal à razão. 

Sua jornada não é transformadora nem redentora. Não há um olhar modificado sobre o mundo que o cerca. Tudo que ele consegue dizer ao final de sua experiência é que a partir dali duvidaria que seu chefe imediato o mandasse fazer reportagens insípidas e sem relevância na São Paulo de origem para qual retorna.

Mesmo quando o personagem aceita esse mundo, é sob o efeito de alguma substância alucinógena que lhe faz perder o raciocínio lógico. O clima tropical, o sexo anestesiado, as ervas e sucos da floresta o encaminham nesse outro universo, mas a identificação é quase nula e o relacionamento é feito com quem possui minimamente uma origem similar. 

Mesmo a mulher, é metade índia, metade dinamarquesa. O personagem está e não está inserido nesse mundo. Ele continua um ser à parte, cuja identidade, fragmentada nesse contexto, não se encaixa no mundo que o engole aos poucos.

Marcelo Rubens Paiva e “Ua:Brari”

A visão superficial da Amazônia apresentada por Veríssimo em “O Opositor” poderia ser apenas um reforço dentro da visão estereotipada da região. Mas há tentativas um pouco mais arrojadas de se mostrar a Amazônia a partir de uma visão “externa”.  Uma delas é o romance “Ua:Brari”, de Marcelo Rubens Paiva (Editora Mandarim, 1990).

O enredo de “Ua:Brari” é o seguinte: Zaldo é filho de um rico empresário brasileiro, que viaja à Amazônia a negócios. Ele se embrenha na mata e desaparece. Um ano depois, chega a notícia de que Zaldo é tratado como um messias pelos povos da floresta. Chamam-no de Ua:Brari, que, segundo a lenda dos índios Macuxi, era um jovem que conhecia o caminho para o outro lado do mundo.  Enquanto isso, em São Paulo, Bia fica noiva do irmão de Zaldo. Vai se casar em dias, mas reencontra Fred, seu namorado de infância e se envolve com ele novamente.

Fred é jornalista e amigo de Zaldo, que também já namorou Bia. Fred é contratado para acompanhar a expedição que pretende resgatar Zaldo. Toda a trama se desenrola a partir dos conflitos e paixões dos personagens do romance nessa cruzada rumo ao coração amazônico. Esbarram-se nessa cruzada missionários estrangeiros, militares saudosos do período militar, antropólogos e sulistas. Todos com praticamente a mesma intenção: resgatar a Amazônia, povoar a Amazônia, salvar a Amazônia. Todos sem entender a Amazônia.

Em determinado trecho, o militar conversa com o jornalista e lhe diz: “Esses índios não deveriam ficar confinados nas reservas demarcadas. Seria mais válido integrá-los ao país, tornando-os brasileiros. O Brasil precisa deles. E eles querem sair, comprar jeans, relógios, óculos escuros e um TV Panasonic. A cultura deles é baixíssima e não é respeitável”. Nada que não poderíamos ter ouvido de Jair Bolsonaro ou Hamilton Mourão.

Em “Ua:Brari”, Paiva investe em um enredo alegórico sobre o Brasil para abordar temas como ecologia e religião, mas o olhar continua sendo o de quem vem de fora. 

Fred é um personagem perdido em São Paulo, nessa miscelânea de confusão, ruído, sons e cinza que a cidade lhe oferece. Como em outros romances de Paiva, o personagem-narrador, que deveria ser o protagonista mais ativo, sempre descreve a si mesmo como aquele amigo que, num filme, seria o personagem coadjuvante. 

Fred sempre foi secundário na vida diante do amigo Zaldo. É dessa forma que o narrador Fred define o amigo, na página 69 do romance.“ No colégio sempre com uma namorada linda, dessas que todos perguntam, ‘onde encontrou tal pedra preciosa. Zaldo, o último a sair, o fôlego de aço, bebendo mais que todos, cara dura, fala na lata o que pensa. O melhor em todos os esportes, as piadas mais bem contadas, as tiradas desconcertantes. Fez professores questionarem a própria capacidade de lecionar. Organizador das melhores festas, amigo de todos, amado, invejado, líder, odiado, extremos, sempre extremos. Deus que se fez homem”.

É em busca desse ‘deus’, imaginário ou não, que Fred precisa partir. Zaldo está se tornando um mito no coração da Amazônia. E isso incomoda aos militares. Paiva insere no contexto do romance, pitadas de conflitos amazônicos, como focos de guerrilhas no local onde Zaldo escolheu fugir. 

A chegada de Fred à Amazônia já é um indício do choque de civilização que o autor busca dar ao leitor. Alguém que espera Fred diz a ele que teve sorte por ter conseguido o piloto pousar, por conta da fumaça e da seca. 

