Conto de Sandra Godinho: Anatomia de um ato
Onde já se viu árvores serem mais importantes que o tempo gasto no trânsito? Que o lucro das fábricas?
Topo de palmeiras imperiais, árvore protegida pela “doida” no conto. Foto: Mauro Halpern/Flicker
Foi ao ver a mulher, no meio-fio da Avenida Iphigênio Salles, que a sensação me atingiu, ali, no interior do Celta usado e comprado a prestações a perder de vista, bem no meio do trânsito, concentrado no trabalho acumulado no escritório, enquanto aspirava o monóxido de carbono vindo dos escapamentos em pleno congestionamento. A sensação de que algo muito estranho estava prestes a acontecer me dominou. Uma sensação doída, dessas que nos atacam pelas margens, no momento único que sabemos estar ferido de morte.
Não foram os músculos retesados da mulher, ou os pentelhos negros, ou os seios firmes que me chamaram a atenção. Mas o modo como ela abraçava o tronco da palmeira imperial, tão agarrada a ele como se fosse a extensão do próprio corpo. A doida, como passei a chamá-la, ficou indiferente aos motoristas, às buzinas dos carros que retardavam a marcha ao avistá-la nua e à temperatura elevada de um clima cada vez mais quente. A doida vociferava, entendendo que a vida é breve e o tempo urge, enquanto eu me preocupava com o horário de trabalho desperdiçado no trânsito, com o dinheiro gasto neste consumo inútil de todos os dias. Enfrentar a Iphigênio Salles pela manhã exigia paciência e precaução e, como o carro não era equipado com ar-condicionado, fui obrigado a baixar o vidro da janela para suportar o calor.
Foi então que o desvario da louca que me atropelou. Fiquei eu ali, na altura do condomínio de mesmo nome da via, preso a ela e ao tráfego pesado, bebendo seus gestos insanos com olhos estatelados. Ela chamava a atenção, chamava a esperança. Que não tombassem as árvores! Vi quando ela pediu a um dos desavisados que passava pelo local (provavelmente se dirigindo ao trabalho como eu) que lhe amarrasse ao tronco da palmeira com a corrente de aço que lhe oferecia, o que foi rechaçado. A doida se desesperou, tentando recrutar um ou outro transeunte, perambulando entre uma palmeira e outra, com os cabelos soltos no ar, despojada das vestes, tão livre nessa decisão assombrosa de se atrelar à arvore até que, numa reviravolta, foi prontamente atendida por um jovem que sorriu, deleitando-se com suas curvas. Loucos mansos são dignos de piedade, mas loucas bem fornidas de corpo são dignas de gentilezas. E gracejos.
Mas a doida esbravejava, culpando a prefeitura pela decisão de arrancar cinquenta árvores da avenida para que o alargamento da via acontecesse. Só saio daqui algemada, disse. Queria tanto que ela voltasse a si, que entendesse que o fluxo da cidade melhoraria terrivelmente com a adição de uma terceira pista, que os periquitos importunavam os honrados moradores do condomínio elegante ao pousar nas folhas das palmeiras todas as manhãs com um alvoroço estrondoso. Queria que ela se desapegasse desses abismos sem serventia, que escondesse as palavras dos lábios tresloucados. Deixasse a vida seguir frenética como tinha de ser, mas a doida, tão louca, gritava e alisava o tronco, procurando frestas na madeira com as mãos.
Os jornalistas chegaram, avisados pelo acaso ou pelo descaso, guardiões das novidades, mas não havia unanimidade de opiniões nem mesmo entre eles. Logo uma audiência se formou em torno do furdunço. Uns, defendendo; outros, criticando. Uma obra gigantesca, autorizada pelo Instituto de Proteção Ambiental e corroborada pela Secretaria Municipal de Infraestrutura só podia ser pelo bem comum, porque infraestrutura faltava de fato ao município. E à louca, que desvairava outra vez, abrigada na árvore e nessa loucura incapaz de resetar o cotidiano para melhor. Que o tino lhe retornasse porque viver é preciso, e sobreviver, ainda mais. Viver é longo e custoso. Onde já se viu árvores serem mais importantes que o tempo gasto no trânsito? Que o lucro das fábricas?
Depois do furdunço da imprensa e da turba polarizada, vieram os policiais, que a algemaram e a levaram embora. Um deles tentou cobrir-lhe as partes íntimas com a própria camisa, um gesto gentil rechaçado pela mulher, que preferiu a própria pele. A jovem, despida de máscaras e de armaduras, fuzilava pelos olhos ao entrar no camburão, sem encontrar explicação cabível para o morticínio da flora. Foi-se.
Na manhã seguinte, fiquei eu novamente aprisionado no trânsito, na mesma altura do elegante condomínio que dormia em paz. Congestionei-me com o ar sufocante e com os homens da prefeitura que chegaram de serra elétrica em punho, prontos para a matança, enquanto carros e ônibus e transeuntes marchavam para seus destinos, essa massa mansa de vozes. Nunca soube que fim teve a louca, nem mesmo se voltou a si. E, ao relembrar seu peito firme em defesa da flora, lastimei por um único instante não poder desfrutar da mesma indecência que ela.
Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com Orelha lavada, infância roubada (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com Verso do reverso (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance Tocaia do Norte (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, A morte é a promessa de algum fim, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, Memórias de uma mulher morta e A Secura dos ossos.
Edição: Alice Palmeira
Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón