Olho d’Água: cidades antigas, ciência e ‘Ratanabá’

Olho d'Água podcast
Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude
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Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude

Damos as boas-vindas ao “Olho d’Água”, um mergulho na Amazônia. Cada episódio é um convite da equipe da revista Amazônia Latitude para que você deixe a superfície e se aprofunde em temas diversos relacionados à maior floresta do mundo.

O podcast segue o mote da revista: Ciência e Jornalismo pela Amazônia. Aqui, você vai ouvir cientistas, artistas, professores, jornalistas, indígenas, ribeirinhos, quilombolas, lideranças comunitárias… Pessoas que vivem a Amazônia.

Além de buscar uma análise que fuja do óbvio, nos comprometemos a amplificar vozes negligenciadas e destacar iniciativas inovadoras que buscam um futuro mais promissor para a Floresta e suas comunidades.

Ouça abaixo o primeiro episódio completo:

Cidades antigas, milenares, encobertas pela mata, estão sendo encontradas na Amazônia. Isso não é teoria da conspiração. É um fato.

O avanço tecnológico acelerou alguns processos de pesquisa. Antigamente, demorava-se meses para mapear um sítio arqueológico na floresta. Hoje, combinando trabalho de campo com equipamentos a laser, o mapeamento pode acontecer em poucos dias.

Essas inovações fizeram com que diversas estruturas urbanas que estavam escondidas na floresta densa fossem reveladas nos últimos anos.

O problema é que, num mundo onde muita gente insiste em se informar por corrente de WhatsApp ou por vídeos curtos, essas descobertas científicas viraram um prato cheio para alimentar boatos sem pé nem cabeça.

Um desses boatos, você já deve ter ouvido, é o de que existe na Amazônia uma cidade perdida há centenas de milhões de anos, rica em ouro, maior do que a cidade de São Paulo, e que ela seria o real motivo por trás da disputa internacional pela Amazônia. Um negócio meio Indiana Jones. A tal cidade perdida, aliás, tem nome e até uma suposta localização no Google Maps: é Ratanabá.

Os conteúdos viralizam muito fácil nas redes sociais. Eles têm uma mística, um suspense que cativa muita gente. Alguns vídeos com essa temática têm centenas de milhares de visualizações e impulsionam a máquina de engajamento, sem qualquer compromisso com a informação.

Em janeiro de 2024, narrativas conspiratórias sobre Ratanabá ganharam mais força a partir de uma notícia real: cientistas publicaram na revista Nature um estudo que revela um conjunto de estruturas urbanas de aproximadamente 2.500 anos na Amazônia equatoriana. Ou seja, são construções anteriores à chegada dos europeus à América.

Essas cidades, que abrigavam até 30 mil pessoas, foram descobertas com a ajuda da tecnologia Lidar – uma sigla em inglês para Light Detection and Ranging. É um método que usa a luz na forma de laser e que permite mapear a superfície terrestre abaixo da cobertura florestal. Numa simplificação grosseira, é como se fosse um raio-X que atravessa a copa das árvores e mostra o relevo do terreno por baixo da mata.

Em 2022, pesquisadores da Alemanha usaram essa mesma tecnologia e mapearam urbanizações pré-coloniais da cultura Casarabe na Amazônia boliviana.

Como num passe de mágica, estudos sérios viraram argumento a favor de teorias que não têm qualquer embasamento científico — como o folclore por trás de Ratanabá.

Para separar o que é ciência do que é conspiração, a repórter Ariel Bentes, da Amazônia Latitude, foi conversar com quem entende do assunto de verdade. No episódio de hoje, a gente ouve alguns trechos da entrevista que ela fez com o doutor Eduardo Góes Neves.

Na verdade, a gente tem evidência de cidades. Cada vez mais estão aparecendo… Por exemplo, essa que você falou do Equador, que tem 2.500 anos. A gente tem evidências na Bolívia de coisas que têm 1.500 anos. Aqui, no Alto Xingu, no Brasil, mais ou menos mil anos. Então, cada vez mais, a gente tem evidências arqueológicas de cidades em diferentes lugares Amazônia, dentro e fora do Brasil.

Eduardo Neves é referência em Arqueologia na Amazônia. Ele é professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e tem mais de três décadas de publicações sobre a história da ocupação amazônica.

Dentre as diversas pesquisas de que Neves participou, está o estudo que mostrou a existência de uma complexa rede de antigas estradas no Acre, anteriores à chegada dos europeus.

No livro “Sob os Tempos do Equinócio”, lançado em 2022, Neves reconstrói uma história milenar de povos que viveram na Amazônia. E a perspectiva que ele apresenta é bem interessante: nenhuma das ideias extremistas sobre a ocupação amazônica se sustenta.

