Desafios da Amazônia: A luta de atletas do Norte para manter o legado olímpico

Região onde nasceu Guilherme Paraense, o primeiro medalhista do Brasil na história dos Jogos Olímpicos, tem apenas três representantes na edição do evento em Paris. Atletas e dirigentes falam sobre a falta de apoio e de infraestrutura, que refletem desiguais oportunidades de sucesso no esporte brasileiro

Michel Trindade. Foto: Gaspar Nóbrega / COB
Michel Trindade, pugilista. Foto: Gaspar Nóbrega / COB
Michel Trindade. Foto: Gaspar Nóbrega / COB

Michel Trindade, pugilista. Foto: Gaspar Nóbrega / COB

Entre os 275 representantes do Brasil nos Jogos Olímpicos de Paris 2024 há três amazônidas. Três. Isso equivale a cerca de 1% da delegação “verde e amarela”. A participação de competidores da Amazônia no “Time Brasil” sofreu uma redução significativa em relação à última competição, em Tóquio, quando oito nortistas faziam parte da delegação.

A lista de atletas do Norte classificados para os Jogos deste ano é composta pelo amazonense Pedro Nunes, do lançamento de dardo; e pelos paraenses Andreza Lima, reserva da seleção de ginástica artística; e Michel Trindade, pugilista. O pequeno número de amazônidas na competição escancara uma desigualdade latente entre os estados brasileiros e oculta a tradição que a região tem nos Jogos.

Falar da história do Brasil nas Olimpíadas sem mencionar a Amazônia é quase impossível. Militar do Exército, Guilherme Paraense, natural de Belém, foi o primeiro medalhista de ouro do país no maior evento esportivo do planeta. Ao ficar em primeiro lugar na competição individual nos jogos de 1920, na Antuérpia – os primeiros com participação “brazuca” -, o atleta do tiro se tornou um importante símbolo e ajudou a forjar o legado olímpico nacional. 

No entanto, cem anos após entrar para a história, a região pioneira em conquistas nas Olimpíadas segue com pouca representatividade. Os principais motivos para tamanha obscuridade incluem a falta de patrocínio e de estrutura para treinamentos, que afetam as possibilidades dos atletas alcançarem seu máximo potencial em solo amazônico e daqui disputarem vagas em competições nacionais e internacionais.

Michel Trindade. Foto: Wander Roberto/COB

Michel Trindade. Foto: Wander Roberto / COB

Conciliando treinos, escola e trabalho…

O paraense Michel Trindade, de 23 anos, que competiu com as cores do Brasil no boxe em Paris-2024, precisou fazer as malas muito cedo para alcançar maior competitividade esportiva. Ele conta que, assim que começou a fazer parte da seleção brasileira de forma permanente, partiu para São Paulo em busca de melhores condições de treino e de acesso a patrocínios.

“No Pará, é muito difícil um atleta sobreviver apenas do esporte devido à falta de apoio. Eu, por exemplo, precisava treinar das 5h às 6h, porque às 7h tinha que ir trabalhar. Voltava para casa às 17h e treinava novamente até às 18h, pois, às 19h precisava ir para a escola. Com essa rotina, é impossível se manter no esporte”.

Para ele, sem apoio financeiro, conciliar a escola, o trabalho e a rotina de treinos é uma missão impossível para quem busca exceder os limites do corpo e da mente e alcançar competitividade olímpica. 

“Quando atingimos a maioridade, temos que trabalhar e assumir [mais] responsabilidades. Em 2021, passei a integrar a seleção brasileira e percebi que, fora de Belém, há melhores condições de treino, [me mudar para outro estado] resultou em uma melhora evidente no meu desempenho”.

Mônica Rezende. Foto: Arquivo Pessoal

Mônica Rezende. Foto: Arquivo Pessoal

Fuga de talentos…

A migração forçada persegue várias gerações de atletas. Na década de 1980, a nadadora paraense Mônica Rezende, que competiu pelo Brasil nos Jogos de Seul-1988, também precisou sair da região Norte para se classificar para as Olimpíadas. 

Ela foi a primeira atleta do estado a fazer parte da seleção brasileira de natação. Mônica lembra de outro aspecto importante da preparação para uma carreira olímpica: o tempo. Leva-se anos, décadas, às vezes uma vida inteira para alcançar condicionamento olímpico. As condições de treinamento (o que inclui acesso a preparadores físicos e treinadores de elite e qualidade de infraestrutura para executar exercícios e treinos) fazem diferença ao longo dessa jornada.

