O “agora” chegou: os caminhos para desacelerar a Urgência Climática
O primeiro Mesacast da Cumbuca da Ciência convidou os professores Phillip Fearnside e Edna Castro para a emergência climática na Amazônia
Professores Guilherme Guerreiro e Joice Santos, apresentadores do Mesacast, com os convidados professor Phillip Fearnside e professora Edna Castro. Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi
É possível imaginar um mundo sem a Floresta Amazônica? Até quando ela pode resistir às mudanças climáticas, secas, desmatamentos e incêndios? Pesquisas indicam que, se o ritmo da perda vegetal continuar tal como está, até 2050, 47% do ecossistema pode ser comprometido. Se a previsão se mentiver, em breve, a maior floresta tropical do mundo pode atingir o chamado “ponto de não retorno”, que é quando a destruição é maior que o potencial de recuperação de um bioma.
Se a devastação da Amazônica comprometer entre 20 a 25% da área florestal, ela pode nunca mais conseguir se recuperar. Atualmente, este índice está em cerca de 17%.
E tem mais: A Amazônia, que tradicionalmente atuava como sumidouro de carbono, já começou a emitir mais carbono do que o absorve, especialmente no sudeste da região. E no restante do mundo, segundo o IPCC, neste momento, toda a sociedade humana está emitindo 15 bilhões de toneladas de carbono, com a queima de combustíveis fósseis e desmatamentos.
O Brasil é um dos primeiros países da lista a sofrer as graves consequências de extrapolar esse ponto.
Estima-se que 2,1 milhões de pessoas enfrentarão o risco de enchentes anuais nas áreas costeiras até 2100. A agricultura brasileira poderá sofrer perdas anuais de até 1 bilhão de dólares devido à redução na produtividade das colheitas.
Além disso, a temperatura média pode aumentar até 2,2°C até 2050, com ondas de calor mais duradouras, resultando em um aumento de 854% nas mortes relacionadas ao calor, segundo o G20 Climate Risk Atlas. Se não forem tomadas medidas urgentes, o Brasil enfrentará danos significativos à infraestrutura, perda de biodiversidade, crises econômicas e aumento da vulnerabilidade social.
Por tudo isso, o primeiro episódio do Mesacast da Cumbuca da Ciência, projeto da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Pará (Facom/UFPA) em parceria com o Museu Emílio Goeldi, lançado durante a 76ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) debateu os desafios para a conservação e o desenvolvimento da Amazônia na era da emergência climática.
Os pesquisadores Phillip Fearnside, biólogo e ecologista do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e recebedor do Prêmio Nobel da Paz de 2007; e Edna Castro, professora Emérita da UFPA e cientista social do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea/UFPA) foram os convidados do programa e pontuaram as medidas que devem ser tomadas para, ao menos, atrasar a crise climática por aqui.
Quanto custa o desenvolvimento e quem paga por ele?
Toda a destruição da natureza, desde o desmatamento até a poluição de rios com minério vem em prol de um único objetivo: o desenvolvimento. Essa palavra, historicamente, significa que, se estradas precisam ser construídas – como a BR-319, por exemplo – elas vão passar por cima do que for necessário: sobre áreas florestais e territórios que deveriam ser/estar protegidos. Se é preciso aumentar o pasto para o agronegócio, queimadas são realizadas indiscriminadamente. É este o modelo de desenvolvimento mais comum visto na Amazônia: exploratório e devastador. Mas ele não é – não pode ser – o único!
O “custo” desse modelo já está mais do que comprovado e as mazelas dele não se restringem aos povos e territórios locais como se imaginou – e se “tolerou” ao longo de décadas – na Amazônia. A mudança de paradigma de desenvolvimento é urgente e possível. Um modelo de “progresso” com estratégias mais envolvidas e dialógicas com a natureza e com quem vive e sabe conviver com ela precisar se o foco de toda ação que busque “desenvolver a Amazônia”.
É o que defende a professora Edna Castro, que, por décadas, estuda as dinâmicas socioeconômicas e ambientais na Amazônia. Apesar da importância do crescimento econômico e da integração via projetos de mobilidade, não é possível, diante da emergência climática, ser displicente no planejamento de grandes obras na Amazônia.
“Hoje, as medidas têm que ser tomadas com muito cuidado. Grandes programas de desenvolvimento para a Amazônia, como estradas, infraestruturas e portos, acabam potencializando processos que analisamos há 30, 40 anos”, argumenta Edna, que ainda enfatiza:
São processos que levam ao desmatamento e à perda do equilíbrio dos cursos d’água, dos igarapés e dos rios, além de impactar a dinâmica climática. Isso é bom para a economia brasileira, mas é muito ruim para o futuro da sociedade e da própria economia, pois, em algum momento, começa a haver um decrescimento de todos esses investimentos devido aos problemas ambientais causados”.