Na expedição em busca de Zaldo, Paiva apresenta o retrato dos que estão inseridos na ‘aventura amazônica’. Militares, missionárias religiosas, aventureiros, estrangeiros, jornalistas, índios. E a floresta, como enigma para uns e como marco a ser civilizado para outros. Para os habitantes locais, um papel coadjuvante, como guias, mateiros, gente mística que conhece os segredos locais, mas que, ao mesmo tempo, é impotente para desviar o curso do destino a se desenrolar à revelia deles.

É perceptível no romance de Paiva que, mesmo aparelhado de boas intenções a respeito da Amazônia, o discurso empregado no livro é o de uma região que entorpece os sentidos, retira a razão e onde as pessoas são completamente tragadas e envolvidas pelo clima. Ou enlouquecem, mistificam-se ou entregam-se a uma volúpia sexual desregrada. 

Novamente a mesma sina amazônica. O olhar que valoriza o exótico, o primitivo, o sexual. A terra sem lei, a terra para poucos. E é o olhar jornalístico que mais uma vez aponta isso.

Paiva mostra uma Amazônia repleta de encantamentos místicos que se misturam à sanha desenvolvimentista e colonizadora. Busca um retrato condizente com uma ideia de que a salvação amazônica poderia vir, sim, de um direcionamento local, mas, ao mesmo tempo, insere um branco sulista para ser o ‘deus’ capaz de aglutinar uma comunidade pobre, primitiva e suscetível a crenças em lendas e mitos para atingir uma libertação do jugo opressor.

A intenção, como se explicou anteriormente, é a melhor possível, mas o autor, como Veríssimo, esbarra em suas próprias limitações de olhar. É o outro quem olha e define a Amazônia do Sul e Sudeste.

Marçal Aquino e ‘Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios’

Novamente, o personagem principal é um jornalista em “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”, de Marçal Aquino (Companhia das Letras, 2005). Numa cidade do Pará, à beira de uma corrida do ouro, o repórter-fotográfico Cauby se envolve numa história de amor clandestino com a mulher de um poderoso local, tendo como pano de fundo os conflitos entre garimpeiros e uma mineradora. 

Aquino envereda por outro caminho. O Pará retratado no livro está longe de ter a floresta como cenário. Ao contrário, o ambiente descrito assemelha-se ao dos faroestes do cinema, com pistoleiros, poeira, duelos e linchamentos. Um cenário que se torna curioso aos leitores menos atentos, porque é raro que nele embrenhem-se os escritores locais, que perpetuam sempre a imagem da floresta como símbolo característico da Amazônia. 

Marçal Aquino retrata o viés dessa história, o resultado das contínuas e desordenadas migrações para o sul e sudeste do Pará e os efeitos das atividades de garimpos e mineradoras para a região, com o assoberbamento da prostituição e da violência.

A floresta pode não estar mais ali, mas impõe sua presença pela ausência, ou seja, pelo desmatamento, pela secura, pela ação humana que, movida por interesses econômicos, vai destruindo o que encontra pela frente. E isso inclui também os processos de convivência pessoal, com a violência presente a cada momento.

Os personagens são movidos por forças que não conseguem controlar. Há ambiguidade em tudo. O repórter fotográfico entrega-se, em vez do trabalho, à lassidão temperada por tardes sufocantes, mas repletas de sexo, com Lavínia. O outro jornalista, Viktor Laurence, alimenta e prepara uma vingança contra todos os inimigos. A própria cidade, com seu calor infernal, parece sempre estar prestes a explodir.

O mérito de Aquino no romance, talvez seja o de não explicar ou tomar partido em relação ao contexto econômico, político e social da região escolhida por ele como cenário para o livro. Com isso, evitou que o olhar enviesado de morador do sudeste pudesse levá-lo a adotar respostas prontas e receitas acabadas para o ambiente retratado. 

Foi um risco que ele, conscientemente ou não, preferiu não adotar. Cauby não se encaixa nem busca maiores transformações. A Amazônia diante dele é uma terra abandonada, deserta, seca, maltratada por todos, mas que não inspira nele nenhuma tomada de posição.

Um dos aspectos que chamam a atenção no livro de Marçal Aquino é que o fator migração para o sul ou sudeste do Pará, por exemplo, não é de todo olhado como fonte para os escritores. A literatura contemporânea feita por paraenses e amazonenses praticamente ainda não utilizou esse universo migratório das últimas décadas como elemento para sua construção narrativa. 

O texto seco e duro de Marçal Aquino se contrapõe firmemente à concepção ‘aquosa’ de parte da literatura amazônica. E expõe novamente uma realidade: ainda não é o olhar local que tenta ordenar sentido à realidade das múltiplas Amazônias. Até quando?

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Ismael Machado é jornalista e mestre em literatura
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