Estrutura que ela só encontrou fora da Amazônia. “Naquela época, havia uma equipe multidisciplinar. Embora não tivesse esse nome, mas seguia o mesmo conceito: um treinador, um preparador físico e uma nutricionista. O trabalho desses profissionais foi crucial para meu bom desempenho”.

Embora os meses em Minas Gerais tenham lhe oferecido a estrutura necessária para a preparação para disputar uma olimpíada, a maior parte do treinamento de Mônica foi em solo paraense.

“Em termos gerais, toda a minha preparação foi feita aqui. Comecei a intensificar meus treinos em 1980, trabalhando por oito anos para chegar lá. Permaneci aqui até ser convidada pelo Minas, que tinha uma estrutura muito melhor. Até março de 1988, eu treinava no Remo. Então, recebi um convite do Minas Tênis Clube e fui para lá. Fiquei até julho, quando consegui uma vaga no revezamento 4×100, e, em agosto, fui para as Olimpíadas. Embora tenha representado o Minas nos Jogos, sinto que toda a minha preparação foi no Remo”.

Mônica treinando em Minas Gerais. Foto: Arquivo Pessoal

Mônica treinando em Minas Gerais. Foto: Arquivo Pessoal

Sem “ouro” para perseguir medalhas

Outra questão latente na lista de motivos para sair do Norte para alcançar competitividade olímpica é a falta de financiamento. A ausência de dinheiro, sobretudo dificuldades em obter patrocínio, faz com que os esportistas procurem fontes de incentivo em outros lugares.

Michel Pereira pondera que o boxe olímpico sofre com a baixa “prioridade” dos investidores. Apenas os chamados “atletas profissionais” recebem auxílios para se dedicar unicamente ao esporte, deixando os esportistas olímpicos esquecidos e expostos à necessidade de conciliar duas carreiras em paralelo: o esporte e qualquer coisa que ajude a pagar as contas em casa.

“No boxe, estão dando muita prioridade ao boxe profissional, o que considero errado. O boxe profissional deve ter seus próprios promotores que organizam os eventos. Em outros países, o boxe profissional não recebe apoio governamental, mas aqui no Brasil, recebe. Está faltando esse apoio [para quem sonha com as medalhas olímpicas]. Eu mesmo já representei o Pará em outros estados graças à bolsa que o Governo paga, mas precisamos de mais incentivo”, explicou.

Sem patrocínio e com dificuldades de acesso aos programas governamentais de incentivo aos esportes, “sobra” para os clubes e times locais o peso de tentar suprir as necessidades dos atletas.

Para Mônica Rezende não há clubes na Amazônia em condições financeiras de manter atletas de alto rendimento. Mas, se este cenário fosse outro, equipes do Norte do Brasil teriam mais competitividade nos torneios nacionais e internacionais, além de manterem na Amazônia os talentos olímpicos que a região possui.

“Acredito que as coisas mudaram no mundo. A tecnologia e os treinamentos evoluíram. Por isso, precisamos buscar melhorias, pois, estamos atrasados. Para termos equipes competitivas, é necessária uma estrutura melhor. Aqui no Pará, temos a vantagem de poder treinar o ano inteiro devido ao clima. Na minha opinião, o que falta é olhar ao nosso redor e implementar mudanças nos treinos, nos equipamentos e na tecnologia. Isso garantirá que consigamos resultados. Se não estabelecermos metas, nunca alcançaremos nossos objetivos”.

Pedro Nunes. Foto: Wagner Carmo / CBAt

Pedro Nunes. Foto: Wagner Carmo / CBAt

Talento temos, falta o resto

As reclamações não são exclusivas dos atletas “ponta da lança” do esporte. Elas também vêm de quem é responsável por fortalecer o esporte olímpico na região por meio das federações de cada modalidade. 

Evandro Viegas, presidente da Federação de Handebol do Pará (Fehapa) conta que é “comum” os esportistas tirarem do próprio bolso dinheiro para custear competições. “As federações têm dificuldade de captar recursos. O empresariado do Norte ainda não percebeu a importância deste investimento. Temos parcerias com o governo, mas que não garantem 100% do custeio. Eles dão a passagem para o torneio, mas não a hospedagem, por exemplo. Ou garantem a viagem, mas não ajudam com o uniforme, um bom tênis… Falta esse olhar, [para perceber que precisamos de], um ginásio bom, um centro de treinamento [para a] uma qualificação de mão de obra”, lamenta.

No Pará, há iniciativas como o programa “Bolsa Talento”, que, desde 2008, oferece apoio a atletas de várias modalidades. Na última edição, cujo edital foi publicado no final de 2023 e levou em consideração o desempenho dos atletas ao longo de 2022. Dos 132 pleiteantes, 73 conseguiram o benefício e 47 não obtiveram o apoio. Outros 12 atletas foram considerados “não habilitados” ao programa.

