Sandra Godinho

Paulista radicada no Amazonas, é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB), e tem dez livros publicados.

Conto de Sandra Godinho: O invasor

"Maria afiou as antenas, agora cuspidas de saliva, e atentou ainda mais os movimentos da criatura dentro de casa, rastejando da rede até à geladeira, em busca de cerveja gelada"

Maria e o invasor. Arte: Glauce Monteiro
Maria e o invasor. Arte: Glauce Monteiro
Maria e o invasor. Arte: Glauce Monteiro

Maria e o invasor. Arte: Glauce Monteiro

Minúscula, ela arrastava seu corpo roliço pelas sombras, deixando no chão o rastro brilhoso de puro suor. Mais um dia de trabalho. Mais um dia cumprindo o mesmo ritual: acordar de madrugada, preparar o almoço, separar a quentinha, pegar o ônibus, espremer-se para chegar à porta e saltar no ponto de destino, só para trabalhar em pé por horas servindo estranhos no balcão do boteco. Enfrentava o mesmo transtorno no caminho de volta à casa, no início da noite, só para recomeçar no dia seguinte exatamente igual ao dia anterior.

Isso quando o novo companheiro – aquele se abancou em sua vida de mala e muitas cuias – não vinha com a gosma fria lambuzando seu pescoço, exigindo atenção antes dela lavar a louça, antes de tomar um banho que a refrescasse do dia. Cansada, ela se recolhia em conchinha, buscando afeto, e não sexo; esse algo tão íntimo que é compartilhar a cama com alguém.

Já ele seguia em ritual próprio, que definitivamente não incluía os afazeres domésticos. Detestava aquela monotonia inútil à beira da pia que lhe roía as horas de lazer. Assim ele se justificava.

Maria o chamava carinhosamente de amorzinho. Depois, de Grudinho. Após algum tempo, de Folgado. E, depois do chamego, vieram as manias: o feijão com caldo grosso, as frutas cortadas bem pequenas, a carne moída e sempre de primeira, peixe sem pitiú e ticado para assar no ponto exato que apreciava.

A casa, onde só o silêncio falava, começou a sentir as mágoas.

Uma estranheza arredia e incômoda entrou pela porta naquela última semana e assentou nos cômodos. Maria tinha certeza de que era a lua lhe segredando ideias no ouvido e se espertou, notou que, depois das manias, vieram as exigências: Não tem nenhuma cerveja gelada, Maria? Uns aperitivos até que caiam bem. Como não têm? Vou chamar meus amigos para assistirem o futebol. Alguém comeu tua língua hoje? Desembucha logo que tô ocupado! Mas que saco essa tua cara amarrada! Prepara logo a janta que estou com fome.

Maria afiou as antenas, agora cuspidas de saliva, e atentou ainda mais os movimentos da criatura dentro de casa, rastejando da rede até à geladeira, em busca de cerveja gelada. Botou tanto reparo que tormentas foram brotando dentro dela até o dia que romperam, quando um palito de dente caiu sem querer no prato dele.

Houve xingamentos, palavrões e alfinetadas até que Maria desaguou: junte tuas malas e cuias e se ponha fora daqui. Não sou caramujo para carregar sozinha a casa nas costas.

Ele se foi, com as pernas bêbadas, gosmentas, pela margem folhosa da estrada, sentindo-me mais desprezado que o caramujo africano no fundo do quintal.

Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com Orelha lavada, infância roubada (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com Verso do reverso (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance Tocaia do Norte (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, A morte é a promessa de algum fim, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, Memórias de uma mulher morta e A Secura dos ossos.

Montagem de página e acabamento: Alice Palmeira
Montagem do site: Fabrício Vinhas
Revisão:
Glauce Monteiro
Direção: Marcos Colón

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