Cada projeto de “desenvolvimento” resulta em um ecossistema de dinâmicas sociais e econômicas diversas, com ganhos e perdas. Entre os vencedores estão geralmente empresas e o agronegócio, com lucros bilionários; e entre os que perdem, as populações locais, que resistem pelos seus territórios, modos de vida e cultura, sem subsídios do governo ou midiáticos.
Em sua participação nas discussões também promovidas pelo Cumbuca na Ciência, Queila Couto, mestra em Direito e assessora jurídica da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), explica que modelos de desenvolvimento que não beneficiam as comunidades e povos que vivem na Amazônia não fazem sentido.
“Ouvimos ‘os quilombolas atrapalham o desenvolvimento’. Desenvolvimento para quem? Porque nas nossas comunidades temos nosso modo de vida diferenciado e não é qualquer ‘desenvolvimento’ que vai satisfazer a necessidade da nossa comunidade, que sabe plantar, que sabe colher e que sabe sobreviver da Terra, do chão. Um grande empreendimento…uma comunidade que tem o direito violado por um linhão de transmissão de energia, que corta a comunidade, chega à comunidade? Não! Na prática, as comunidades ficam com as mazelas. Com os choques, com pessoas mutiladas por descargas elétricas, que ficam com o pior da energia. Então, isso não é desenvolvimento pra gente, e, por isso, não nos interessa”, pontua.
“Populações indígenas, quilombolas, pescadores, ribeirinhos em geral. Então, essas pessoas acabam sendo até tratadas como criminosas, quando, na verdade, estão preservando esses territórios há milênios. Como fazer parar o avanço sobre essas novas terras?”, questiona Edna Castro.
Um dos exemplos mais recentes da invasão descrita é a Ferrogrão, que é um projeto de linha ferroviária planejado para ligar Sinop (MT) a Miritituba (PA), atravessando a Amazônia. Este projeto visa facilitar o escoamento da produção agrícola, especialmente de soja, para os portos do Norte do país. No entanto, a implementação da Ferrogrão tem levantado preocupações significativas sobre seu impacto ambiental e social.
A ferrovia atravessará territórios indígenas e áreas de conservação, ameaçando modos de vida e ecossistemas que dependem da integridade da floresta. As populações indígenas, que têm resistido a tais invasões há séculos, veem na Ferrogrão uma ameaça direta às suas terras e à sustentabilidade de suas comunidades.
Lideranças indígenas têm se manifestado contra o projeto, destacando a falta de consulta prévia e informada. Eles alertam que a construção da ferrovia não só causará desmatamento e degradação ambiental, mas também aumentará a pressão sobre suas terras devido ao aumento do acesso às áreas e internsificação da possibilidade de exploração indiscriminada delas.
Nas palavras de Edna Castro:
“Não é só pensar no desmatamento, mas é pensar que esse desmatamento tem nome, tem cor, tem sujeito, tem pessoas que se movem e têm recursos que estão financiando esse movimento que vai, vai e vai”.
Quais as soluções?
Com a COP30 cada vez mais perto, temos uma oportunidade crucial para o Brasil e o mundo rediscutirem suas políticas climáticas e tomarem ações mais sábias e incisivas para proteger a Amazônia de tudo o que a ameaça.
À medida que nos aproximamos dela, a comunidade científica e os defensores do meio ambiente estão intensificando os apelos por ações concretas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas.
Mas quais seriam as soluções? Para o professor Phillip Fearnside tudo começa com a redução do desmatamento:
“Tem muita floresta original sendo perdida rapidamente. Então, a prioridade máxima é parar essa perda. Então, nesse momento, realmente precisa focar em parar o desmatamento e a degradação da floresta [pelas] forças madeireiras, incêndios e etc”.
Essa é uma luta com forças desiguais, o poder político está ao lado do antigo modelo desenvolvimentista destruidor. Na corrida pelo futuro da Amazônia, o modelo desenvolvimentista é a lebre e os modelos que tentam defender a Amazônia, são tartarugas.
“Políticas de redução ou reflorestamento são mais dispendiosas e lentas para o governo, enquanto que projetos de ‘desenvolvimento’ econômico, como a expansão agrícola e de infraestrutura, são mais rápidos e lucrativos”.
Enquanto que o agronegócio é responsável por grande parte do PIB brasileiro, a implementação de projetos de sustentabilidade e reflorestamento podem demorar até 20 anos para começarem a gerar lucros.
Nos resta torcer (e colocar holofotes sobre essa situação) para que a sociedade e os governos notem a falta de compromisso e de visão estratégica da lebre e aprendam a ver a sabedoria e compromisso necessários da tartaruga Amazônia.
Justamente por isso, Edna Castro alerta para que a população e a academia fiquem atentos a iniciativas governamentais rasteiras ou dúbias. Um exemplo claro é a PEC 48/2023, apelidada de “PEC da Morte“, que propõe uma alteração constitucional que estabelece um marco temporal para a demarcação das terras indígenas.