Mantido pela Secretaria de Estado de Esporte e Lazer (Seel) do Pará, o programa recebe recursos, mas o montante distribuído entre os atletas e técnicos não está especificado no edital divulgado. Segundo da Seel, o valor das bolsas, divididas em 12 parcelas, é variável segundo o desempenho de cada atleta em disputas nacionais ou estaduais e vão de R$ 750,45 a R$ 1.125,63. O último dado financeiro publicizado da secretaria, aponta que no ano de 2020, quando a Seel completou 21 anos de atuação no Pará, foram investidos R$ 443.614,17 em esportes.

Andreza Lima, ginasta. Foto: Arquivo Pessoal / Instagram

Andreza Lima, ginasta. Foto: Arquivo Pessoal / Instagram

À sombra do “país do futebol”

Apesar das dificuldades, Evandro afirma que o handebol do Pará é bem representado no mundo. Há, segundo ele, 23 atletas do estado atuando em ligas europeias, onde estão os melhores clubes da modalidade no mundo. Ampliar esse número é o sonho do gestor, que também atua com projetos sociais envolvendo o esporte nas periferias.

“Eu sou um homem preto da periferia, então quero trazer para quem mais precisa todo o aprendizado obtido na minha vida [por meio dos esportes]. Para começar a desenvolver crianças, não é preciso muito. Elas devem ter apenas três refeições, um bom tênis e dormir bem. Mas muitas nem isso conseguem. Temos que fazer com que essa criança, quando crescer, tenha uma bolsa de auxílio financeiro e se dedique exclusivamente ao esporte. Dessa forma, ela terá a oportunidade de ver o mundo para além do cercamento da periferia”, explica.

Evandro e Michel concordam sobre um outro desafio: o preconceito com os esportes olímpicos na Amazônia. O futebol profissional atrai milhões em investimentos, enquanto as demais modalidades são classificadas como “amadoras”, justamente, porque seus atletas não conseguem viver apenas do esporte. 

É um ciclo vicioso difícil de romper: falta apoio para se dedicar apenas ao esporte e é mais difícil conseguir apoio porque se é “classificado” como amador por não conseguir viver apenas do esporte.

E se isso mudasse? Se tiro ao alvo, natação, ginástica artística, arco e flecha, artes marciais, basquete, skate, marcha atlética ou o boxe recebessem tanta atenção financeira quanto o futebol? Ai, garantem os atletas, poderíamos assistir na Amazônia o poder transformador que as modalidades olímpicas têm em qualquer lugar do mundo: O de apontar novos talentos e mudar vidas ao mesmo tempo. Um poder imensurável que impactaria toda a sociedade, defende Michel

“Não sei se isso é algo cultural. O Governo deu recentemente três milhões de reais para cada um dos dois grandes clubes de futebol de Belém. Se parte desse dinheiro fosse colocada nos esportes amadores, o número de pessoas atingidas seria mil vezes maior. Pensar no esporte é pensar em diminuir desigualdades, [diminuir] a violência urbana“.

Time Brasil na abertura dos Jogos Olímpicos em Paris. Foto: Divulgação / Instagram Time Brasil

Time Brasil na abertura dos Jogos Olímpicos em Paris. Foto: Divulgação / Instagram Time Brasil

Potencial transformador o Esporte

O potencial que ele aponta já foi comprovado no Pará. Um outro programa estadual vem aumentando a capilaridade de modalidades esportivas nas periferias de Belém. Nas Usinas da Paz, aulas de natação, futebol de salão, vôlei, artes marciais e outros esportes atraem centenas de milhares de famílias.

Atualmente, há nove Usinas em funcionamento, sete delas localizadas em bairros da Região Metropolitana de Belém. Há ainda uma usina na cidade de Parauapebas e outra em Canãa dos Carajás, no sudeste do Estado. Segundo o Governo, outras 17 estão em construção e o objetivo é que 40 sejam erguidas. O projeto combate a violência e oferece serviços à população. Dados da Secretaria de Segurança Pública indicam redução de até 30% em índices de criminalidade nas áreas onde as Usinas da Paz foram instaladas. 

Embora criadas para combater a violência e ofertar serviços, elas podem estar também criando sonhos olímpicos entre as crianças e adolescentes atendidos nos complexos esportivos. Cabe à sociedade, aos times e clubes, ao Estado e aos patrocinadores apoiar esses sonhos para, quem sabe um dia, ver subir mais amazônidas nos pódios das olimpíadas que virão.

Texto: Thiago Lopes
Revisão: Glauce Monteiro
Montagem da Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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