De um lado, existe a ideia de que a Floresta pré-colombiana era habitada por povos muito rudimentares, em pequenas aldeias esparsas. Isso não é verdade, como mostram as estruturas urbanas e estradas milenares encontradas pelos arqueólogos.

Além disso, a ciência comprovou que diversos povos que viviam na Amazônia antes da chegada dos europeus já domesticavam espécies vegetais, dominavam tecnologias como a cerâmica, estabeleciam rotas comerciais e construíam monumentos.

Agora, por outro lado, a arqueologia também refuta a existência de uma cidade imensa, construída há milhões de anos, com pirâmides douradas, como dizem os adeptos da ficção de Ratanabá.

O problema de Ratanabá é o negócio que teria 450 milhões de anos. E aí tem uma diferença de grandeza você falar em algo que tem 2.500 anos. É milhares de vezes mais do que 2.500 anos. Há 450 milhões de anos, a América do Sul não existia ainda. A cordilheira dos Andes não existia. Os dinossauros não existiam. Então, o problema de Ratanabá é que ela não faz o menor sentido do ponto de vista do que a gente conhece da história da vida do nosso planeta. Ela não faz sentido do ponto de vista arqueológico, mas não faz sentido geológico também. E isso é complicado, porque durante muito tempo, os cientistas relutavam em aceitar a ideia de cidades na Amazônia no passado, porque tinha essa visão de que era aquela coisa do Eldorado. Aquele mito da cidade perdida… E a gente começa a ter evidências arqueológicas agora que mostram isso… Vem esse bando de maluco lá do Ratanabá, que ficam falando que Ratanabá era do tamanho da cidade de São Paulo, do município… É uma coisa que não tem pé nem cabeça. (Eduardo Neves)

Os vídeos e sites conspiracionistas adoram mostrar imagens de pedaços da floresta em que dá para ver algumas formas geométricas. São como linhas retas, quadrados e retângulos que, segundo eles, seriam prova das ruas e quadras da tal cidade perdida. Neves falou um pouco sobre isso também:

As evidências que eles usam para falar dessa tal de Ratanabá são arqueológicos conhecidos, lá do Acre, por exemplo, de Rondônia… Eles juntam esses lugares, que estão distantes, e falam que tem uma conexão no passado.

Aliás, apontar formas geométricas na mata encontradas em imagens de satélite e afirmar que elas são marcas de uma cidade perdida é uma conclusão perigosa.

Em 2016, um estudante canadense de 15 anos anunciou uma descoberta. Ele partiu do pressuposto de que o posicionamento de certas cidades da civilização maia guardavam alguma correspondência com as coordenadas de estrelas e constelações — o que, até aí, é verdade.

Então o estudante fez alguns cálculos astronômicos e concluiu que os maias provavelmente ergueram uma cidade num determinado ponto na região de Yucatán, no sul do México. O jovem usou o Google Earth para inspecionar o local e a mata tinha linhas geométricas que indicavam intervenções humanas.

De início, a suposta descoberta do estudante foi recebida com muito entusiasmo por jornalistas e até cientistas. Mas, em poucos dias, a teoria veio abaixo. Alguns pesquisadores já haviam visitado o local. E um deles garantiu que ali havia sim uma intervenção humana, só que muito mais recente e bem menos épica. Era, simplesmente, uma plantação de maconha, isolada e bem escondida das autoridades mexicanas.

Mas, voltando a falar de Ratanabá, o doutor Neves comentou com a repórter Ariel Bentes sobre outro problema. Ao mesmo tempo que a teoria carrega muito glamour, propagando uma cidade cheia de ouro, conhecimento e glória, também esconde um preconceito bem terreno.

Outra coisa também que é complicado de Ratanabá é que eles a desassociam dos povos indígenas. Era uma outra civilização. No fundo, é uma forma de racismo também contra os povos indígenas, porque retira deles a autoria dessas cidades. E o que a gente sabe sobre essas cidades de 2.500 anos, 1.500 anos, é que foram construídas e habitadas pelos povos indígenas que eram os ancestrais dos povos indígenas contemporâneos.

Segundo os conspiracionistas, as disputas em torno da Amazônia são uma cortina de fumaça para disfarçar que grandes potências mundiais querem explorar a riqueza e os segredos de Ratanabá.

Mas, na verdade, é justamente o contrário. A conspiração sobre uma civilização perdida há milhões de anos nada mais é do que uma explicação rasa (e maluca) sobre os conflitos amazônicos e sobre a verdadeira história dos povos indígenas que vivem na região há milhares de anos.

Produção e edição do podcast: Filipe Andretta
Entrevista: Ariel Bentes
Edição de texto: Isabella Galante
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón

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