Essa medida é vista como um retrocesso significativo na garantia dos direitos territoriais e culturais dos povos indígenas e pode resultar em um aumento do desmatamento, grilagem de terras e perda irreparável de ecossistemas vitais.
A PEC 48 incentiva a invasão e violência nas Terras Indígenas, prejudicando o modo de vida, educação e saúde dos povos indígenas. Ela impede que os verdadeiros defensores dos biomas – os povos originários e populações tradicionais – cuidem e preservem o meio ambiente.
“Nosso modo de vida é todo pautado no modo de existir [com a natureza] . A gente foi violentado, expulso do nosso território e todo dia estamos nessa luta [pela demarcação de terras e contra a proposta de marco temporal] que é em prol da nossa existência”, resume Manoela Karipuna, doutoranda em Sociologia e Antropologia e conselheira da Associação dos Povos Indígenas Estudantes da UFPA (APYEUFPA), também participantes das discussões do Cumbuca na Ciência.
Outras medidas para desacelerar o caos climático são a proteção das populações tradicionais e a luta contra processos econômicos ambientalmente e socialmente avassaladores. “A Amazônia não precisa, não pode, não deve se tornar um lugar de produção de commodities. Só commodities. Eu tenho que produzir para que as pessoas que vivam aqui vivam bem, comam bem”, defende Edna.
Um dos processos ambientalmente perigosos em voga atualmente é a exploração de petróleo na Foz do rio Amazonas, sobre a qual Philip Fearnside é veemente contra:
“Essa exploração é uma loucura para o Brasil. O impacto, por exemplo, dos derramamentos de petróleo seria desastroso, porque a profundidade da água onde estão planejando [implantar] isso, na Foz do Amazonas, é quase o dobro da profundidade que tinha no Golfo do México, onde houve uma grande catástrofe em 2010, o vazamento de petróleo do British Petroleum Bank, que jorrou por cinco meses o petróleo sem ninguém conseguir parar. [Ele] provou que ninguém tinha/tem tecnologia no mundo para tapar o vazamento nessa profundidade. E afetou toda a vida que estava ali naquela área”.
Como alternativa, o professor enfatiza a necessidade da transição energética para fontes de energia limpa. “O Brasil tem a capacidade de gerar toda a energia dessas fontes limpas. Tem a capacidade de fazer essa transição energética muito mais facilmente do que outros países, porque nós temos enorme potencial eólico e solar, o que os outros países não têm. Inclusive com a energia solar no mar, com a plataforma continental ao longo do litoral de milhares de quilômetros onde tem ventos constantes e dá para gerar energia”, explica ele.
Para isso, a última barreira de defesa levantada pelos pesquisadores é necessária: investimento em produção de ciência e tecnologia, especialmente na Amazônia. Já que, segundo estudos, em sete anos, a Amazônia recebeu apenas 10% dos investimentos em pesquisa de biodiversidade no Brasil.
Para a professora Edna, além de investimento, a produção de ciência ainda precisa de mais um apoio: a divulgação de qualidade por veículos independentes que não se subjugam a massificação bancada, muitas vezes pelo agronegócio:
“É uma região complexa, é uma região muito diversa, mas é uma região também que tem saberes produzidos milenarmente pelas populações tradicionais e também pela própria ciência, que não tem tanta expressão para fora da própria região. Aí, vem uma necessidade de nós termos revistas, boas revistas, de se investir na própria divulgação do conhecimento aqui”.
O professor Fearnside ainda acrescenta mais uma questão à produção científica amazônida: “Como é que é possível fazer com que todo esse conhecimento acumulado da ciência, da Amazônia, tenha uma influência nas decisões políticas?”
Esse ponto é, afinal, o caminho para desacelerar a urgência climática mais necessário e difícil de trilhar. A cobrança com o poder público deve ser constante e massiva. Da mesma forma que a eleição de novas figuras políticas deve levar em consideração a urgência da situação, explica Edna:
“Os políticos que formulam políticas públicas têm que ser muito conscientes desses problemas, mas eles têm que ter determinação política. Porque as decisões políticas, ou elas são corajosas, ou elas são comprometidas”.
E isso já se tornou inadiável, porque, por mais que pesquisadores continuem alertando sobre estimativas e dados catastróficos; e figuras públicas continuem em reuniões sem resultados concretos, a mudança climática exige ações corajosas e imediatas, orientadas pela ciência, ouvindo as populações tradicionais, ecoada pela mídia e sancionadas pelo governo. Já que, segundo a professora Edna Castro:
O agora chegou, é agora mesmo. Aquele futuro que nós dizíamos, agora é o presente”.
Texto: Alice Palmeira
Edição e revisão: Glauce Monteiro
Montagem da página e acabamento: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón